‘O Governo tem escolhido a via da subsidiação, que é popular mas pontual’

Bagão Félix lembra que ‘este  Governo está no seu primeiro ano de maioria absoluta’, o ‘momento ideal para encetar reformas de fundo’.

Depois de uma pandemia que ainda não foi ultrapassada, deparamo-nos com uma guerra e com todas as suas consequências, como o aumento da inflação e das taxas de juro…

É claro que temos de ter em conta, independentemente do Governo ser este ou aquele, quer a questão da pandemia, quer a questão da guerra na Ucrânia e a inflação. São coisas novas, no sentido de que, verdadeiramente, nos últimos 30 anos nenhuma destas situações existiu – e ainda por cima, em parte, acumularam-se. Isso cria naturais dificuldades às empresas e às famílias. Em alguns aspetos, temos de tentar atenuar os seus efeitos através de medidas que nos preparam para o futuro. Aliás, esse é o grande problema do país neste momento, em termos de governação: é que olha muito para o dia seguinte, quando precisamos, em várias áreas, de medidas que nos preparem para embates futuros e medidas de fundo, medidas estruturais, medidas sistémicas.

As tais reformas…

São as tais reformas. Por exemplo, desde 2015, desde que a atual governação existe com este primeiro-ministro que reformas fizemos na Justiça? Que reformas fizemos no sistema fiscal? Que reformas fizemos no sistema educativo? Que reformas fizemos no sistema do ordenamento do território? Que reformas fizemos verdadeiramente na proteção social? Vamos tendo medidas, algumas corretas, indiscutivelmente, outras oportunas, outras também discutíveis, mas são medidas de retalho. Não são medidas de fundo. E com as novas crises, por razões até diferentes que possam vir a existir e existirão, o país sente-se cada vez menos preparado.

Falou na reforma do sistema fiscal. A revisão dos escalões de IRS é quase que encarada como se fosse uma reforma…

Exatamente. Isso não é uma reforma em si. É uma medida paramétrica de ajustamento, não tem qualquer sentido de reforma. Já que fala nos escalões de IRS, por exemplo, para os rendimentos de 2002, embora a inflação em 2021 tenha sido baixa, mas apesar de tudo existiu e andou à volta de 1%, o ajustamento dos escalões foi zero. Em 2023, com uma taxa de inflação que andará muito perto dos 10%, fazer ajustamentos creio que à volta de 5% é aumentar a incidência fiscal. Pelo menos, para muitos contribuintes. E isto não é uma reforma, evidentemente que posso relacionar isso com outra questão, que é o apoio às famílias, num momento em que assistimos a uma erosão monetária acentuada a que não estávamos habituados, o Governo tem escolhido a via da subsidiação. Ela em si mesmo encerra um perigo, porque está a estimular a procura, ainda que por razões socialmente justas.

Está a estimular o consumo…

Está a estimular o consumo, portanto, está a favorecer a inflação. Embora reconheça as razões de natureza de justiça social que levam a proteger aqueles que têm mais dificuldades e para quem o cabaz alimentar representa uma maior fatia do orçamento familiar. Mas a via da subsidiação é sempre uma via muito administrativa, popular porque é o cheque, no entanto, é pontual e a inflação não é pontual. A inflação não é um ponto, é um percurso. E é uma medida que tem de estabelecer uma fronteira nos rendimentos, a partir dos quais não há esse apoio. Por exemplo, a fronteira do apoio dos 125 euros era de 2.700 euros e aí com uma contradição estranhíssima: é que o Governo considerou primeiro nesse primeiro cheque que contribuintes com um rendimento mensal bruto até 2.700 euros eram para estes efeitos ‘carenciadas’ e que deveriam ser apoiadas, mas essa mesma família para efeitos fiscais tem uma taxa marginal de IRS à volta de 40%. Isto é, o mesmo Estado que as apoia pontualmente considera-as fiscalmente ricas, o que revela que a fronteira é sempre discutível. Agora, com esta última medida tomada pelo Governo, nesse aspeto, melhorou-a, porque tornou-a socialmente mais focada. Mas também é uma situação que dá origem a muitas ineficiências, porque há pessoas que estão a ser apoiadas e não precisam, porque entretanto têm outros rendimentos que não são declarados, depois há pessoas que estão acima um pouco do limite e precisam porque não têm mais nada. Ou seja, é sempre uma visão administrativa da pobreza. Apesar desta última medida estar mais concentrada, e isso é um passo positivo, tanto quanto sei, porque são apoiadas as pessoas que recebem, por exemplo, o complemento solidário para idosos. O complemento solidário para idosos é dado e bem com a condição de recursos, ou seja, como prova de exiguidade de recursos financeiros. Mas esse valor, somado à pensão e ao complemento solidário para idosos, pode, em alguns casos, ultrapassar a pensão de pessoas que estão um bocadinho acima, mas que não têm esse complemento. Porque o sistema prestacional da Segurança Social está de tal maneira retalhado – há prestações que aparecem oportunisticamente numa altura, mas depois não anulam as outras. É uma verdadeira salada, não diria russa porque não se pode dizer, mas é uma salada portuguesa do sistema social. E isso gera mais fragilidades em termos de resposta social que a política pública deve dar. Tudo isto conjugado leva a que o mérito da subvenção ou da subsidiação pública tenha estes inconvenientes e, por isso, preferiria sempre o método por via fiscal.

Para ser mais justo?

A via fiscal, no nosso IRS, nunca podia ser a única via, tinha de ser complementada com alguma subsidiação por uma razão muito simples: é que as pessoas até o salário mínimo nacional não pagam IRS. Por exemplo, se faz uma maior dedução à coleta pelo número de filhos ou se faz uma maior dedução por despesas essenciais e obrigatórias, como habitação, saúde, etc., e aqueles que não pagam imposto pela circunstância de não atingirem o valor a partir do qual se paga ficariam de fora – essa medida, na lógica do IRS, tem de ser sempre complementada com uma lógica prestacional para aqueles que não pagam, seja, por exemplo, um acréscimo extraordinário do abono de família ou de prestações familiares, etc. Agora, neste contexto concreto, com uma taxa de inflação elevada, perto dos 10% em termos homólogos, a subvenção dos 125 euros e agora dos 240 euros, além dos inconvenientes que referi e além de ser pontual, mesmo que possa ser repetível é sempre pontual. Qualquer apoio por via do IRS tem de ter esse complemento, à semelhança do que alguns países fizeram e que a Comissão Europeia aceitou e que passou pela redução do IVA, sobretudo nos bens essenciais, no pacote alimentar cabaz alimentar, por exemplo, passar de 6% para 0%, pelo menos, temporariamente. Era uma ajuda fundamental, além do mais porque contrapunha o grande problema da inflação, já que a inflação é um aumento generalizado dos preços. Mas, obviamente, trata-se de um ‘imposto’ regressivo, penaliza mais quem menos tem. Por duas razões. Primeiro, porque tem menos. E segundo, porque o que tem é usado de uma maneira mais intensa nos bens sobre os quais a inflação está a incidir e são essencialmente os bens alimentares e os bens energéticos. Aliás, alguém dizia com piada que a inflação é o único imposto que não precisa de autorização parlamentar. 

O setor da distribuição disse que estava preparado para fazer essa redução, mas o Governo optou por não ir por esse caminho. Foi uma decisão política…

Foi uma opção do Governo e essa medida era universal, mas a universalidade da sua aplicação incidiria mais fortemente do ponto de vista positivo para as famílias que menos têm. Por que é que o Governo não quis? Porque fica mais caro.

E isso é visível pelo aumento da arrecadação dos impostos divulgados pela DGO…

Exato, mas não seria para todos os produtos, seria para os bens alimentares essenciais. A redução temporária do IVA de 6% para 0% seria mais justa e mais equitativa do ponto de vista social. É interessante, porque se tem falado muito no imposto sobre lucros inesperados ou excecionais, que resultam de situações que não dependem da capacidade das empresas ou da sua gestão, etc. – e pessoalmente acho que é uma medida relativamente demagógica. Aliás, curiosamente, o Governo português começou por dizer, quer através de declarações do próprio primeiro-ministro, quer do ministro das Finanças, que não alinhava nessa ideia. Depois, como na Europa entrou em voga essa ideia, já voltou a concordar. Preferia outro caminho: há lucros inesperados, resultantes, por exemplo, de todos os fatores que não vale a pena agora enumerar, há certamente, e então o Estado deveria ‘obrigar’ essas entidades e essas empresas a reinvestirem os lucros anormais que registaram e proibir a distribuição desses lucros sob a forma de dividendos. Caso falhassem os dois pontos, então é que poderia haver uma tributação excecional. Quem vai beneficiar com essa tributação adicional? Não somos nós consumidores. É mais uma vez o Estado que engorda. Claro que depois o Governo diz que este valor vai ser aplicado nisto ou naquilo, mas depois não se faz o escrutínio disso. Não se faz esse controlo e perde-se na imensidão do dia-a-dia dos Governos e dos governados.

E são setores que já têm outras taxas…

Já têm contribuições extraordinárias. Quem é que verdadeiramente tem lucros não esperados? É o Estado, que não é taxado. Ora, como o Estado não pode ser taxado e tem milhares de milhões adicionais de IVA e de outros impostos, sobretudo indiretos, mas não apenas, o que lhe seria exigível era que, não havendo taxação do próprio Estado, haveria o correspondente, que é a diminuição da carga fiscal resultante desses lucros ‘excecionais’. O Estado, estou a falar em abstrato, com uma inflação destas vive num aparente paraíso. Porquê? Primeiro, porque o aumento das receitas por via do aumento dos preços, dos impostos indiretos, é imediato. Se o preço aumenta, aumenta o IVA e aumentam os outros impostos indiretos, taxas, etc. Segundo, dir-me-á, o Estado tem mais receitas, mas depois também vai ter mais despesas. Sim, vai ter mais despesas, mas não vai ter o mesmo aumento percentual das despesas em função do que tem das receitas, porque os salários da administração pública vão ter aumentos, mas não chegam à taxa de inflação que serve de base às suas receitas e a única única parte da componente da despesa em que aí pode ter uma incidência forte, indiretamente da taxa de inflação, é nos juros da dívida pública. Um terceiro ponto é que o Estado arrecada mais receita nominal imediatamente, mas paga despesa nominal numa percentagem menor e paga no ano seguinte, ou seja, há um desfasamento entre as consequências da entrada de dinheiro no Estado por via dos impostos e a parte que vai sair por via também da inflação. Por exemplo, o aumento da despesa dos funcionários públicos, seja ele qual for, é no ano N+1 e a inflação teve efeitos positivos na receita do Estado no ano N. Se há windfall taxes, se há ganhos inesperados, se há superavits inesperados é no próprio Estado. E numa sociedade profundamente amadurecida, cívica e politicamente responsável, os partidos da oposição, em particular o PSD, deveriam estar a consciencializar a população, a pedir e a exigir ‘vamos então taxar o Estado pelos ganhos inesperados’. Como não se pode taxar o que é que isso significa? Significa reduzir a carga fiscal de maneira a devolver às famílias e às empresas, ou seja, aos agentes económicos que fazem o progresso do país, aquilo que cobrou a mais.

E quando não há verdadeiras reformas…

No plano fiscal não há reformas. O IRS é uma manta de retalhos, em que todos os anos muda-se pequenas coisas. Este ano foi criada uma taxa adicional intermédia, que terá um efeito marginal positivo em algumas famílias, mas depois a atualização dos escalões é abaixo da taxa de inflação e depois criam-se outras pequenas coisas. É uma barafunda e já ninguém se entende. Este Governo, goste-se ou não dele, tenha-se votado ou não nele, tem um aspeto que é fundamental: é um Governo maioritário, ou seja, não precisa de negociar com outros partidos para ver aprovados os seus Orçamentos e as suas medidas estruturantes ou estruturais. Primeiro ponto. Segundo ponto, este Governo está no seu primeiro ano de maioria absoluta. Seria, em tese, o momento ideal para encetar reformas de fundo, designadamente no plano fiscal, mas não apenas, que a prazo tivessem vantagens e fossem amigas do crescimento do investimento. E já que estamos a falar do plano fiscal, também é importante falar no plano da poupança. A tributação sobre a poupança não distingue o pequeno aforrador do especulador ou do grande acionista. É tudo igual, em que é aplicada uma taxa liberatória de 28%. Esta taxa liberatória era, em 2005, de 20%. É um aumento de 8%, que corresponde a 40% de aumento da tributação. Ora, somos um país com uma poupança absolutamente insignificante, com 4% a 5% do rendimento disponível e não há futuro sem poupança. Quer dizer, sem poupança não há investimento. Ou melhor, pode haver, mas sob a forma de endividamento, carregando as próximas gerações. A poupança é parte da variável enjeitada da política económica, não só portuguesa como europeia. A palavra poupança não aparece em nenhum tratado europeu, não aparece no Pacto de Estabilidade e Crescimento, não aparece em nada. A palavra poupança não existe. O espaço económico faz da poupança uma variável negligenciável e está a prejudicar o seu futuro e não está a dar a esperança que é necessária dar às próximas gerações. Este contrato ético geracional está a ser constantemente violado. Por exemplo, diz-se e bem que, face à inflação, a política monetária tem de agir com a subida das taxas de juro de referência. Isso é indiscutível. É quase a única maneira de controlar o excesso de procura e de consumo. Muito bem, mas ninguém fala da outra vertente que é o aumento das taxas de juro com vista a estimular a poupança. Fui ver esta semana que taxas é que os bancos ofereciam e no máximo ofereciam 0,25%, sobre o qual incide 28% de IRS. Estamos a falar de uma taxa líquida de 0,17% ou de 0,18%. Isto significa outra coisa, é que, quando os juros são tão baixos e a inflação é tão alta, o IRS sobre o rendimento, os tais 28%, acaba em termos reais por incidir sobre o próprio património e já não sobre o rendimento. Isto passa completamente ao lado das preocupações públicas e políticas. Sei que falar da poupança é quase politicamente incorreto, já nem falo do pé de meia geracional. Mas ainda não se descobriu uma forma de fortalecer e garantir a poupança, principalmente quando se fala agora tanto em sustentabilidade, em progresso, em crescimento e em desenvolvimento do país. Isso não acontece se não houver poupança.

Por falar em sustentabilidade. Em setembro alertou que um pensionista médio vai perder 250 euros a partir de 2024…

Foi uma conta simples que fiz. O Estado vai passar a poupar, se não houver alteração das regras atuais, cerca de mil milhões de euros por ano até ao fim da vida dos atuais pensionistas. O Governo tem dito umas mentirolas, diz meias verdades e, como alguém dizia, o problema é quando numa meia verdade o que se diz é a parte da mentira e não a parte da verdade. Então, com esses mil milhões a dividir por cerca de quatro milhões de pensionistas, chega-se a estas contas que fiz e que é uma perda de 250 euros até ao fim da vida do reformado ou pensionista.

E depois há ainda o problema da demografia…

A questão da demografia foi das coisas que mais me entristeceu nos últimos tempos da política portuguesa. Há cerca de três semanas saíram os resultados finais dos Censos 2021, que traçam um quadro absolutamente dramático do futuro das questões demográficas e, consequentemente, de algumas questões sociais no nosso país. Aconteceu alguma coisa? Houve algum abalo da política? No Parlamento alguém fala disto? Preferem entreter-se com coisas laterais. Os partidos reuniram-se para olhar com olhos de ver para estas questões? O Governo sobressaltou-se? A sociedade ficou inquieta? Zero. As televisões abriram telejornais com isto? Zero. E, no entanto, aquele quadro é medonho.

Um dos problemas é o envelhecimento da população…

Em 1980, era secretário de Estado da Segurança Social e havia 28 pessoas idosas por cada 100 crianças e jovens. No ano 2000, foi o ano em que se atingiu a igualdade: 100 idosos por cada 100 crianças e jovens. Atualmente, está em 187 idosos por cada 100 crianças e jovens e estima-se, não os Censos mas outros estudos que foram feitos, que dentro de 20 anos estará bem acima dos 200 idosos por cada 100 crianças e jovens. A taxa de rejuvenescimento da população ativa, que nos Censos 2011 era de 87%, ou seja, já não repunha a população ativa e por cada 100 pessoas que saíram da vida ativa estavam 87, dez anos depois já não são 87 são 78. E há outro fator que tem a ver com questões mais sociais que é o facto de mais de um milhão de pessoas viverem sozinhas. É um aumento muito grande em relação a 2011 e, desse valor, cerca de 50%, ou seja, mais de 500 mil são pessoas com mais de 65 anos. Isto levanta novos problemas de solidão, de isolamento, de acompanhamento e continuamos com as respostas sociais exatamente iguais às de 30, 40 e 50 anos. Não questionamos isto, temos aquelas respostas quase já mecânicas: é o lar de idosos, é o centro de dia. Hoje em dia, o problema dos idosos que vivem sozinhos não é tanto durante o dia, é durante a noite, porque durante o dia querem estar ainda no seu habitat de amigos, de vizinhança, etc. Hoje em dia não faz sentido o centro de dia, faz sentido é o centro de noite. Isso é só para dar um exemplo de que para novos problemas temos de ter novas soluções. Mas ninguém fala disto. Os Censos também dizem que as sete cidades principais do país, que são 2% do território do país, têm 20% da população. Cerca 60 municípios têm tanto como estes sete municípios de maior população. Fala-se do ordenamento do território, fala-se na necessidade de atrair pessoas para o interior, fala-se em coisas avulsas, mas não se podem fechar agências bancárias, escolas e pensar que vamos ter pessoas nesses locais. Os incentivos à natalidade deviam ser direcionados, os serviços públicos são cada vez mais inexistentes. As pessoas que não têm literacia informática e digital são completamente desprezadas porque deixam de ter os seus serviços de proximidade. O que acontece? Essas pessoas vão para 2% do território, que é onde há vida. Hoje em dia a política faz-se muito para o que é visível, para o que pode ser anunciado, para o que pode ser visto, para o que pode ser tocado, etc. e depois esquecemos aquilo que é mais estruturante.

Disse que estes problemas não são debatidos no Parlamento. Acha que se deve, em parte, à nova configuração do Parlamento?

É uma questão curiosa, porque a falta de resposta dos partidos, digamos, de acordo com a expressão governamental em geral em Portugal, a estas questões geracionais e profundas da sociedade portuguesa leva ela própria a alimentar os populismos. Os populismos não existem per si, existem como consequência do vácuo ou do vazio, do deixar andar, do adiar constantemente para outras questões. E, depois, como é que o populismo responde? Perigosamente e demagogicamente, aliás, uma das vertentes do populismo são as respostas fáceis para os problemas difíceis, do ponto de vista discursivo e, portanto, provoca a muita gente a ideia de que isto pode resolver-se e, às vezes, não passa da mera intenção e do discurso.

Como vê a questão da eutanásia?

Nem uma promessa eleitoral do PS foi. Sou contra a eutanásia, mas tenho de aceitar que há pessoas que pensam de maneira diferente. Nem preciso de apelar à minha perspetiva católica ou religiosa, porque mesmo que não fosse, era contra a eutanásia, sobretudo nesta perspetiva da eutanásia travestida do eufemismo de morte medicamente assistida. E, ao mesmo tempo que é aprovada no Parlamento uma lei que despenaliza a morte medicamente assistida, utilizando este eufemismo, verificamos que a vida medicamente assistida está cada vez mais posta em causa com ruturas do Serviço Nacional de Saúde, com filas de espera absolutamente insuportáveis. Como cidadão, como contribuinte preferia que o Estado investisse mais naquilo que deve investir, quer nos cuidados de longa duração, quer nos cuidados paliativos, até para ter ‘moral’ para ter uma lei sobre a eutanásia, independentemente de não concordar.

E deveria ter havido um referendo, como aconteceu, por exemplo, com o aborto?

Pessoalmente, não concordo com um referendo sobre esta questão, porque há questões que não são referendáveis, e a questão da vida não referendável. Não sou jurista, nem constitucionalista, mas quando se diz na Constituição que a vida é inviolável – pode-se fazer depois todas as interpretações – só tem uma leitura, não tem outra. No aborto ainda há questões técnicas – como as semanas do feto, etc. –  agora, neste caso, é uma vida e devemos ter o dever enquanto pessoas na sociedade e enquanto pessoas de um país respeitar profundamente os direitos humanos e tentar, o sofrimento pode acontecer a qualquer um de nós, o menor sofrimento possível. E depois há essa questão da limitação. Onde é que se pára? O que é isso de uma doença irreversível? Há 50 anos havia doenças irreversíveis que hoje já não o são. O que é isso de um sofrimento insuportável? Não há um algoritmo, não há uma equação matemática, não há uma precisão aritmética para essas coisas, e isso permite, como está a permitir na Holanda e na Bélgica e noutros países, haver um certo aproveitamento da chamada cultura de morte. Em bom rigor, na eutanásia como em outras medidas fraturantes, sabemos como é que as coisas começam, mas ainda não sabemos como é que as coisas acabam.

A decisão está agora do lado do Presidente da República. Acha que irá pedir parecer ao Tribunal Constitucional?

Acho que é o que vai acontecer, até porque estamos na presença de um Presidente que é um eminente jurista. Parece-me lógico que assim venha a acontecer e do meu ponto de vista é o desejável.

Outro tema que tem estado em cima da mesa é a revisão da Constituição. Acha que é um tema urgente?

Não diria que é para inglês ver, porque os ingleses não se preocupam com a nossa Constituição, mas é para os portugueses verem. Não tem interesse nenhum. Pode haver um ou outro aspeto, mas o país está com dificuldades, com retraimento na adoção de reformas, etc. por causa da Constituição? Não e todos sabem isso e houve revisões constitucionais que foram feitas e foram fundamentais para derrubar restrições e constrangimentos, desde as políticas,como a questão do Conselho de Revolução, até às económicas, das nacionalizações. O pouco que li de algumas propostas são coisas absolutamente irrisórias, como a idade para votar passar dos 18 para os 16 anos.

E a questão do género?

A questão da ideologia do género vai marcar, obviamente, os aspetos da eventual revisão da Constituição. Há muito modismo, há muitas modas. Ora, a Constituição é uma carta que não deve estar impregnada, nem sujeita a modas, deve ser de coisas consistentes, duradouras, profundas, que não dividam, mas que unam. Não digo que é uma perda de tempo, até porque seria uma falta de respeito dizer isso desta maneira, mas é absolutamente dispensável. Neste momento, não é uma prioridade rever a Constituição e, pelo contrário, vai trazer divisões. Estamos a construir uma sociedade brutalmente bipolar, dual, maniqueísta. De um lado é que está a verdade, do outro está a mentira, de um lado é que está o bom e do outro lado é que está o mal. De um lado está a ética e do outro lado está a falta de ética. A discussão dessas alterações na Constituição acaba por potenciar essas discordâncias. Sei que a democracia é feita saudavelmente da discordância, isto é, da divergência nas políticas a seguir, no modo como se encara o futuro, etc. mas que sejam, então, as divergências certas para se atingir algum compromisso. Agora, criar divergências que ninguém sente, que não preocupam a sociedade não faz sentido. E há outro ponto, a Constituição só fala de direitos, talvez devesse haver uma alteração da Constituição da República que também falasse dos deveres. Somos cada vez mais uma sociedade de direitos, já ninguém fala de deveres e não há direitos sem deveres.

Que deveres deveriam ser contemplados?

Vou dar um exemplo que ainda não chegou aqui e é a propósito do aborto. Tem havido leis no sentido de despenalizar a prática do aborto em determinadas condições, umas mais alargadas, outras mais restritas. É uma possibilidade, mediante o preenchimento de certas condições, mas que permite, por exemplo, aos médicos a objeção de consciência. Agora surgiu na presidência francesa e o Presidente Macron fez um discurso, a certa altura, de que é preciso alargar os direitos humanos, entre os quais o direito ao aborto. É uma coisa impensável que é passar de uma situação de despenalização para um direito ao aborto. O que é isso de direito ao aborto? Só se for para dizer que os médicos não podem ter objeção de consciência. O choque de palavras, às vezes, revela bem o que  está por detrás de uma sociedade desordenada que, muitas vezes, entra pela epiderme das pessoas, entra com uma certa musicalidade, é só palavras, algumas amenas, grandes eufemismos, a linguagem politicamente correta, onde há hoje muitos soldados da correção política a controlar e eles, em nome da tolerância, serem mais intolerantes do que era suposto.

Como vê que os recentes casos polémicos em torno do Governo. Mostra sinais de desgaste?

Sim, mas segundo o primeiro-ministro não há problemas nenhuns. Mas vejo isto de fora e reconheço que há casos com gravidade, há casos com muito menor gravidade, há casos mais discutíveis, há casos mais especulativos, mas não era previsível que um Governo com menos de um ano, e ainda por cima com maioria absoluta, estivesse a ter o desgaste que está a ter. Os casos revelam algum descontrolo.

O único problema que admitiu foi com Pedro Nuno Santos…

Repito, visto de fora, não fosse a questão de o ministro em causa ser um potencial candidato à liderança do partido obviamente que tinha sido demitido na mesma hora. Suponha por mera hipótese que esse ministro que teve esse comportamento era um independente, o que é que o primeiro-ministro tinha feito? No minuto seguinte estava fora do Governo. O do secretário de Estado Adjunto é um caso que o primeiro-ministro não pode referir como sendo ‘inventado’ ou ampliado pela comunicação social, que, aliás, fez bem o seu papel de escrutínio. É um caso de uma pessoa que conhecia bem, é uma pessoa que trabalhava diretamente com o primeiro-ministro, não era propriamente um qualquer diretor-geral ou até mesmo um secretário de Estado de um ministro algures no Governo. O primeiro-ministro sabe muito bem que não convence ninguém em pôr o problema para o lado e para debaixo do tapete. Isso não faz sentido nenhum.

Mas por outro lado deixou a garantia que está para ficar no Governo com o ‘habituem-se’…

O problema é que já estamos habituados ao Governo de António Costa e do PS há sete anos. O que é que o país mudou nestes sete anos? Está constantemente a recusar Governos anteriores, designadamente no período da troika e quando as coisas correm mal é porque lá fora é assim ou porque choveu muito ou então por outra qualquer razão, nunca é uma razão endógena do Governo em termos da sua atuação. E qualquer Governo faz coisas e faz coisas mal. Dessa ideia um pouco encapsulada do Governo há sete anos é que já estamos, infelizmente, habituados.

Agora enfrenta uma nova liderança do PSD…

Como pessoa daquilo a que se convencionou chamar de centro-direita quero que haja um PSD que seja alternativa forte a um Governo socialista. Nos últimos 30 anos tivemos mais Governos socialistas, em grande maioria dos últimos 25 anos. Tudo o que o PSD possa fazer no sentido de democraticamente ser uma alternativa é bom e ser oposição não é tanto dizer dizer mal, não é tanto ser obrigado a dizer mal, mas apresentar alternativas. Esta questão que falámos da subsidiação versus reforma fiscal, ou a questão do Censos 2021 e, portanto, das políticas públicas contra a baixa natalidade, contra o despovoamento, etc. são questões que não estão na agenda política, mas deveriam estar. O centro-direita tem atualmente esta dificultade no Parlamento: o Chega é um entrave à formação de maiorias consistentes e estáveis à direita do PS. E António Costa sabe disso, tanto que aquilo que mais gosta de promover, ainda que por via do ataque, é o Chega, porque quanto mais forte for o Chega melhor está a posição socialista. Agora também ‘ataca’ a Iniciativa Liberal com frases muito grosseiras. Se essa frase tivesse sido dita por Passos Coelho, por exemplo, ou por outros políticos mais à direita tinha caído o Carmo e a trindade. O primeiro-ministro entrevistado nessa qualidade deve ter algum sentido de Estado quando fala de organizações políticas que receberam o voto dos portugueses, goste-se ou não se goste e têm que ser tratadas de outra forma. Já há pouco tempo referiu-se no Parlamento a ‘meninos’ – há coisas que ultrapassam os limites saudáveis da tal ideia, da diferença e da discordância naturais que são a base da democracia. A base da democracia não se faz de igualdades, quero que o partido A seja diferente do partido B e o partido B diferente do C, depois até podemos detestar um deles, mas temos uma panóplia de escolhas. Por exemplo, reconheço que os políticos são pessoas que pensam nas coisas públicas e refletem muito bem, mesmo discordando delas, mas também aprendo com elas na discordância e, às vezes, até na aproximação.

Como passa o Natal?

Se é um Natal do consumismo, do hiper consumismo, em que as pessoas andam a destilar suor para fazer compras e para uma contabilidade de dar e receber, não faz sentido. Como católico tenho de fazer esse esforço. Gosto do Natal, ainda tenho as memórias de criança. Vivi o meu Natal de criança no pós-guerra, em que havia muito pouco para dar e para receber. Era uma situação de grande escassez, mas, ao mesmo tempo, as coisas tinham valor. Hoje é o contrário. Mas, repito, gosto de Natal. Faço o presépio, gosto falar de Natal com as minhas filhas e com as minhas netas. Gosto de respirar o Natal, até porque para mim não é uma data é um caminho. Não é tanto o dia 24 ou o dia 25 é o chegar até lá. O período do advento natalício para um católico, hoje em dia, é um período em que é preciso parar, fechar-se dentro de si para perceber que é Natal. O Natal é um hino à vida. É a vitória da vida sobre a morte. Repito tenho de fazer um esforço para perceber que o Natal é o aniversário do nascimento de Jesus Cristo.

E em relação ao Benfica, já lhe dá mais felicidade?

Esta semana houve dois benfiquistas que foram campeões do mundo. Não é dramático não ganhar a Taça da Liga, o que é dramático é não ganhar o campeonato, como também é importante continuar a fazer boa figura na Liga dos Campeões. O Benfica vai com alguns pontos de avanço, mas sou muito cauteloso. Nem a excessiva euforia no momento em que estamos, nem a excessiva depressão se uma derrota ou um desaire que, mais tarde ou mais cedo virá, como é óbvio. Aliás, um dos fascínios do futebol, ao contrário de outros desportos, é que pode haver sempre surpresas. Já aprendi a nivelar e a ser discretamente otimista.

Já voltou ao estádio?

Voltei a ir e se calhar mais do que ia por causa do confinamento.

Lançou um novo livro: Palavras Descruzadas...

Este é o meu oitavo livro. É sobre a língua portuguesa.

Mas diferente do que nos habitou, já que não é sobre botânica…

É sobre outro amor que tenho, que é a nossa língua. Já Fernando Pessoa dizia que a minha língua é a minha pátria. Por um lado, gosto de brincar com as palavras. Por outro lado, gosto do rigor da palavra, até talvez pela minha formação matemática. A certa altura brinco com o meu próprio nome: ‘Bagão a Bagão enche o Félix o papo’. Ao longo dos anos, desde que fui secretário de Estado do Governo de Sá Carneiro, com 30 anos, passando pelo Banco de Portugal, recebi muita correspondência e consegui ter documentalmente cerca de 85 maneiras diferentes de dizer Bagão, o que é uma coisa espantosa.