Para mim, Messi é Maradona sem os golos à Inglaterra. E Maradona não poderia ter sido Maradona sem os golos à Inglaterra. Por isso, quando se discute Messi e Maradona, discute-se o impossível. Maradona era capaz de ir além dos mortais e, por isso, passou a lenda. Está morto estando vivo. Messi, um dos Grandes Zurdos, como gostam de lhes chamar os espanhóis, ou Messidona, como também o alcunharam, está dois golos abaixo, e isso faz toda a diferença.
Recordem os golos do Estádio Azteca se têm idade para isso. O primeiro, aos 51 m, perante o desespero do keeper britânico, Peter Shilton: Maradona salta, finge que cabeceia e toca a bola com a mão para dentro da baliza de Inglaterra. Depois sai para comemorar como se não se tivesse passado nada de sobrenatural. Depois, interiorizando a aldrabice: «Foi a mão de Deus!» Agora pensem e respondam a vocês mesmos: Messi seria capaz de marcar aquele golo? Não, não era, digo já. E não por ser mais baixo do que Maradona, até é mais alto – 1,69 contra 1,66. Apenas porque não tem o descaramento divino de que falava o Eça e que Diego possuía até à protérvia. O descaramento fez de Maradona herói na Argentina e bandido em Inglaterra. Os velhos corsários que cruzavam os mares com a bandeira de São Jorge sentiram-se roubados? Ah! Como isso eletrizou um país inteiro! Mas, logo a seguir, 4 minutos mais tarde, o descaramento foi ainda mais divino: Maradona começou a correr, primeiro com a bola colada à parte de fora do pé esquerdo, depois encaixando-a por dentro, correndo sempre, passando por Beardsley, Peter Reed, Terry Butcher, Fenwick, outra vez pelo desgraçado Butcher, e por Shilton – um toque à laia de desprezo. Golo. Todos os ingleses pelos quais passou tentaram caçá-lo a patadas co mo se fosse uma ratazana. Eu lembro-me, sobretudo, do peito inchado, dos ombros largos, do orgulho próprio dos que se sabem capazes de fazer o impossível. Era ele e a sua circunstância e o mundo só existia para aplaudi-lo. Não, Messi não marcaria igualmente esse golo: falta-lhe esse orgulho que nasce na miséria e na fome, não joga de peito em quilha, abrindo fendas nas defesas adversárias, é A Pulga, nome que os irmãos lhe puseram. Divertimento puro; inspiração momentânea. Mas não raiva como Diego. Não ódio como no grito com que, após um golo frente à Grécia, em 1994, em Foxboro, encheu os ecrãs de televisão de todo o planeta. Aí, Maradona, encarnou o diabo. Depois, como escreveu Luís Fernando Veríssimo: «Jogou, ganhou; mijou, perdeu». Foi o seu último golo com a camisola da Argentina. E pleno de uma fúria que Messi desconhece porque não faz de cada jogo uma guerra.
Homens e lendas
Enquanto a imprensa vai perdendo tempo com rivalidades apenas assentes na vacuidade das estatísticas, os Campeonatos do Mundo vão e vêm. Ronaldo podia ter marcado três golos no Qatar e ultrapassado os nove de Eusébio em 1966 (embora tivesse precisado de cinco Mundiais para fazer melhor do que Eusébio fez em um) que isso não alteraria nada entre o homem e a lenda. A lenda de Eusébio não está nos nove golos. A lenda de Eusébio está no jogo contra a Coreia do Norte, nos 0-3 transformados em 4-3 com quatro golos seguidos e naquela arrancada pela esquerda ultrapassando adversários enlouquecidos que lhe mordiam os calcanhares até o abaterem, já dentro da área, como se fossem uma matilha.
Maradona, a lenda, nunca rivalizou com Messi, que não chegou a lenda só por ter sido campeão do mundo. Diego dizia do seu preferido: «É maravilhoso! Acima de todos. Troca a bola com Jesus!» Não sei sequer se Jesus tem jeito para a bola, só sei que não está devidamente equipado, tirem-lhe as chanatas, deem-lhe umas chuteiras. Sei que Deus só troca a bola com os eleitos e, de resto, fica a ver. E sei, como Mário de Sá Carneiro, que com um pouco mais de sol Lionel podia ser brasa. Que é como quem diz: podia ser Maradona. Mas não é.
Pelé, a maior de todas as lendas, conseguiu condensar em si tanto mais azul que ficou além. Até os golos que não marcou se transformaram em Património Imaterial da Humanidade: o chapéu a Victor, contra a Checoslováquia, ainda antes de meio-campo; o vai-que-vai-mas-não-fui, sozinho perante Mazurkiewicz, no jogo com o Uruguai; a bola vinda do pontapé de baliza e devolvida de primeira, como no ténis, no mesmo jogo; a cabeçada para que Banks defendesse um golo, face à Inglaterra…
Não, as lendas não brotam dos números, não crescem regadas apenas a golos. Já se passaram 36 anos sobre a tarde em que Maradona resolveu apepinar toda a Inglaterra, Lord Nelson, Arcebispo de Cantuária, e tudo e tudo, e continuamos com as imagens a flutuar na memória frame-a- frame. Passaram apenas doze dias sobre a final do Estádio de Lusail, no Qatar, e o que nos resta de Messi colado às lembranças é vê-lo como um menino do tamanho de um menino saltitando de um lado para o outro com a taça do mundo na mão.
A lenda é, igualmente, aquela nesga de espaço que projeta uma luz difusa entre a realidade e a ficção: tantas maravilhas terão saído dos pés de Pelé sem que nenhuma câmara as registasse para a posteridade, sem o slow motion para poderem ser deveras apreciadas. Por isso, enquanto Messi, Ronaldo ou Mbappé são produtos da televisão, Pelé, Eusébio e Di Stéfano são produtos da imaginação. Ou melhor, daquilo que éramos capazes de os ver fazer por aquilo que nos era descrito mais do que pelo que lhes vimos.
Jorge Valdano que jogou com Maradona e escreve com a arte do pé esquerdo de Diego afirma: «Diego jogava com as pausas e com as acelerações, Messi vai até uma velocidade louca sempre em aceleração. É impossível não comparar o golo de Messi com um golo de Maradona, mas isso não faz de Messi um Maradona». Uma forma simpática de, perante dois compatriotas, escusar-se a dizer que um é imortal e o outro não. Aliás é por isso mesmo que continuamos a falar de ambos no presente do conjuntivo. Rosário, cidade de caminhos de ferro, Província de Santa Fé. Quem a vê da janela de um avião, surge como uma massa cinzenta no meio da planície, desenhada a regra e esquadro nas margens do rio Paraná. Foi aqui que nasceu Lionel Andrés Messi Cuccittini no dia 24 de Junho de 1987. Irreversivelmente, a personagem do momento. A seu tempo, as lendas decidirão se o aceitam entre elas.