Charles Simic. “O mundo é velho, nunca foi outra coisa senão velho”

Aos 84 anos, morre o autor norte-americano de origem sérvia, um poeta que viu o perigo de a História se tornar uma espécie de moral absolutizante, e de nos vermos encerrados na retórica degenerada que permite que os crimes prossigam e os inocentes sejam chacinados “enquanto um tipo na televisão arranja desculpas”.

O poeta morreu de complicações associadas à demência. É quase uma piada e ele não a desaprovaria. Se procurarmos bem, o mais certo é que tenha chegado a anotar essa hipótese nalgum verso ou ensaio. Numa entrevista que deu à Paris Review, em 2005, admitia que, mesmo quando já estivesse estirado no seu caixão, era provável que dessem com ele a emendar algum poema, isto dada a sua lendária tendência para nunca os deixar em paz, mesmo depois de publicados. “É muito raro conseguir puxar um de cabo a rabo de uma só vez. Na maioria dos casos, o que faço é andar a amanhá-los até não saber mais que volta lhes dar. Não guarda antigas facturas, mas imagino que nalguns casos tenham passado por centenas de versões. Mas há um perigo de se estar sempre a mexer-lhes. Já dei cabo de muitos poemas, sufoquei toda a vida que havia neles não permitindo que me escapassem com algum aspecto mais tosco ou desajeitado, sem sentido ou mesmo inepto. Às vezes, essas ‘fraquezas’ são o que dá ao poema o charme que o sustenta, mas não é muito fácil saber-se até tentarmos melhorá-lo.” Isto pode levar à demência, e pode a morte às vezes intrometer-se para não deixar estragar um verso. Charles Simic, que morreu na segunda-feira, dia 9, aos 84 anos, foi toda a vida um caçador de estremecimentos, alguém que escrevia sobre coisas perecíveis tantas vezes de modo imperecível, cercando aquela vida despontante que é das primeiras coisas que se perde se vivemos imersos no ruído enfático das notícias, seja por zelo ou receio, atentos à mudança das condições de vida ou ao humor dos mercados, à queda das nações ou à destruição das cidades. Aquilo que nos dizem ser o mundo, esse drama que parece brotar do seio da história, muitas vezes não passa de um obstáculo a essa beleza casual que estende o pulso a quem se demora nas suas próprias observações. Dusan Simic – só mais tarde mudaria o nome para Charles – nasceu a 9 de Maio de 1938, em Belgrado, capital da Jugoslávia. A mãe era uma professora de voz e o pai um engenheiro que, depois de ter sido várias vezes preso, cruzou a fronteira para Itália, em 1944, esperando ver-se reunido à família logo depois. A família só viria a reunir-se debaixo do mesmo tecto uma década depois, já em Nova Iorque. Dusan a mãe e o irmão ainda foram presos pelas autoridades comunistas antes de obterem passaportes, atravessando as fronteiras da Europa e testemunhando o pandemónio em que o Velho Continente se viu transformado após a Segunda Guerra. Simic tinha 15 anos quando conseguiu finalmente juntar-se ao pai nos EUA, em 1954. Aos 21, tendo começado a publicar, a sua escrita transparecia o quanto a sua imaginação fora moldada pelo desastre, pela perseguição, pelo esforço de sobrevivência, entre a fuga de Belgrado e até obterem em Paris o visto para os EUA, depois de uma série de complicações burocráticas.

Um dos últimos poetas apreciado pela crítica e pelos seus pares e que viu a sua obra ser traduzida e publicada um pouco por todo o mundo, Charles Simic venceu o Prémio Pulitzer em 1990 com o livro The World Doesn't End e foi poeta laureado em 2007, nos EUA. Entre nós foram publicadas duas recolhas antológicas com um intervalo de década e meia entre si, a primeira na Assírio & Alvim, da responsabilidade de José Alberto Oliveira – Previsão de Tempo para Utopia e Arredores (2002) –, a segunda chegou-nos pela mão de Francisco José Craveiro de Carvalho, com o título O último soldado de napoleão (2018). Ambas pouco ambiciosas no que à representação da obra de Simic respeita, sendo que o autor, além dos volumes de crónicas e ensaios, publicou cerca de 30 recolhas de poesia, são ainda assim amostras expressivas da tensão perfeitamente burilada dos seus concisos versos, que criam cenas e quadros sem definhar na escatologia desse regime ora mais sentimental ora mais confessional do lirismo que vai saindo como fruta da época, mas enleando imagens ou impressões estrepitosas, entretecendo o seu folclore artificial, e fazendo suceder remendos engenhosos e subtis apontamentos que têm o sabor de uma santidade pesada e íntima. “O dedo a tremer de uma mulher/ Percorre a lista de vítimas/ Na noite da primeira neve.// A casa está gelada e a lista é longa.// Estão lá os nossos nomes todos.”

 

Aqui assumem precedência a estranheza e a inquietude, os signos inesperados, imagens que vão tramando de forma astuciosa a expectativa do leitor. Através da ironia e do humor, Simic impõe uma gravidade específica nos seus versos, e mesmo a aparente ligeireza arrasta sempre algum elemento de ansiedade ou rodeia uma questão dolorosa. Seamus Heaney notou que a atracção de Simic pelo fulgor inusitado das imagens surrealistas não redunda numa forma de abandono ou desleixo, e que “as suas metáforas e mises en scène estão sempre sujeitas à força G do sofrimento humano”. Por outro lado, Simic escapa também a um certo pendor moral, e não há nele aquele reles aconchego para com o destino que passa por construir com o leitor uma empatia baseada numa certa noção de decência ou bondade, o que o afasta da massa sensaborona dessas boas almas que empurram a poesia para um ensaio das gerais virtudes e que a torna outro dos regimes da mera cordialidade. Heaney sinaliza uma certa duplicidade na poesia do sérvio, indícios que nos surgem espalhados pela sua obra de que “há sempre uma vida de porão” debaixo do piso térreo, poemas que tratam das figuras que passam em segundo plano ou em fundo. O irlandês destaca ainda nesta poesia o “estranho dom de abrir caminho para o interior de uma consciência mítica e depois para o exterior, na direcção do mundo”. Sem se filiar em nenhum movimento, uma das características mais distintivas da sua poesia vem talvez da sua rotina de escrita, do hábito de escrever pelas primeiras horas da manhã, ainda deitado na cama. “Quando escreves na cama”, disse ele numa entrevista ao Boston Globe em 2015, “não tens a sensação de estar a fazer uma coisa demasiado importante. Nos últimos tempos tenho viajado, visitado instituições europeias, e eles colocam-te sempre num espaço belíssima para poderes trabalhar, sítios com vista para algum rio e com uma secretária imensa. Fico intimidado por essa coisa toda, sinto que nunca conseguiria escrever nada nessas condições. Mas quando estás deitado na cama, tudo aquilo embala num registo bastante casual. Mais parece que estás simplesmente a rabiscar umas coisas.” Há um gozo pelo devaneio, um desejo de escapar à farsa externa e tropeçar nalguma verdade interior. As suas imagens parecem ao mesmo tempo elaboradas e imprevisíveis, mas aparecem num estilo narrativo directo e simples, mesmo se elíptico. Na entrevista à Paris Review, em 2005, explica que o seu intuito sempre foi o de forjar um estilo despretensioso e prosaico que pudesse surpreender o leitor ao transmitir mais do que se revela à primeira vista. “Por outras palavras, eu queria um poema queaté um cão pudesse entender. E, no entanto, gosto de palavras estranhas, imagens invulgares, metáforas que causam sobressalto e de uma dicção voluptuosa, assim, só uma espécie de monge num bordel, a mastigar um pedaço de pão seco enquanto observa as meninas a beberem champanhe e a cirandarem nas suas roupas íntimas rendadas.”

A busca de uma voz pessoal levou-o a desenvencilhar-se dessa cultura que se faz da exibição da bela alma de estetas e intelectuais, e que na verdade não passa de espuma, daí o seu interesse pelos surrealistas, e mais especificamente por esse galante percursor que foi Apollinaire, explorou as vanguardas modernistas, sendo que inicialmente escrevia apenas por desfastio, tendo durante uns anos ambicionado tornar um pintor, mas acabou por se dar conta de que não tinha especial talento e soube abandonar a tempo essas pretensões. Nas suas memórias (A Fly in the Soup, 2007), recorda com entusiasmo o momento em que descobriu uma antologia da poesia contemporânea latino-americana organizada por Dudley Fitts, uma obra que foi decisiva no seu percurso, e que o levou a querer levar a sua cadeira e sentar-se no meio daquela turma onde figuravam nomes como Borges, Neruda, Guillén, Octavio Paz, Drummond e Jorge de Lima, e que o fez reconhecer a vitalidade daqueles personagens que não puderam ir à boleia de outra coisa senão do seu impiedoso génio cultivando uma nada cerimonial abordagem do modernismo, combinando elementos do surrealismo, dos misticismo e do erotismo, e foi ali, ao deparar-se com esses ecos de uma experiência mais aguda da própria inferioridade que aqueles poetas emergiam com uma força criativa que fez Simic pressentir que o que se publicava nas revistas literárias norte-americanas era uma poesia, por comparação, “bastante tímida”, séria, sofisticada e pomposa, mas inábil e tantas vezes tediosa. Em larga medida, este diagnóstico continua a actual, e justifica o seu diagnóstico de que o tempo dos poetas menores viria a impor-se… (“Adeus Whitman, Dickinson, Frost. Bem-vindos vós cuja fama nunca passará da família mais chegada, e talvez um ou dois amigos íntimos reunidos depois do jantar à volta de um jarrão de rude vinho tinto…”) Cada vez serão mais raros os óbitos de poetas dignos de serem registados como outra coisa senão incidentes locais, que dizem respeito àquele provinciano convívio nocturno, numa altura em que os poemas já não são lidos, e os poetas foram burocratizados, mantendo o seu sacerdócio mais ou menos intacto, as suas celebrações rituais e espiritualmente estéreis. Sendo embora um excelente poeta de segunda linha, Simic escapa à irrelevância pela sua clara noção de que “a necessidade da poesia” deve contornar o regime de impostura a que se entregam esses prepotentes, regateadores e convencidos, buscando um confronto destemido com o mundo, dando conta da realidade, e superando as fórmulas convencionais, o registo insípido e esse modo inchado do poeta que se julga o centro de qualquer coisa. Num poema autobiográfico com o título “Cameo Appearance” ele começa por se reconhecer como um desses actores com um pequeno papel, sem falas, tomando parte num épico sangrento, e vendo-se como mais um dos tantos que tentam resgatar a sua humanidade enquanto escapam de alguma dessas cidades bombardeadas. A camada história está sempre presente como uma vertigem que ameaça sufocar-nos, e Simic parece esse rapaz que se defende e ao seu fascínio reparando em detalhes, coisas sem importância, vidas que escapam a qualquer contabilidade afectiva. Os insectos, por exemplo, começaram a aparecer por todo o lado nos poemas de Simic, e questionado sobre esta fixação, na entrevista à Paris Review, ele admitia que sempre teve uma grande curiosidade em relação a essas pequenas criaturas seguindo alegremente o seu caminho, tratando dos seus assuntos, indiferentes à marcha da história e à grande escala. Simic chega mesmo a traçar uma espécie de nosologia dos bichos: “As moscas são neuróticas, as traças são maníacas, já no que toca à serenidade é impossível bater uma borboleta. Até as formigas me parecem muito interessantes. Quando era miúdo costumava pisá-las por pura maldade ou por tédio. Hoje não sou capaz de fazer mal a uma pulga que me esteja a morder.”

Não é que Simic se relacionasse com a história como um inimigo, mas às tantas parece ser essa grande escala que vale a pena ser enxotada. E para repor um sentido das proporções entre nós e o mundo, ele gostava de se focar nesses elementos indefesos, e o seu desejo de escapar à violência fica expresso das formas mais variadas, sobretudo no esforço para não se ser reduzido ao terror e aos aspectos mais grotescos da verdade humana.  Numa das suas crónicas citava um excerto bastante significativo de uma entrevista que leu à poeta Valzhyna Mort: “O que mais amo na natureza é o modo como ela é indiferente a nós, e ao sofrimento humano. Enquanto para aqui estamos ocupados com as nossas pequenas ou grandes tragédias – o vento sopra, as folhas sussurram-se umas às outras nas árvores, as flores desabrocham e morrem – há um grande conforto nessa indiferença.” Simic concorda. Toda a sua obra poética é atravessada de uma subtilíssima atitude de insubordinação, e talvez isto se explique pelo facto de ter crescido numa cidade sitiada. Tinha apenas três anos quando a um domingo, a 6 de Abril de 1941, com a invasão da Jugoslávia pelas tropas nazis, tendo esta sido precedida de um bombardeamento maciço de Belgrado pela Luftwaffe. Três anos depois, a 16 de Abril de 1944, num domingo de Páscoa, a cidade era novamente bombardeada, agora pelos Aliados, tendo na mira alvos alemães. Nas suas memórias, Simic registra essa “dúbia distinção” que a sua cidade-natal ostenta ao ter sido bombardeada pelos nazis, depois pelos Aliados, e, finalmente, em 1999, pela NATO. Se as memórias se focam mais na sua formação enquanto escritor, é fácil perceber a força que teve aquela infância, aqueles primeiros anos numa cidade sujeita aos bombardeamentos aéreos. Anos mais tarde, Simic recordaria como enquanto as bombas caíam, no porão onde ele e a sua família buscaram abrigo o que se ouviam eram gargalhadas.  “Os sérvios em geral têm um grande sentido de humor”, disse à Publishers Weekly em 2013. “Ouvíamos bombas a explodir nas imediações, e esse é um som que nunca mais se esquece, é como se no interior Terra algo estivesse a revolver com um estrondo profundo. Mas nisto, alguém se lembrava de fazer uma piada e todos nós ríamos como perdidos. É esse o verdadeiro sentido do humor negro. E acho que é dessa forma que se sobrevive.” E este tipo de humor que encontramos na sua poesia, esse gracejo que tenta contornar os aspectos mais dolorosos da existência, desviar a atenção através de um golpe de prestidigitação, buscando um elemento de fascínio que sirva para se evadir: Nos versos finais de “Happy end” lê-se: “Nessa noite encontrei uma espécie de anjo/ Tens lume perguntou ela/ Quando eu lhe desapertava o vestido/ Já havia muitos deles/ Que tinham trepado para o tecto/ Amantes chamavam-lhes e seguravam/ Rosas entre os dentes enquanto a Primavera/ Prosseguia para lá das grandes janelas abertas/ E até um pau usado para bater em crianças/ Floriu junto à estrada tortuosa/ Que um palpite me mandou seguir”.

 

No fundo, a poesia funciona quase como uma compensação face ao registo jornalístico e da reportagem que triunfou em toda a linha e acabou por denegrir a imaginação e essas estratégias dos homens para se libertarem do fatalismo noticioso, que não é senão outra das formas de sujeição, e até das mais cruéis, uma vez que deixa as vítimas sem a capacidade de escaparem a essas narrativas que a todo o momento apenas reforçam a arbitrariedade do poder e da violência que este exerce sobre nós. “As notícias do dia são sempre velhas notícias. Os inocentes são massacrados e alguém algures arranja desculpas”, lê-se numa crónica de Simic com o título “Inferno portátil”. E o poeta acrescenta que o mesmo tipo de lunáticos que fizeram do mundo aquilo que ele era quando eu era miúdo ainda por aí andam. Os seus nomes mudaram, as suas nacionalidades e as suas causas também, mas continuam tão dementes e sedentos de sangue como dantes.” E, mais à frente, Simic deixava claro qual é a principal forma de violência a que estamos todos diariamente sujeito, essa indústria da consciência, esse “inferno portátil, do tipo que cabe confortavelmente na tua cabeça, apesar da vasta multidão de condenados e de todo o fogo e fumaça, é com isso que tu ficas depois de leres as notícias do mundo por estes dias”. As notícias e as suas análises, reforçadas por aquele conteúdo rançoso das opiniões, com essa retórica que se poderia estender até ao infinito pois não passam de um entreçaçar de observações que nunca são reveladoras, pois não tocam nada de fundamental sobre o mundo, não advém de um olhar penetrante, e servem-se do regime da objectividade para se furtar a uma visão e um exame mais consequente, sendo apenas o trabalho meticuloso da inteligência para firmar uma intriga sem saída, em que, por fim, se perde toda a noção do certo e do errado. Como antídoto a isto, Simic preferia aquele riso soberano de quem se salva enquanto caem as bombas, e impôs essa sua lente e essa clareza metafórica, com o seu elemento alucinatório capaz de sobrepujar a mediocridade dos juízos daqueles que recebem a sua deixa dos jornais diários. Anos mais tarde, confrontando as suas memórias com a de outros refugiados que, como ele, poderiam ter-se referido a Hitler e a Estaline como os seus “agentes de viagens”, ele chegou à conclusão de que tinha crescido num matadouro. “Não estávamos apenas sob ocupação, mas desenrolava-se uma autêntica guerra civil com múltiplas facções guerreando-se entre si. O sangue nas ruas não era uma figura de expressão, mas uma coisa que eu vi uma e outra vez. Não há dúvida de que isto teve muito a ver com a minha forma de encarar a vida. Ter visto pessoas inocentes a serem mortas – essa foi a primeira das minhas lições. Sempre que ouvia falar de uma ‘guerra justa’ em que milhares de inocentes tinham morrido ou iriam morrer, sentia a pele a descoser-se da revolta que isso me causava”, confessou na entrevista à Paris Review.

 

James H. Billington, o responsável da biblioteca do Congresso norte-americano à altura em que Simic foi escolhido o poeta laureado em 2007, disse ao The New York Times que aquilo que singularizava os seus poemas é a forma como nos atiravam no tipo de sequências que encontramos nos sonhos, e que por isso estes constroem uma realidade que não corresponde com a realidade de que nos vamos dando conta através dos nossos olhos e ouvidos. É de admitir que os nossos próprios sentidos e percepções tenham acabado contaminados por essa razão amaldiçoada que vive dominada pelo terror. E é no intuito de escapar ao seu sufoco, à obstinação doentia com que este nos empurra para a indiferença, que, por vezes, não há melhor solução do que refugiarmo-nos nalgum porão, contarmos uns aos outros os nossos sonhos, retirando lições da folga que estes oferecem. É este o exemplo que se retira dos verdadeiros artistas, aqueles que ganham este poder aprendendo com o arquimestre nocturno e se abalançam enquanto fabricantes diários de sonhos. Num sonho, como nos diz Witold Gombrowicz, tudo está prenhe de um significado terrível e inconcluso, nada é indiferente, tudo nos alcança mais profundamente, mais intimamente… “É esta a lição: um artista não pode limitar-se ao dia, ele tem de alcançar a vida nocturna da humanidade e procurar os seus mitos e símbolos. Também: o sonho destrói a realidade do dia vivido e dele extrai certos pedaços, fragmentos bizarros, ordenando-os de forma ilógica num padrão arbitrário – mas para nós esta falta de sentido é precisamente o mais profundo significado; perguntamos porquê, em nome do quê, é que o nosso senso comum foi destruído. Ao olhar para o absurdo como para um hieróglifo, tentamos decifrar a sua razão de ser, da qual sabemos apenas que é, que existe… A arte, por isso mesmo, também pode e deve destruir a realidade, despedaçá-la nos seus elementos, construir novos mundos ilógicos a partir dela – nesta liberdade jaz oculta uma lei; violar o sentido exterior conduz-nos ao nosso sentido interior.”

 

É este o regime de sedição com o qual está comprometida a poesia escrita por Simic. Afastar-se o mais possível do pisar rítmico de botas de cano alto que a todo o momento entram a marchar, que se intromete até nos passeios de domingo e na forma como as famílias saem e andam em círculos. Aos poucos, damo-nos conta de que toda a ordem social, todos os sistemas, a autoridade, a lei, o Estado e o governo, as instituições, tudo se baseia nestes escravos, que ainda há pouco eram crianças, levadas pelas orelhas, forçadas a jurar uma obediência cega e, até, em alguns casos, treinadas para matar e se deixarem matar. Ora, Simic, recordava numa das suas crónicas como, depois da guerra, os miúdos que até então viviam amatilhados nas ruas, livres da vigilância dos adultos, entregues às suas próprias intrigas e guerras, que, no fim, se saldavam como todas as brincadeiras, sem um número de mortos, estes miúdos deram-se conta de que o período de diversão ilimitada chegara ao fim. Seriam obrigados a voltar para a escola. A guerra terminou um dia antes do aniversário de Simic, 9 de Maio de 1945, e a notícia ouvida na rádio, curiosamente, foi tudo menos um presente. “Ainda que fosse um estudante mediano, eu detestava ir à escola, mas foicei-me a fazê-lo até ao sexto ano, altura em que comecei a fazer gazeta e, às tantas, deixei mesmo de lá pôr os pés, sem que a minha mãe soubesse. Passei uns poucos meses a vaguear pelas ruas de Belgrado até a escola dar pela minha ausência e os polícias terem ido avisar a minha mãe. Enquanto o tempo estava ameno, podia passar as horas que era suposto estar na escola a dar longos passeios, mas assim que as chuvas de inverno e o frio se interpunham, via-me obrigado a esconder-me nos corredores ou enfiar-me nas salas de cinema nas raras ocasiões em que tinha algum dinheiro. É claro que passava a maior parte do tempo sozinho e a sentir-me miserável, mas nunca me sentia aborrecido, e às vezes até era tomado do júbilo de me dar contra de tantas coisas estranhas e fascinantes: Se alguma coisa fez de mim o que sou foi ter vivido como um vagabundo nas ruas de Belgrado.”

De um certo modo, a poesia nasce de um desejo de coerência face a si mesmo e da noção de que não se pode evitar o confronto com o mundo, e que, ainda que se trate de uma batalha perdida, só essa luta será capaz de nos revelar quem somos. Assim, nada há a exigir a um poeta além dessa centelha de rebelião que liberta a sua própria realidade, e que faz dele alguém que não é inteiramente deste mundo. “A poesia, em meu entender, é a defesa montada pelo indivíduo contra todas as forças que se organizam contra ele. Cada religião, cada ideologia e ortodoxia do pensamento ou regime de boas maneiras quer reeducá-lo e fazer dele outra coisa. Que nos guiemos pela mesma pauta quando cantamos é o ideal. Um verdadeiro patriota não pensa pela própria cabeça, dir-te-ão. Tenho-me dado conta de que há uma longa tradição na poesia de não se falar a verdade ao poder, e, de se ser até um desses apologistas rastejantes. Simplesmente, nunca tive isso em mim”, vinca Simic à Paris Review. Por outro lado, quando o entrevistador lhe pergunta o que recomendariam a um poeta que estudasse, ele responde que não há nenhum curso de preparação para a poesia. “Quatro anos a escavar túmulos com um bom volume de poemas ou um livro de filosofia no bolso pode ser tão ou mais instrutivo que matricular-se numa universidade qualquer.” Assim, para quem viveu a sua vida, gozou ao limite os seus erros próprios, sem acatar as orientações que o levariam a viver a de algum cidadão exemplar, é natural que no fim se estivesse nas tintas para a posteridade. E é isto que se lê nuns versos de 1975, no poema que dava o título ao livro “Further Adventures of Charles Simic”. E que assim começa: “O nosso Charles Simic tem medo da morte?/ Sim, Charles Simic é desses que a temem./ E é dos que se ajoelham e suplicam pela vida eterna?/ Não, está ocupado a desenhar corações com um lápis de cera.”