Pelé adeus. Ele viveu a ilusão de que ser homem não bastaria…

Ontem foi um dia no qual o Brasil chorou. Um povo alegre ensombrou-se com a tristeza de enterrar o mais brasileiro de todos os brasileiros. Pelé já não volta mais.

Uma multidão perdida juntou-se num bloco só de sofrimento incontido. O brasileiro tem o prazer das lágrimas tal como tem o prazer do riso. Adeus é palavra fatídica, sem retrocesso, irreversível. Pelé não volta nunca mais. Milhares e milhares de pessoas se juntaram nas ruas de Santos como um extenso carnaval negro, enlutado. Milhares e milhares de pessoas rezam sem saber a quem, sem saber porquê, rezam só porque precisam de um Deus que não os abandone no momento em que o mais brasileiro de todos os brasileiros começa a desfazer-se, músculos, cartilagens, pele e ossos, até nada mais ficar à superfície do planeta Terra do que uma mão cheia de pó. Ele, Pelé! O vencedor dos vencedores. O menino que com dezassete anos foi à Suécia buscar o título de campeão do mundo de futebol sem o qual o Brasil se sentia amputado.

Ao ver as imagens que passam na televisão, das filas formadas por aqueles que não quiserem deixar de passar por Vila Belmiro, ou pelo Estádio Urbano Caldeira, para ser mais exato, não deixo de encontrar ironia de Pelé ter precisado da morte para ganhar a popularidade de Garrincha. Esse sim, foi a Alegria do Povo. Era amado como mais um qualquer que vivesse nas favelas e falasse palavras erradas e fosse motivo de galhofa por via do anedotário que sempre o acompanhou. Pelé veio do meio dos pobres mas era o menino certinho, o rapazinho inteligente que fazia tudo como devia ser feito porque estava para lá dos humanos numa guerra particular entre ele e Deus, uma guerra que ele inventou e alimentou, mesmo sabendo que, no fim, sairia derrotado. Não teve medo da derrota. Convenceu-se, lá bem no fundo de si próprio, desde o momento em que abandonou a sua cidade natal de Três Corações, em Minas Gerais, que ser homem não bastaria para poder cumprir as suas ambições. E foi homem não sendo porque, em seu redor cresceu o mito.

Vila Belmiro foi sempre um estádio pequeno para Pelé, até mesmo homem, último dia que passou na face da Terra. Talvez devessem ter levado o seu corpo para o centro do Maracanã, para junto da baliza em que Ghiggia marcou o golo que atirou, em 1950, o Brasil para aquele complexo vira-lata do qual falava Nelson Rodrigues. Porque foi Edson Arantes do Nascimento que terminou com ele nos convenceu, até agora, que os brasileiros são os melhores do mundo, os reis do futebol, os eleitos para levarem até ao olimpo onde vivem todas as divindades a arte de um jogo que passou para além do simples movimento de homens que correm atrás de uma bola como meninos que se recusam a crescer.

O mito renasce No cruzamento da Rua Tiradentes com a Avenida Princesa Isabel as gentes falavam em uníssono. Pelé quis um funeral em família, sem muita gente em seu redor na hora de baixar ao túmulo, seja feita a sua vontade, foi assim que viveu, popular e distante ao mesmo tempo, ele que falava de Pelé na terceira pessoa do singular como se Pelé não fosse ele mesmo, como se Pelé fosse a reencarnação de um ser imortal descido da Via Láctea para fazer com que em todo o mundo se falasse do seu advento.

Um dia antes de o Brasil se estrear no Mundial do México, em 1970, um jornal pessimista resolveu berrar em manchete: “Pelé! Jogai por nós!” Já não era apenas ele a reclamar a sua faceta divina, era um país inteiro que se inclinava perante o seu rei convencido de que só ele o poderia conduzir para lá dos horizontes da glória. Ontem, vinte e quatro horas depois de o seu caixão te sido colocado no centro do relvado de Vila Belmiro, campo do Santos, um clubezinho suburbano de São Paulo que ele transformou numa lenda, seis homens de preto ergueram-no aos ombros e percorreram com ele as ruas de Santos, atravessando a Ponta da Praia, a Aparecida e Embaré, passando em Canal 6 onde Dona Celeste, sua mãe, com 100 anos, continua com o coração a bater no peito embora já não saiba quem é essa Dona Celeste que trouxe ao mundo, no dia 23 de outubro de 1940 um rapazinho que foi registado com o nome de Edison Arantes do Nascimento para homenagear Thomas Alva Eddison, o responsável pela recente iluminação pública de Três Corações. Não, Dona Celeste não consegue já distinguir o motivo de toda aquela agitação que se desenrolou à sua porta, olhos perdidos no infinito, memória desmanchada em lapsos temporários que não fazem sentido num só.

A lembrança coletiva toma conta dos homens todos, até daqueles que eram crianças ou ainda nem sequer nascidos quando Pelé, nas cidades do México, foi para além do que Deus lhe tinha autorizado. Por isso eu digo: vai ter de prestar contas ao Padre Eterno no preciso momento em que der o primeiro passo para lá dos portões de São Pedro. De repente foi Sérgio Rodrigues que escreveu em O Drible: «Estamos em 1970, a bola é passada pelo Tostão e, aí é que está, Pelé já é Pelé. Está farto de saber que é um mito, um semideus, o que tem a perder tentando ser um deus completo? Aí ele não faz o certo, faz o sublime. Troca o caminho batido do gol, o gol certo que tinha feito tantas vezes, pelo incerto que, como veremos, jamais faria”.

Em Lisboa, já noite, tudo na mesma, isto é, a vida corre. Sintonizem a Globo. Releiam o atestado de óbito: “Edson Aranres do Nascimento morreu no dia 29 de dezembro de 2022 pela 15h27 em decorrência da falência de múltiplos órgãos, resultado da progressão do câncer de cólon associado à sua condição clínica prévia”. Palavras, só palavras. Insuficiência renal, insuficiência cardíaca, broncopneumonia? Isso é lá coisa que baste para matar Pelé, o imortal, o eterno Pelé?

230 mil pessoas em Vila Belmiro. Adeus ao Rei, adeus.

Estranho! O perpétuo Pelé desconfiava da possibilidade de não ser imperecível? Por que outra razão deixaria escrito que que queria que o seu cadáver fosse depositado a pouco mais de um quilómetro dali, segundo andar do mausoléu do cemitério Memorial Necrópole Ecumênica? Comprou a campa em 2003. Mentiu-nos em silêncio. Ninguém lhe perdoará a fraqueza de ser um homem como os demais.