Por Joana Faustino e Felícia Cabrita
Sete das vítimas de abusos sexuais em instituições da Igreja suicidaram-se, segundo o relatório da Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, que este organismo apresentou ontem.
O documento estabelece o perfil do abusador e a forma como estes abordavam e silenciavam as crianças: nas mais de cinco centenas de testemunhos validados, a maioria das vítimas confessou que os religiosos nem precisavam de falar para os convencer de que lhes deviam obediência, sendo o agressor visto quase como um Deus.
Para os elementos da comissão, este aspeto é “revelador da perceção do direito/poder que o adulto sente em relação à criança sobre a qual age sem que nada lhe seja devido verbalizar”, sendo este “nada” traduzido na proximidade silenciosa, não comunicada e incomunicável por parte da criança.
F., nascida na década de 60, tornou-se num dos alvos, quando tinha apenas 4 anos. Andava num colégio religioso de uma grande cidade e ainda hoje guarda o agressor intacto na memória: a cara, o cabelo, as mãos.
Saía da escola na sua farda com saia curta. O homem que acompanhava o motorista sentava-se ao seu lado na carrinha da escola. O tempo do trajeto era acompanhado de carícias e toques em zonas erógenas. A partir de certa altura, no regresso da escola, passou a ser a última menina a ser entregue à família. O percurso parecia não ter fim.
O homem observava-a no recreio e ela lembra-se de o ouvir dizer “Olá Piasca, vemo-nos mais logo”[piasca: pequeno pião que se joga entre os dedos].
Quando era mais velha, sentava-a nos últimos lugares da camioneta: “Metia as mãos dentro das saias e das cuecas”.
A contradição da manipulação do abusador é difícil de gerir. Hoje, questiona: “Sabe que senti a falta dele? (…) Não sei se gostava, já viu o nojo?”.
Já em adulta, voltou ao colégio e perguntou ao porteiro pelo homem. O outro responde: “Esse já não está cá, não era dos nossos”.
A vítima confrontou a sua antiga educadora com a experiência e esta, “com o ar mais natural do mundo”, respondeu-lhe: “Ah… também?”.
A purificação “A aproximação da vítima é mesmo levada ao extremo quando o privilégio, a omnipotência espirituais da pessoa abusadora são invocados como razão para o abuso e para a sua normalização”, lê-se no relatório de quase 500 páginas esta segunda-feira divulgado e que conta com testemunhos de mais de cinco centenas de vítimas.
“Anda cá, moça, estás ao meu serviço, estás ao serviço de Deus”, disse um dos agressores a uma das vítimas citadas. Esta era a forma de um dos pedófilos da Igreja atrair as meninas. Substituindo-se a Deus no imaginário infantil, justificava-lhe os “pecados”.
Sendo as pessoas abusadoras vistas como símbolos de um certo estatuto, bem como portadoras de um poder não apenas divino, mas também social e cultural em determinados meios locais, as palavras utilizadas para dominar as crianças tomavam a forma de imperativos, ordens e regras inquestionáveis: “Mandava fazer o que queria”. E tudo isto se resumia “à vontade de Deus” são duas das muitas expressões.
“Disse-me para irmos passear. Eu achei que era normal, já que, na altura, e para mim, o padre era o representante de Deus na Terra”, relata uma das vítimas.
Outra estratégia de coerção passava pela “purificação”, em que o abusador argumentava que o ato que ia sofrer era para se verem livres de possessões, tirando-lhe assim “o diabo do corpo”.
Em cerca de metade dos casos, o agressor não era um desconhecido da vítima nem da sua família, sendo muitas vezes até “idolatrado” pelos membros daquela comunidade.
Num dos depoimentos, a vítima conta que o agressor já nem “precisava de dizer nada” e que era “muito carinhoso e protetor, idolatrado”, tanto pela própria vítima como pelas “pessoas da família”.
A recompensa Nesta relação de poder e de domínio, o abusador entrava como cordeiro na privacidade da criança, de forma a “criar vínculos de apoio e suporte à vítima e/ou à sua família próxima, manipulando a sua perceção dessas fragilidades: emocionais, escolares, familiares, económicas e ainda espirituais/religiosas como ponto de partida para o abuso”.
“Apoiou muito a minha família durante diversas situações complicadas”, relata uma das vítimas. “Dava dinheiro, prometia coisas a nós os mais pobres”; “Dava-nos uns dinheiritos, a pobreza era muita!”, contam outras.
De forma a comprometer a família e, com ela, controlar possíveis denúncias, algumas das vítimas referem que, após o abuso, surgiam recompensas, não consistindo estas apenas em benefícios financeiros. Como engodo, faziam-lhes chegar comida, livros, mas também as guloseimas cobiçadas pelos mais pequenos. Para alimentar a devoção das famílias, mais ou menos o mesmo do que aliviar o estômago, seguiam imagens de santos e medalhas.
O local O espaço para os abusos também era calculado. Se o confessionário apresentava características propícias para a cobiça dos sacerdotes, muito acontecia à porta fechada, livre de olhares policiais. Nesse sentido, uma parte expressiva das vítimas responde que a aproximação foi feita através do aliciamento de uma visita a um local reservado (uma zona confidencial/resguardada da igreja, como a sacristia) ou uma zona privada da pessoa abusadora, como o seu quarto na residência paroquial, um gabinete pessoal ou uma sala particular.
Os testemunhos das vítimas relatam abusos que ocorreram tanto nos seminários, na igreja, no confessionário e na casa paroquial (sendo estes quatro os lugares mais comuns da ocorrência do crime), como também no carro, na escola, na catequese ou na sede, acampamento ou atividades de escuteiros.
“Chamou-me ao quarto e, alegando dores de barriga, solicitou-me que lhe fizesse uma massagem. Depois pegou na minha mão e colocou-a no órgão sexual e forçou (ensinou-me) a fazer a masturbação”, relata uma das vítimas.
Outra afirma que o abusador, neste caso professor, “marcava os encontros filosófico-religiosos na casa dele e depois” faziam “sessões de nudismo e de oração ao cosmos”.
A viatura pessoal do abusador era outro dos lugares convidativos para o agressor à prática do crime. Foi aí que M., nascido na década de 70 numa região rural, perdeu a inocência. Estava com 15 anos, início da adolescência: “O padre dirigia-se a casa dos meus pais e levava-me para acolitar na paróquia dele que era vizinha da minha e levava-me também a passear no carro”.
A ameaça Depois do abuso consumado, o violador tinha de se proteger das possíveis denúncias. Impor o silêncio tinha muitas cambiantes: “Se contares, mato-te”. Já M., hoje com 51 anos, é mais pormenorizado: “Da última vez, mostrou-me a faca de cortar papel que tinha sobre a secretária, em tom de aparente brincadeira, mas evidentemente com um fim intimidatório, de forma a que eu não falasse mesmo no assunto. Comecei a ter muito medo e o silêncio passou a ser insuportável”.
Mas nem era preciso chegar tão longe. Em certos casos, o agressor dizia à criança que iria divulgar “o seu comportamento a outros membros da família”, fazendo-a sentir-se responsável, ou ameaçando-a com a fronha assustadora do demo.
Os preconceitos tão cozidinhos à pele dos lusitanos eram aliados dos abusadores: “Ameaçava a mim, aos meus pais, que ia contar e ia ser uma vergonha de homossexualidade para mim, pois eu estava a deixar e isso ele ia dizer que era porque eu gostava”.
“Gostaste? Agora, caladinho, que tenho o destino da tua mãe nas minhas mãos, não me esqueço”, lê-se num dos testemunhos divulgados.
As crianças eram colocadas numa posição de inferioridade e “desumanização”, considera a comissão, sublinhando que estavam ainda “numa posição de total incapacidade de defesa”, sendo que, por isso, nada mais lhes restava a não ser obedecer às ordens deste “representante superior”, que o abusador invocava ser.
A culpa deixa de ser um sentimento ocasional para passar a ser uma constante na vida das vítimas, sendo-lhes imputada a responsabilidade pelo que está a acontecer levando-as à total submissão: “Perguntava se eu queria ser perdoada, se estava mesmo arrependida, se queria ir para o inferno, se não queria ver mais os meus pais, ficar sem ir de fim de semana…”, narra uma delas.
Uma amálgama de sentimentos bloqueava as vítimas. “Quando saímos da água, claro que os boxers estavam colados ao corpo, eram brancos e fiquei totalmente exposto… Ele olhou e riu e disse que havia poucos da minha idade com um crescimento assim e eu até achei um elogio. Depois, não sei explicar como, foi menos de um segundo, ele baixou-me a roupa e eu não controlei e tive uma ereção. Claro que ele disse logo “ah, tu gostas disto” e começou-me a tocar lentamente e eu fui deixando, o que ia fazer, gritar, correr? Foi tudo muito rápido, ejaculei e, mal isso aconteceu, ele mudou a voz e disse algo como “grande porco, era mesmo isto que tu querias, és um ordinário” e foi-se embora e eu voltei sozinho para o acampamento, uns bons 20 minutos a pé”, contou ainda uma das vítimas.
Os agressores usavam o seu poder sem pudor, rindo frequentemente da criança que tinham à sua frente e verbalizando expressões como “tu precisas é disto”, enquanto apalpavam o próprio órgão sexual.
Os números De um universo de 564 testemunhos recebidos, 512 foram validados. Contudo, destes, apenas 25 seguiram para o Ministério Público.
Questionada pelo i se há algum sentimento de deceção face a este baixo número ter seguido para a Justiça, a Comissão, pelas palavras do juiz Álvaro Laborinho Lúcio, disse que não, justificando que “vivemos num Estado de Direito” e que não se pode, “de repente, querer condenar pessoas pela prática de atos que, num dado momento, caem no domínio da prescrição do procedimento criminal”.
“Se nós pegássemos nos 512 casos e enviássemos para o Ministério Público, fazíamos um ‘figurão’ e o próprio Ministério Público é que tinha de dizer que depois só se conseguiam acusar cinco ou seis”, referiu ainda, considerando que “não podemos esperar grandes resultados de um ponto de vista criminal”.
Destas vítimas, 52% são do sexo masculino e a média atual de idades é de 52 anos. Em média, os rapazes foram abusados pela primeira vez aos 11,7 anos e as raparigas aos 10,5. Para a comissão, esta diferença de idades pode ser justificada pelo facto de “as mesmas transformações pubertárias ocorrerem, de modo geral, mais precocemente no sexo feminino”.
Quase metade daqueles que agora apresentaram queixa falaram pela primeira vez na sua vida dos abusos que sofreram em silêncio durante décadas. Daqueles que acabaram por contar, 51,7% fê-lo com familiares, 22,6% com amigos ou colegas e 10,2% com um padre.
Para a comissão, estes dados revelam que “a Igreja Católica, como instituição, parece não ter sido encarada pela vítima como um lugar seguro ou confiável para se abordar o tema, nem dispor até ao momento atual de canais ou pontos de escuta acessíveis, próximos ou considerados isentos”.
Em mais de 65% dos casos, não foi tomada qualquer medida para afastar o agressor.
O relatório também realça que houve quem, por muito que pudesse querer tomar medidas em relação aquilo por que passou, nunca teve essa oportunidade.
Sabe-se que pelo menos sete pessoas vítimas de abuso sexual por parte da Igreja Católica Portuguesa desde 1950 puseram um fim à própria vida.
A acrescentar a estas, houve também quem pensasse frequentemente nisso e que inclusivamente tem tentado fazê-lo: “As notícias sobre este tema não mexem comigo. Não. Tenho 50 anos e já me reinventei várias vezes. Tentativas de suicídio sim, também. Da primeira vez que vocês quiseram falar comigo estive internada 3 meses”, revelou uma das testemunhas.
“Estou num sofrimento muito grande. Tive consultas de psicologia e psiquiatria. Neste momento estou sem apoio, porque não tenho capacidade financeira. Destruiu a minha vida, o abuso, e todo o procedimento desta diocese está a piorar tudo. Fiz 3 tentativas de suicídio, comportamentos auto-lesivos e ideação suicida. Tentei lidar com a situação como fui capaz, mas é mais forte que eu, é uma dor psicológica muito grande, há alturas em que não consigo pensar em mais nada. É uma grande angústia”, descreveu outra das vítimas.
Para quem carrega o sofrimento no coração, as marcas do passado são visíveis, algumas, a olho nu: “Fiquei com cicatrizes nos braços por tentativa de suicídio”. Há ainda relatos de quem repele qualquer tipo de contacto físico e de quem, levando consigo a dor psicológica, lembra a dor física da altura.
“Sangramento, estive hospitalizado dois dias e estive algum tempo sem conseguir andar bem”, conta uma das vítimas.
“Problemas no esfíncter anal”, revela outra.