Dois sacerdotes, das paróquias de Famalicão e de Guimarães, que estão no centro de denúncias de abusos sexuais revelados pelo Nascer do SOL em setembro do ano passado, constam da lista de cerca de cem nomes, a grande maioria sacerdotes no ativo, que a Comissão Independente vai entregar à Conferência Episcopal Portuguesa para os devidos processos canónicos.
No caso de Famalicão, trata-se de Fernando Sousa e Silva, ex-cónego de Joane, que durante décadas terá abusado de dezenas de crianças no confessionário. Estes abusos estão a ser denunciados, pelo menos, desde 2003, mas D. Jorge Ortiga, que foi arcebispo de Braga entre 1999 e 2021, ignorou os alertas.
Custódio Silva, residente em Joane, formado em Direito, e com uma longa passagem pelo seminário, foi uma das pessoas que alertou D. Jorge Ortiga para o que se passava dentro daquela diocese.
Na correspondência trocada entre os dois, Custódio Silva falava dos abusos de menores praticados pelo cónego Fernando Sousa e Silva. Inicialmente, o bispo mostrou abertura para o assunto, desde que existissem contra ele «elementos verdadeiramente objetivos».
Em maio de 2010, numa das missivas que enviou ao arcebispo de Braga, Custódio Silva anexou uma carta de uma vítima, que lhe solicitava que fizesse chegar ao arcebispo o seu testemunho. A jovem pedia: «Espero piamente que o Sr. Bispo possa tomar alguma atitude em relação a este referido senhor… Pois se não o fizer a nossa igreja vai continuar em decadência e com falta de jovens pois o Sr. Padre Fernando insiste em afastar-nos do bem e da própria igreja».
Apenas em 2019, perante uma nova denúncia – e estando já em vigor as novas orientações do Papa Francisco –, o caso foi julgado em tribunal eclesiástico e chegou ao Vaticano, tendo o cónego sido proibido de ministrar a missa e fazer confissões. Contudo, continuou como padre na diocese de Braga.
O pedido de desculpas chegou recentemente, depois de uma investigação do Nascer do SOL ter sido publicada em setembro do ano passado, e o atual arcebispo de Braga – D. José Cordeiro – se ter deslocado à aldeia para pedir perdão às vítimas. Foi nessa altura que a Comissão de Proteção de Crianças, Jovens e Pessoas Vulneráveis da Arquidiocese de Braga organizou um grupo para ouvir em exclusivo as vítimas do cónego Fernando.
Uma delas foi Manuel Cunha, que falou com o nosso jornal, e, tal como outras, denunciou o seu caso à Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, que esta segunda-feira apresentou o relatório final, dando conta de 512 testemunhos e de quase cinco mil vítimas de abusos sexuais por parte de membros da Igreja Católica nos últimos 70 anos.
Manuel Cunha começou por lembrar declarações feitas pelo cónego a órgãos de comunicação, em que este dizia nunca ter tido «contactos físicos com as pessoas» e que sempre esteve «fechado no confessionário e as pessoas estavam do lado de fora e separadas pelo crivo».
Estas declarações do cónego Fernando foram, no entanto, desmentidas pela vítima: «É mentira! Durante décadas, o padre Fernando ‘confessava’ crianças com elas dentro do confessionário e com a cortina tapada. Nunca confessou uma criança estando separados pelo tal ‘crivo’. Também é verdade que muitas vezes confessava dentro da sacristia, estando apenas o ‘confessor’ e o ‘confessado’ nesse local».
Antigo arcebispo nada fez
Este não é o único testemunho ouvido pelo Nascer do SOL que foi reportado à Comissão Independente. Também Olga (nome fictício) reiterou recentemente a esta Comissão abusos sexuais referentes aos seus filhos menores que envolvem um sacerdote da zona de Guimarães, que ela já tinha denunciado presencialmente à arquidiocese de Braga em 2019.
Mas como já acontecera anteriormente com o cónego Fernando, o arcebispo nada fez. Apenas três anos depois, a dias de ser substituído por D. José Cordeiro, chamou a denunciante para lhe fazer um pedido: caso fosse questionada, dissesse que este sempre a tinha apoiado. Em conversa com o Nascer do SOL, D. Jorge remeteu as explicações sobre o cónego Fernando para o seu sucessor: «Alguma coisa deve de ter havido, penso que foi na altura da minha mudança e está tudo devidamente documentado. Quem lhe poderá falar sobre esse caso é D. José Cordeiro».
Manuel Cunha e Olga foram duas das 512 pessoas que denunciaram abusos sexuais no seio da Igreja Católica à Comissão Independente. Mas só o caso de Olga se encontra neste momento a ser investigado pela PJ de Braga, já tendo a mãe das crianças sido ouvida por aquela Polícia.
Muitas outras denúncias de abusos sexuais ocorridos no confessionário chegaram à Comissão Independente.
F., nascida na década de 40, filha de um fiscal e de uma ‘dona de casa’, contou que, aos dez anos, numa cidade do Norte, foi abusada por um padre nesse mesmo local: «Quando entrava para se confessar, o padre, com cerca de 40/50 anos, aproveitava-se da situação: tocava-a em zonas erógenas, beijava-a e estimulava-a no clitóris… ‘Aquilo arranhava’», lê-se no relatório divulgado esta semana.
Abusos em vários locais
Mas os abusos não se remetiam a um único local. Os testemunhos das vítimas relatam situações que ocorreram em seminários, na igreja, na casa paroquial (sendo estes quatro os lugares mais comuns da ocorrência dos crimes), no carro, na escola, na catequese, nos acampamentos ou atividades de escuteiros.
«Chamou-me ao quarto e, alegando dores de barriga, solicitou-me que lhe fizesse uma massagem. Depois pegou na minha mão e colocou-a no órgão sexual e forçou (ensinou-me) a fazer a masturbação». É outro dos relatos.
Outro ainda descreve que o abusador, neste caso um professor, «marcava encontros filosófico-religiosos na casa dele e depois [faziam] sessões de nudismo e de oração ao cosmos».
Das 512 queixas validadas pela Comissão, apenas 25 seguiram para o Ministério Público, tendo a maior parte ficado pelo caminho: nuns casos porque o crime prescreveu, noutros porque as vítimas preferirem ficar no anonimato.
Questionado pelo Nascer do SOL sobre a falta de resposta das autoridades judiciais, o juiz Álvaro Laborinho Lúcio esclareceu que «vivemos num Estado de Direito» e que não se pode, «de repente, querer condenar pessoas pela prática de atos que, num dado momento, caem no domínio da prescrição do procedimento criminal». E acrescentou: «Isto é um problema de cidadania e nós temos de saber em que regime queremos viver. O Estado de Direito é um estado com mãos largas, que deixa fugir por entre os dedos várias situações que gostaríamos de ver punidas mas que não podemos. Porque há regras e a alternativa a isto é muitíssimo pior: é tornar sistémico um sistema autocrático, totalitário, em que em nome de uma qualquer ideia de moralidade pública desatamos a punir toda a gente sem quaisquer garantias».