“Habituem-se”, “ó senhora, deixe-se […]”, “pode-lhe perguntar porque é que ele [Carlos Moedas] não me telefonou a mim quando tive a minha casa inundada”. Em diferentes ocasiões na semana passada, o primeiro-ministro saiu-se com comentários – alguns até já o levaram a pedir desculpa – que os mais críticos na oposição já apelidaram de tiques autoritários. Mas o desconforto com o tom que António Costa tem usado em entrevistas, debates parlamentares e declarações públicas também já atinge os socialistas.
Depois de ter sido conhecida na íntegra a entrevista do chefe de Governo à Visão, começaram a surgir as primeiras críticas, com Pedro Siza Vieira, ex-ministro da Economia e seu amigo de longa data, a apontar que a postura de Costa sugeria uma espécie de “húbris”. Já este domingo, foi a vez de Alexandra Leitão, ex-ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, se mostrar desiludida ao “ver um déjà vu relativamente a outras maiorias absolutas” que entraram em declínio. Também a antiga eurodeputada socialista Ana Gomes manifestou a sua preocupação “com a arrogância, sobranceria e cansaço” de António Costa, que tem revelado “muita irritação”, acrescentando que “dá a sensação de que o primeiro-ministro já se acha grande demais para este país”, numa referência às suas ambições europeias.
Em declarações ao i, Daniel Adrião, o nome mais conhecido da oposição no seio do PS a António Costa, diz que há um “enviesamento monocrático” na forma como o primeiro-ministro tem liderado o Governo que se agravou com a maioria absoluta. “É demasiado poder concentrado nas mãos de uma pessoa só”, considera, defendendo uma separação de poderes entre as funções de primeiro-ministro e as funções de secretário-geral do PS.
“Não deve haver uma acumulação de funções, mas eu sempre defendi isso. Não foi preciso o primeiro-ministro fazer estas declarações para o criticar. A diferença é que eu tenho feito sempre estas críticas, estas pessoas passaram a fazê-las quando saíram do Governo”, atira.
Para o líder do movimento interno Democracia Plena, a acumulação de funções tem provocado uma governamentalização do PS. “O partido praticamente deixou de ter autonomia, vida própria, e passou a ser um mero apêndice do Governo para fins eleitorais. O grande problema está desde logo aí. Era importante que o PS tivesse uma liderança a tempo inteiro de alguém que estivesse exclusivamente dedicado ao partido, para que o partido pudesse ter massa crítica e capacidade de poder fazer o seu trabalho, independentemente do Governo.”
Apesar de reconhecer que a maioria absoluta dá ao PS alguma “proteção” e permite-lhe fazer aprovar as leis que entender na Assembleia da República, lembra que isso “não lhe confere uma suposição de intocável durante toda a legislatura”.
“Ao contrário daquilo que o primeiro-ministro pensa, a maioria absoluta não o blinda contra posições que possa vir a tomar e que sejam manifestamente impopulares. O facto de num determinado momento os portugueses terem dado uma maioria absoluta ao PS não significa um cheque em branco”, avisa Daniel Adrião, sublinhando que há outros atores no sistema político, designadamente o Presidente da República, que tem sinalizado que está atento.
“Pode até aumentar o seu nível de intervenção e até penso que isso é expectável se efetivamente se assistir a um desgaste e a uma erosão do apoio social e eleitoral ao Governo”, aponta, acrescentando que se esse cenário vier a confirmar-se pode criar alguma instabilidade e agitação social. “Nenhum Governo convive bem com isso”, vaticina.
Notando algum cansaço em António Costa e “porventura até algum esgotamento”, Daniel Adrião não tem dúvidas que as recentes declarações do primeiro-ministro foram “irrefletidas” e “infelizes”.
Luís Marques Mendes está convencido que esta postura irritadiça parte da “frustração” de o primeiro-ministro ter percebido que não poderá cumprir o “sonho” de ir para Bruxelas em 2024, como disse no seu comentário semanal na SIC. Opinião partilhada por Daniel Adrião, que diz que é o próprio António Costa que tem contribuído para criar as condições para não ir para um cargo europeu.
“Por exemplo, as posições que assumiu e verbalizou de uma forma muito vocal relativamente à entrada da Ucrânia na União Europeia não contribuem nada para a sua popularidade no seio da UE. Provavelmente, os apoios que necessita para poder ocupar esse cargo não estarão reunidos conforme ele pensou que pudessem estar. Muito por força das atitudes que ele tem tido, designadamente sobre um novo alargamento a Leste que implica a perda dos fundos europeus para Portugal e a canalização desses fundos para outros países que precisam mais de investimento para a sua reconstrução e integração”, conjetura, vendo aí outro motivo de inquietude para a governação socialista.