Nuno Ramos. “Os artistas têm de se revoltar contra os curadores”

Nascido em São Paulo, no Brasil, em 1960, escritor e artista plástico, é também encenador, compositor e ensaísta. O seu trabalho tem sido distinguido por toda a parte, e teve por cá editado pela Cotovia o magnífico “Ó”, uma obra inclassificável, de uma graça expressiva e de uma voracidade de instinto que superam o melhor…

Nuno Ramos. “Os artistas têm de se revoltar contra os curadores”

Este escritor e artista brasileiro tem uma cabeça cujo peso é tão variável quanto as suas considerações, de tal modo que ela mesma é uma balança, e não pousa por muito tempo em nenhuma das suas tantas mãos. Ela tem o seu peso ligado a raízes que ficam longe, inquietas, tomando um balanço desde os rumores subterrâneos até ao convívio na copa alta onde se acolhem pássaros de todo o lado corrigindo as pautas musicais, mordendo os frutos estranhos e inesperados que pontuam aqueles ramos e que se enchem de uma vertigem absurda antes de cair e rolarem para longe. Nuno Ramos seria a resposta às preces de tantos dos que falam no marasmo da vida cultural e artística, isto se essas preces quisessem realmente ser atendidas e não fossem apenas outro vício de crentes sem fé, que ficam a coçar-se e a brincar nervosamente com o terço, sem paciência para um culto mais exigente.

Nascido em São Paulo, no Brasil, em 1960, além do já mencionado, é também encenador, compositor e ensaísta. O seu trabalho tem sido distinguido por toda a parte, e teve por cá editado pela Cotovia o magnífico “Ó”, uma obra inclassificável, de uma graça expressiva e de uma voracidade de instinto que superam o melhor que temos sabido exigir da literatura. E, no entanto, fala-se do nome dele por cá e, mesmo os que fazem de entendidos, têm dificuldade em localizá-lo, ou ter-lhe-ão perdido o rastro. Agora mesmo está cá, inaugurou uma exposição há dias na Galeria Francisco Fino, em Marvila, e que irá estar por ali até 11 de março com um percurso breve, mas que embrulha os sentidos, e coloca uma série de problemas. Há uma impertinência e um gozo satírico nas quatro peças em que o olhar segue mais sinais de ausência e precisa investigar, ouvir algumas gravações e testemunhos que se combinam num hábil e instigante ensaio que começa no texto de apresentação da mostra. A entrevista que se segue foi realizada em duas partes, a primeira em junho de 2022, depois de uma apresentação discreta do seu livro mais recente, Foquedeu, na Livraria Snob, ao lado de Gonçalo M. Tavares, que apresentava o seu Diário da Peste. A segunda parte ocorreu na passada terça, dia da inauguração desta exposição.

Como correu a sessão com o Gonçalo M. Tavares na livraria Snob?

Além da amizade, partilho uma certa semelhança intrínseca com o Gonçalo na forma como mexemos com muitos géneros, sendo difícil apontar um núcleo mais reconhecível nas nossas obras. Como se nos fôssemos perdendo, chegando a lugares estranhos e de cujas investigações acabamos por fazer o livro seguinte. Apesar de haver também muitas coisas que nos diferenciam, esse regime de indagação é o ponto que temos em comum. Também por isso é fácil conversar com ele.

Aqui em Portugal, um pouco à semelhança do que se terá passado também lá fora, o fenómeno do coronavírus veio espoletar uma espécie de reação em cadeia em que boa parte dos intelectuais pareciam ter-se transformado em filósofos instantâneos dessa crise de saúde pública, mas, até certa altura, o Gonçalo parecia ter conseguido resguardar-se desse regime da tagarelice e das teorias gerais, focando-se em detalhes, numa espécie de gramática assombrosa, firmando um discurso da rasura, cortando com os excessos emotivos, trazendo-nos de volta, no seu Diário da Peste, para aquilo que acontecia e que, de algum modo, se esquivava ao registo narrativo ou retórico. Impunha-se um certo choque ou estranheza, quase como se impedisse o pensamento de se autonomizar face à própria realidade. Como foi para si assistir e viver a pandemia, ainda por cima estando a seguir a crise num país que a viveu elevada ao quadrado?

A pandemia entre nós foi totalmente política. Depois do impeachment de Dilma Rousseff, houve no Brasil uma viragem para o horror político. Até hoje sinto ainda que não entendi muito bem como foi que nos colocámos numa situação destas. Sinto que não consegui construir uma réplica em termos de pensamento que me satisfaça enquanto eco daquilo que temos vivido, a barbaridade que se tem vivido naquele país. Terminei o diário Foquedeu quando o Bolsonaro foi eleito, e o posfácio do livro foi escrito já no primeiro mês da pandemia. Sinto que foi como se tivéssemos acordado num lugar diferente, como se um pesadelo se tivesse naturalizado, tomando conta das nossas vidas. E a pandemia tornou-se algo político na medida em que tivemos um presidente que foi o porta-voz do vírus. Era inacreditável o esforço que ele fazia para que mais gente morresse. Parecia uma psicose nacional.

Em que sentido?

Até ali o Brasil tinha uma tradição em termos de programas de vacinação excelente, e tínhamos condições para termos sido exemplares a esse nível. Por causa do combate à meningite nos anos 1970 havia postos por todo o lado e era das poucas coisas que funcionavam bem entre nós, tendo os militares apostado muito nesse combate. Até nisso ele falhou, dando margem para que o país se visse transformado num circo de horrores. Incitou as pessoas a irem para a rua, de tal modo que o esforço de contenção tornou-se uma questão privada, em que cabia a cada um informar-se e tomar as suas precauções, uma vez que o governo era apenas fonte de ruído. Isto também aponta para um traço muito característico da cultura brasileira, que é esta incapacidade para haver uma estratégia coletiva. Mas o meu diário trata, por isso, de um período prévio à pandemia, e é difícil estabelecer um paralelo com o do Gonçalo.

Qual é então o núcleo da reflexão ali?

Mostra uma transformação do Brasil, um país que sempre me pareceu algo medíocre, mas que parecia pelo menos estar a seguir o seu caminho na direção certa a partir dos anos 1980. Eram governos democráticos, lentos… E talvez este horror se tenha produzido por não termos feito os trabalhos de casa que nos eram exigidos. De algum modo essa viragem para a autocracia tem vindo a ocorrer também nos países do primeiro mundo, mas no Brasil é sempre mais violento, mais explícito, mais burro… É sempre uma oitava acima. O meu diário exprime este pasmo, talvez porque hoje eu esteja mais velho, e me seja mais difícil acreditar na realidade nova mesmo enquanto ela se desenrola diante dos meus olhos. No fundo, sinto que estava a tentar ligar de novo os pontos, e abarcar a realidade no pensamento. É ao mesmo tempo um livro que trata da invasão da vida privada pela vida pública, quase como se fosse uma situação revolucionária, mas com os princípios de ordem inversa, pois este é um momento loucamente conservador, onde as grandes questões nacionais só dão origem a três minutos de conversa entre as pessoas antes que elas fiquem de imediato divididas, entrando em conflito, às vezes da forma mais agressiva. Não há espaço nem tempo nem um tom de voz que proponha nada de remotamente construtivo.

Foi assinalado recentemente o bicentenário da independência do Brasil, e na altura a historiadora Lilia Schwarcz esteve cá, e numa entrevista que deu falou no sequestro da independência pelo Bolsonaro… Que balanço faz a partir dos debates que essa efeméride têm suscitado?

Acho que tem havido um certo desnudamento ideológico, mas o problema é que este não é capaz de produzir uma reversão… Há alguma coisa da ordem da democracia racial, da felicidade sexual, da acessibilidade social, como se as próprias classes hoje já convivessem mais e fossem mais abertas umas às outras, mas tudo isso, na verdade, o que possibilita é uma visão invertida, mostrando-nos um país profundamente racista, muitíssimo violento frente ao género feminino, bem como aos restantes géneros, e loucamente desigual. E parece que esta nova consciência tem permitido aparecer novas vozes, uma série de figuras vindas dos movimentos identitários, de pessoas que já não precisam de uma espécie de validação ou de licença da classe média para que se façam ouvir, e isto é, sem dúvida, muito bom, mas, ao mesmo tempo, não me parece haver um momento de reversão como me parece que os norte-americanos, apesar tudo, têm conseguido levar a cabo. Basta dar o exemplo do que aconteceu após o assassinato de George Floyd ou o movimento #MeToo, que são movimentos civis que têm uma potência de universalização enorme. Parece-me que, entre nós, o máximo que conseguiríamos fazer é algo de natureza profundamente conservadora, e que seria eleger o Lula. Hoje, a nível pessoal, estou-me lixando para a utopia, o que eu quero é que esse pesadelo acabe e que as coisas retomem um certo grau de normalidade democrática. Até posso ser muito crítico dos governos do PT, e reconhecer que o Lula tem todos os limites e falhas, mas neste momento, parece-me que esse o horizonte em relação ao qual devemos estar focados, e mesmo isso pode ser complicado, pois é quase certo que, no caso de perder as eleições esse imbecil [Bolsonaro] vai tentar o golpe. Assim, vamos ter de perceber se o Lula tem pulso para serenar os ânimos e segurar o país. Isto pode parecer algo extremamente conservador, mas eu só consigo desejar que possamos voltar ao ponto onde estávamos antes de toda esta turbulência política. De resto, não sinto que haja uma força de reversão pós-bolsonarista que possa levar a que estes dois pólos que se antagonizaram tanto possam voltar a ligar-se. O Brasil tem o pólo da grande política que faliu, cometeu haraquíri, e se, no pólo oposto, há muita coisa interessante pululando, não sei de que modo essas questões identitárias podem construir uma alternativa política. Porque essas forças parecem incapazes de coincidir entre si, e a sua captação acaba por gerar mais discórdia do que um programa comum, que possa afetar o próprio processo legislativo, como seria desejável que acontecesse. É isso o que me parece diferente do que acontece nos EUA, onde a transmissão entre estes movimentos e o poder é bem maior. Ali, entre a grande política e essa mais dispersa há elementos de conexão, e há transformações que estão a ocorrer ao nível das leis. Bolsonaro só não destruiu o que não enxergou, e nisso é incomparável com o Trump que, apesar de tudo, não conseguiu desmontar o puzzle da democracia norte-americana, ainda que tenha tentado. Bolsonaro é muito mais violento, ele é a violência instituída. E a violência nem sabe bem a que é que ela está a responder, e, no fim, essa parece ser a maldição dele, porque às vezes aquela violência parece consumir-se a si mesma. Porque é que ele se colocou tão decisivamente contra a vacina, e chegou a vir dizer que havia estudos que indicavam que havia alguma incidência de pessoas que tinham sido vacinadas e que tinham contraído HIV. Há coisas neste homem inexplicáveis, uma pulsão de morte… E isto, é claro, associado a interesses como os que estão empenhados em lucrar com a devastação da Amazónia, etc. Mas a destruição parece ser de facto o impulso que está ali em causa, e isso é politicamente algo inaudito. Se conseguir ficar no poder mais quatro anos acho que o país acaba, fecha. Mas se perder, como tudo parece indicar que vai acontecer, e se o golpe dele falhar, acho que iremos voltar para uma posição profundamente cautelosa, conservadora, mas num contraste enorme com ele, é claro, porque será um período de convalescença. É claro que isso ficará muito aquém do que o país neste momento precisa, mas, hoje, aos 62 anos, tenho a impressão que as minhas esperanças em relação ao Brasil se desvaneceram quase por inteiro. A única esperança que ainda tenha vem desses esforços políticos para afirmar novos direitos raciais, novos direitos sexuais… Mas nem são direitos, são proposições. E por mais que às vezes sejam extremamente radicais e até pouco inteligentes do ponto de vista estratégico, não fazendo distinção entre os seus inimigos e aliados, pelo menos parece-me que estão a ser capazes de alguma mobilização. Mas em relação a essa luta, é um jogo que eu não estou já a jogar, e sei que serei considerado quase um inimigo, mas, pelo menos, sinto que daí está a vir uma força verdadeira. Mas tudo isto perante uma figura como Bolsonaro pode muito pouco. Estamos a falar de alguém que durante a pandemia se punha a imitar as pessoas a sufocarem, fazendo troça. Nem Orwell se lembraria de descrever um líder assim, e contra ele a arte pode pouco, porque ele é, de facto, o inominável.

Tendo havido uma progressiva precarização do trabalho artístico, seja nas artes visuais como na literatura ou noutras formas de arte, a posição do artista perante a sociedade acaba por ceder a um desejo de agradar, submetendo-se aos géneros tipificados, quase como se voltasse à escola, escrevendo de acordo com a gramática que lhe foi ensinada no início. Um livro como “Ó”, que foi o seu livro com maior divulgação por cá, é um livro que se desvincula dos géneros literários, e que está constantemente a desafiá-los. Pelo contrário, na maioria dos artistas e escritores parece haver uma tendência para recuar, para se acomodar aos géneros. Sente que terá sido essa dupla posição enquanto artista plástico e escritor a gerar essa indisciplina, e, por outro lado, entende que de algum modo as convulsões sociais e políticas do Brasil podem ter também alimentado esse espírito inquieto e, a partir de certa altura, ter-lhe rebentado como uma granada nas mãos, impedindo que chegasse a um momento de afirmação da sua arte e do seu percurso?

No que toca à vida artística e à literatura em particular, creio que houve uma padronização do regime criativo, com a figura do editor a colocar-se no centro e a impor um fenómeno de editorialização da literatura, facilitando o trabalho de vender os livros a um público vasto. No Brasil isto é inegável, e ali o género tornou-se uma meta quase inescapável. É claro que a arte sempre foi uma forma de defraudar expectativas, e não faltam exemplos de artistas que sabem dar a volta ao género, e que reinventam o género à medida que a ele se entregam. Todo o trabalho significativo em arte refunda o género, ainda que não deixa de se inscrever claramente naquela tradição. No meu trabalho, acho que esse questionamento nem é assim tão consciente, mas é algo que vai ocorrendo à medida que procuro dar outro e outro passo. Comecei como escritor, e a certa altura senti falta de um corpo fora de mim, que foi o que as artes visuais logo me deram, uma possibilidade de confronto com a matéria. Não era já apenas a páginas em branco onde um punha um pouco de tinta, mas era um bicho fora de mim, e isso permitiu-me voltar à escrita com uma consciência mais lavada quanto às suas possibilidades também. É curioso porque em tudo o que eu faço sinto esta necessidade de testar noutro material e noutro género aquelas mesmas ideias ou impulso, como se este fosse criando o seu próprio eco já num outro veículo. O que é estranho é o quanto eu respeito cada veículo. Porque eu respeito a cultura, e acho que a promessa que ela nos faz é singular, e não quero ser aquele escritor que pinta, quero ser um pintor. Do mesmo modo, respeito a poesia, e, nos últimos meses, tenho-a escrito, e ando animado, eletrizado por sentir que ela está vindo. Sinto uma alegria grande de procurar um caminho nessas formas, e quero tentar ouvir essa chamada que me puxa para um género, e, por isso, há algo em mim que respeita o género. Não tenho nenhuma agressão básica a um género ou outro. Só tenho agressão face a algo que leve a uma diminuição desse impulso. Assim, apesar de ter destruído tanta coisa, de ter levado muita coisa ao limite, eu faço um mito da ideia de que a linguagem existe. No fundo, preciso conter o meu amor à retórica, e isso é possível porque acredito na linguagem piamente. Acredito que a linguagem presta um serviço, contém uma profundidade onde cabem as coisas. Nunca vi a linguagem como um veículo, ela é essencialmente ela é mesma. Isto é uma pobreza e é uma riqueza. Não consigo usar a linguagem para dizer isto ou aquilo, como se ela estivesse transmitindo. Nenhuma linguagem transmite nada, porque há ali uma opacidade enorme dela própria. E o diálogo com essa opacidade é muito importante para mim. Se isso se torna forte demais, a linguagem fica pura e aí acabou, porque ela precisa ser forçada a ser também um veículo, a ser portadora de um outro sentido, mas sem deixar de enunciar aquilo que ela é a cada momento. Isto é uma aflição que eu tenho. Nas artes plásticas comecei pela pintura, mas, ao mesmo tempo, fui fazendo também umas esculturas com palavras. Palavras de vaselina, palavras em óleo, comecei a derreter vidro, e à medida que fui aumentando a escala ou servindo-me de outros materiais, a linguagem tornou-se ilegível. Ou seja, ela é muito frágil, ela não admite muito corpo, não admite que você descubra o segredo dela, fazendo dela um mero veículo, apagando os traços da sua própria nódoa corporal. Por outro lado, é óbvio que ela também não é um elemento neutro, que um género possa configurar e a partir dela consiga contar uma história simplesmente. Acho que eu fico no meio destas perceções, e não é, portanto, como se eu quisesse ficar-me pela metalinguagem, porque eu quero contar isto e aquilo, mas mal começo já me vem a linguagem como um problema imenso… Seja porque me apaixono pelo som, seja porque aquele género às tantas já não está a funcionar, seja porque se propõe um híbrido que desfaz aquilo que eu planeava fazer, e aquilo vira em si mesmo uma questão. Na minha pintura é o que ocorre, e há uma altura em que o que eu estava a tentar representar se torna uma visão, e a sensação que tenho é que dá para levantar o quadro, dá para viajar a partir dali e fica a parecer-se com um bicho, a quem fico levando comida, alimentando-o por muito tempo para que aquilo se transforme num jogo do olhar, mas também do corpo.  

Ao encarar o seu percurso, que contou também já com uma série de momentos de alguma polémica, dando-me a sensação que se fosse um artista do mundo de expressão anglo-saxónica a sua obra teria já uma repercussão internacional bem maior, uma vez que a sua arte comenta, pensa, faz, quer dizer, cumpre todo o raio da ação artística, e inscreve-se em todas as dinâmicas do discurso e, sendo tão multidisciplinar, não deixa de se reger segundo um eixo bastante forte, não sendo apenas uma experimentação inconsequente, que se tornou também esse desespero do artista que aperta todos os botões e não deixa de jogar na lotaria a ver se o acaso lhe sorri. Assim, quando elabora mentalmente a sua autobiografia e reflete sobre o seu percurso, que não é evidentemente uma coisa extática, que impressão lhe causa a sua própria trajetória e em que medida é que o Brasil, que tanto o inquieta, e que não deixa de ser uma fonte de inspiração, se tornou também um obstáculo na sua projeção?

Essa é uma pergunta muito forte para mim, principalmente nos últimos anos. Quando digo que perdi de algum modo o acesso a uma certa identidade brasileira, a alguma dimensão mais pública, estou a dizer que sinto que já não posso jogar o jogo que joguei durante muitos anos, pois tenho de me entender a partir de um novo lugar, e daí o desejo de sair mais, de deixar o país. Foi esse o desejo que me levou para a Alemanha, estando em Berlim para um residência de dez meses. Se fosse uma escolha minha, gostaria muito de sair mais, de ser publicado, inclusivamente em Portugal. Gostava muito de ser traduzido, especialmente na língua inglesa, de forma a que as pessoas pudessem ler-me. Só sou traduzido para o espanhol. Já me disseram que tinha de arranjar um agente literário, mas eu nunca cuidei dessas coisas, nunca tive tempo para isso, e parece agora que acabei trancado. E enquanto artista plástico, tendo vindo agora de um período de dez meses num centro de estudos avançados na Alemanha, tendo-me sido dado condições para viver num belíssimo apartamento, e trabalhar num atelier com as melhores condições, em que eu ficava até constrangido e com receio de o sujar, e estando cercado de académicos, participando em seminários… Foi um prazer imenso. Por outro lado, senti-me incapaz de converter as minhas ideias em coisas reais, e que é uma coisa que no Brasil eu vou conseguindo fazer, vou arranjando um jeito, pois se quero trabalhar com pedra, acabo conhecendo alguém que conhece outra pessoa, por sorte lá vendo um trabalho e sirvo-me desse dinheiro para fazer o seguinte… Mas este percurso que ocupou a minha vida inteira de algum modo conduziu-me a este período de crise, em que tudo isso hoje me parece ser demasiado acidental. Não gostaria de seguir deste modo até ao fim. É como se eu precisasse agora de alguma instituição que mantivesse aberto o canal de diálogo entre mim e o mundo. Mas isso é o mais difícil de encontrar. O mundo da arte europeu é um mundo muito fechado, e é muito difícil penetrar nele. Depois, as pessoas olham para as minhas coisas, e acham tudo difícil, confuso, exigente… Hoje em dia, enquanto artista, você tem de ter uma identidade muito clara, muito breve, vender-se a cada passo, tudo tem de ser redutível a uma fórmula e a um conceito tão imediatamente apreensível como um slogan. Ora, eu fiz tanta coisa, e tudo tornou-se uma confusão. E ainda há os livros, os ensaios, a canção… Hoje sinto-me um pouco excluído também do debate artístico no meu próprio país. Não é só a minha perplexidade em relação à forma como o país foi eleger esse animal, algo que me parece imperdoável, e que me faz até entrar em choque ao perceber que há pessoas que compram obras minhas e que apoiam esse imbecil… Como é que um colecionador de Nuno Ramos apoia Bolsonaro? Neste momento, estando um pouco perdido, resta-me a escrita, que tem essa coisa boa que é não ter custo, e isso para mim é uma bênção. O desenho também não tem custo e, por isso, eu vou fazendo. Agora, no que toca às instalações, eu preciso de ter um aonde, um quando e um como, ou seja, um quanto, uma grana. Mesmo que seja uma coisa com menos potência e mesmo condições, o importante para mim agora é sair de lá, do Brasil. Mas essa coisa multidisciplinar, de que toda a agente fala bem, na verdade é um problema enorme para um artista, uma coisa que atrapalha, porque não é isso o que as instituições hoje buscam, porque é mais fácil fazer a difusão de um artista com uma identidade mais coesa. Um artista pode até ser multidisciplinar, mas a leitura daquilo que está a ser feito tem de ser mais clara, mais formatada. Como a minha é meio aberta, a minha avaliação estilística tem sido uma condicionante, tem-se colocado como um obstáculo contra a difusão do meu trabalho. Ela com certeza não me tem aberto portas. Mas vivo por isso neste momento de crise em que tento ter alguma lucidez em relação a um país que deixei de entender, a uma situação cosmopolita também ela muito espinhosa… Bastou estar quatro ou cinco anos sem vir a Lisboa, e esta cidade já e parece com qualquer outra cidade europeia, submersa debaixo do fluxo dos turistas. Estive em Praga e Munique também, que embora sejam cidades muito diferentes, há algo também de muito semelhante neste padrão europeu, em que se vê uma multidão de gente que leva a que se respire uma monotonia insuportável, porque nada chega a diferenciar-se. Mas também tenho já 62 anos, e devo reconhecer que algo deste pasmo com o mundo tem também algo de etário. De qualqer modo também não quero fugir deste estranhamento, e até fiquei muito feliz de marcar uma exposição em Lisboa, numa galeria grande e que tem alguns recursos.

Esta exposição marca uma estreia de duas peças suas. Como é o seu percurso enquanto artista plástico apresentando-se aqui em Portugal?

Já tinha feito uma mostra individual aqui há muito tempo, e participei de muitas mostras coletivas. Mas há muito que não apresentava nada aqui. Quanto a esta diria que, de alguma forma, há algo nela que é da ordem da literatura, no sentido amplo do termo. Todo o meu esforço foi no sentido de colocar nela um sistema de contrapesos, assim, quando o pano se ergue, isto aciona o discurso. Temos o objeto que está a ser velado e desvelado, e do outro lado o discurso. Foram estes os elementos que me guiaram, às vezes de forma um tanto arbitrária, como acontece com aquele prato de sopa conjugado a uma gravação em que se sucedem uma infinidade de agradecimentos, ao passo que em torno do bloco de gelo se observa aquele minuto de silêncio que se prolonga no tempo. No caso do David [o de Miguel Ângelo, que nesta peça se ausentou e dá uma entrevista], trata-se de uma pequena peça que eu fiz em que, temos lá o sinal da sua ausência e a conversa a duas vozes, com o David a dar uma entrevista sobre o motivo porque escapou da condição de obra de arte, em permanente exibição perante o público. Há muito que venho trabalhando sobre estes rituais em que a oralidade assume um peso muito forte. Porque me parece bastante curioso como ao ser inaugurada qualquer coisa logo esta se vê coberta de palavras, entra em jogo essa retórica que muitas vezes se cumpre meramente numa circularidade que não diz nada. Essa peça do obrigado corresponde a um desejo antigo que eu tinha, uma vez que em qualquer festival que você vá, repete-se esse sujeito que nos diz que queria agradecer à secretaria de cultura, agradecer a este e aquele, e logo outro se segue que também queria agradecer a tal e tal… Ficamos perante estes discursos e não percebemos bem o que é suposto retirar dali. Por isso, isto não deixa de ser uma exposição de literatura, ou tem alguma coisa do universo dramatúrgico, se preferir. Outro aspeto que entra em conta é essa dimensão pública da arte, da monumentalidade, do significado que as pessoas dão às coisas. Como digo no texto de apresentação, parece-me que, nos últimos tempos, houve uma mudança no paradigma, pois se Robert Musil diz que a melhor de se esquecer algo ou alguém basta fazer-lhe um monumento, que ficará nalgum lugar público exprimindo a condição de anonimato daquele que se pretende honrar. Hoje já não é assim. As pessoas têm vindo a dar significado a estas obras e estátuas, acusando-as disto e daquilo. Houve um bandeirante, caçador de índios, o Borba Gato, em Santo Amaro, São Paulo, que tinha uma estátua enorme em sua homenagem e esta foi queimada. Era um herói nacional, mas a estátua em sua honra foi incendiada. Com este tipo de atos, os monumentos parece que ganharam vida, mas, por outro lado, a verdade é que não dão conta dos significados e de todos esses males que as pessoas querem esconjurar. E isto porque a maioria deles não passa de monumentos retóricos, estúpidos, vazios. E nesta exposição quis operar leves deslocamentos do sentido, dos objetos… O próprio David parece surgir aqui em nome de um certo cansaço das obras artísticas elas mesmas. É como se não aguentassem mais ser o que são, terem sido transformadas nesses ícones absolutos. Acho que ele fala em nome de uma certa renúncia que me parece que as próprias obras fariam se lhes fosse possível falar. “Chega, não aguento mais ficar rodando de uma feira para outra, grandes mostras, esse ciclo infindável de eventos.” Acho que elas estariam com o saco cheio disto. Fiz uma vez uma exposição num museu que tinha alguns retratos de grandes pintores como o Tintoretto e o Ticiano, e o que eu fiz foi pôr um espelho voltado para os retratos. O público via o fundo, mas era como se o próprio estivesse se olhando pela primeira vez. Acho que há um pouco disto neste David, uma certa vontade de lhe dar voz a ele. E há também essa interrogação sobre o que é isso que tanto se inaugura, onde é que está toda essa novidade prometida, onde está o novo? Há uma série de ironias que vão rondando esta exposição.

Um dos aspetos que é vincado pelo seu texto de apresentação é que há um registo cómico nesta sua exposição que é invulgar no seu trabalho. Há mesmo algo da relação satírica naquele discurso dos agradecimentos infindáveis em que um dos excertos que se ouvem é da voz de Marcelo Rebelo de Sousa… Em que medida é que isto reflete o colapso do próprio sistema da arte contemporânea e que se diluiu na financeirização e no esquema da circulação de valores no mercado que subalterniza as instâncias de mediação e até as expõe ao ridículo?

É evidente que o sistema da arte precisa de recuperar a potências e a sua capacidade de se pensar a si mesmo, de reaver os seus processos e fazer um exame crítico destes. Há um elemento de autoironia sem o qual o regime da arte se torna uma coisa de fachada. Os artistas têm de se revoltar contra curadores, marchands, contra essa cadeia de valores, e sim, é preciso criar alguma forma de imparidade, mas também acho que seria ingénuo pensar que a financeirização da obra de arte só produziu obras frágeis, fingindo que não há hoje artistas tremendos, que convivem com estes elementos e os refletem de uma forma bastante intrigante. Um caso óbvio seria o Warhol, que aparece como um artista da mercadoria, e não deixa de ser um verdadeiro grande artista, e que facilmente deu a volta a estes aspetos e soube refleti-los com uma ironia estrondosa. Portanto, se o mundo se está a tornar espinhoso, resvaladiço, também não nos interessa cair na postura dos moralistas, denunciar tudo e perder a própria capacidade de compreender o que se está a desenrolar. É certo que a arte virou uma espécie de banco de investimentos, e os artistas e as obras parecem estar quotizados numa bolsa, o que pode conduzir a um efeito de padronização, a uma incapacidade de reflexão e até de renovar o conflito ou a agressividade das obras, mas é preciso não passar ao lado daqueles exemplos que o que estão a fazer é precisamente isso.

Numa das suas reflexões sobre o seu próprio carácter enquanto artista, fala numa espécie de náufrago revirando-se entre citações e fragmentos, influências de toda a parte, e identifica-se com uma figura descrita por Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas como “nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação”. Estas suas instalações parecem materializar de algum modo essa condição, essa busca desse ponto precário capaz de dar continuidade ao descontínuo. De que modo é que o seu percurso como ensaísta e escritor se combinam com o trabalho do artista plástico e informam estas obras?

Há muito tempo que a palavra assumiu relevo na conjunção com os elementos plásticos das obras, desde as materializações da linguagem, com palavras em vaselina, palavras numa escala imensa, como se linguagem ganhasse corpo. Mas eu podia ter-me ficado pelo subir e descer do pano, não precisaria de impor esse contrapeso que acionasse a caixa de som e os discursos. Quis uma equivalência nesse contrapeso entre o verbo e esse pano que revela e esconde. Este lugar da palavra é algo muito instigante, mesmo por todo o lado ridículo e de encenação que há nessas sessões solenes, estes discursos que ouvimos todos os dias e que a mim, por mais que os ouça, não me acostumo, e sinto um fascínio inesgotável por estas formas de representação. Como é que tanta gente oferece audiência para estas coisas, e porque é que se dá sempre um banho de palavras quando alguma coisa está a ser inaugurada? No fundo, são cerimónias em que ninguém ouve nada, mas as pessoas ficam ali, de corpo presente, e partilham aquele ridículo do sujeito que está lá a dizer nada. Estes rituais estão um pouco por toda a parte. O Borges falava na escultura no sentido ampliado… Ora, para mim, a literatura no sentido ampliado está presente em muitas das coisas que eu faço.

Nos últimos meses aconteceram tantas coisas no Brasil, gostava de saber qual foi a sua perspetiva ao assistir à distância, tendo passado boa parte desse período na Europa.

Da última vez que falámos, eu estava há um ano na Alemanha, e estava a regressar ao Brasil, tendo passado agora uns dez meses lá. Agora vou passar mais uma temporada fora. E acho que isso me deu um olhar um pouco mais distanciado, e compreendo que se o governo do Bolsonaro foi algo de anómalo, no sentido em que se tornou um pesadelo único, caracterizado pela violência e o absoluto disparate, ao mesmo tempo o mais chocante é como, depois de quatro anos daquele despautério, ainda havia apoio popular para que aquilo prosseguisse, sendo que foi por uma margem de 1,8% dos votos que ele não foi reeleito. Em 2018, os eleitores ainda podiam ser estúpidos o bastante para se iludirem que dali viria algo de renovador, mas quatro anos depois, depois da pandemia, da gestão criminosa que foi feita por aquele governo, Bolsonaro ainda colhe o favor de uma parte tão substancial do eleitorado… Não é só difícil entender como é difícil localizar-se dentro disto. Acho que criei um mecanismo de espanto em relação ao país que eu antes não tinha.

No seu livro Foquedeu serve-se do título de um livro que é “Brasil, terra de contrastes”, para nos dizer…

É, o livro do Gilberto Freyre, mas podemos falar de movimentos como a Tropicália, uma série de fenómenos que indiciam como havia no Brasil essa potência dos contrastes, um motor generoso de produção de diferença e tal. Mas, hoje, o Brasil está na senda contrária, é um país embotado no mesmo, um país incapaz de criar diferenças, que já não consegue diferenciar-se, politicamente desde logo, mas também numa série de outros sentidos. A fragilidade da sua cultura parte dessa incapacidade de fazer valer diferenças.

Porque isso ensinaria a colocar numa tensão produtiva elementos opostos, sem entrar numa rejeição ou rutura total…

Sim. À medida que as diferenças vão-se mostrando falsas, e o PT fica cada vez mais parecido com PSDB, e, num sentido mais amplo, as identidades foram-se congelando, ao ponto de levar ao aparecimento dessa figura expiatória, que é esse animal [Bolsonaro] que é a diferença mesma. Mas, infelizmente, esta é a diferença perversa, sádica, e não a diferença que pede o confronto sadio, das identidades que se opõem gerando energia. Por isso, acho que a “terra de contrastes”, que foi essa vertente mais feliz da identidade do Brasil, esse caldeirão de raças, com uma sexualização forte, é aí que está, hoje, a nossa crise. Assim, o lado mais generoso e aberto é aquele que carrega este embotamento. E mesmo esta tendência da afirmação das políticas identitárias e do questionamento do passado, tudo isso me parece produtivo, o que não pode é congelar, de tal modo em que se tire uma foto e fique todo o mundo parado, e já ninguém se pode mexer ou cai sobre ele logo um processo de denúncia. Se conseguirmos superar esta tentação, acho que esse processo de inquietação pode ser extraordinário. Muita coisa mudou no Brasil nos últimos anos, e muita coisa mudou até para melhor, mas não na grande política. Aí é onde me tornei cada vez mais conservador, e o que eu quero agora é garantir que esses imbecis já não voltam ao poder. Até torço para ser uma coisa mais de centro para não dar margem para que um tipo como Bolsonaro regresse. E é bem possível que, se voltar a inflação, ele se faça eleger de novo… Ou a mulher ou o filho, ou alguém ainda pior que ele. Hoje eu entendo a diferença entre ele e a direita. Quer dizer, esse cara é um assassino, que matou centenas de milhares de pessoas, que foi contra a vacinação, que é um ladrão, enquanto um cara de direita é outra coisa. Podemos não concordar e tal, mas não se trata de um bárbaro que só quer ver o país mergulhado no absoluto caos.

Sendo esta exposição uma estreia, gostava de lhe perguntar quais são hoje as suas expectativas quando mostra o seu trabalho e, particularmente, quando o faz perante pessoas que em muitos casos não contactaram ainda com outras obras suas?

Uma inauguração é sempre um momento de crise, em que uma pessoa se pergunta se faz algum sentido… Como eu trabalho geralmente com obras que vão em sentidos novos, como esta exposição em que sinto que estou a fazer uma coisa muito distinta do que fiz antes, além das questões técnicas, que podem sempre gerar problemas, e nos colocam sob pressão, há também um momento em que me afasto e tento perceber se, esteticamente, gosto ou não disto que estou a apresentar. Mas a minha expectativa, no fundo, e se eu estiver em paz com a exposição, é que ela me dê ideias para um outro rumo que eu possa seguir amanhã. Gosto muito do processo de montagem, porque surgem-me muitas ideias. Quando trabalho com uma equipa e vejo as coisas a serem preparadas, surgem-me hipóteses, desvios, outros caminhos. Mas, por agora, espero que não haja avarias, que tudo funcione e as pessoas gostem.