A centralidade do esforço crítico, editorial e poético de Manuel de Freitas na primeira década deste século é inquestionável, e foi uma influência que levaria ainda mais alguns anos a dissipar-se, em parte talvez por estar alinhada com um certo isolamento complacente, o qual reflecte bem esse individualismo tão característico da nossa época. À medida que as obras cedem a enredos identitários e acompanham a renúncia àquela busca de uma diferença radiosa, a uma capacidade de se multiplicar e evadir constantemente, também a poesia foi adquirindo uma feição cada vez mais performativa, como longos monólogos dramáticos ou relatos que assumem um registo confessional e memorialista.
Depois de se mostrar útil e desagradavelmente necessária aquela prepotência irreverente dos gestos destinados a contestar o lado enfático e postiço que é próprio das grandes eminências parvas, aquele espírito de contestação foi dando lugar a algum outro regime colegial, igualmente espúrio. Assim, depois de um momento de agitação inicial e de ruptura com aquela reverência diante das patéticas tentativas de dar caça aos gambozinos do sublime, e o modo respeitoso e ameno de alguma crítica ao acolher essas cansativas expedições, foi refrescante ver ganharem expressão reacções provocadoras mesmo se toscas como a antologia “Poetas Sem Qualidades”, além de uma série de atoardas que, nas páginas dos jornais, levavam a crer que o campo literário voltara a justificar uma guerra de trincheiras.
Tendo levado mais longe o gesto de polarização crítica de Joaquim Manuel Magalhães, impondo uma linha de demarcação entre um elenco de poetas deflacionários no que toca à elevação ou temperatura que se exigia do discurso poético, Freitas surgiu como um agente em sua representação e de uns tantos que privilegiavam nos versos a expressão de um desgosto e até de um “sentido agónico (discretíssimo, por vezes) e sinais evidentes de perplexidade, inquietação ou escárnio perante o tempo e o mundo em que escrevem”, e isto em oposição àqueles que Magalhães já vinha zurzindo ainda que muitas vezes sem os nomear directamente, alvos cuja direcção era vagamente apontada, mas que não tinham ainda experimentado o acosso de uma crítica sem peias, carregada de uma veemência feroz, quase raivosa, sendo agora tachados de “ourives de bairro, artesãos tardo-mallarmeanos, culturalizadores do poema digestivo, parafraseadores de luxo, limadores das arestas que a vida deveras tem”.
Desse período de antagonismos, que apontavam mais para o lado inestético de figuras que acorriam a todos os salões, e que, depois, naturalmente, apareciam com os seus poemas encharcados em chá, resultou uma reelaboração do estilo e dos protagonistas da crítica, sobretudo nos jornais, mas não demoraria para que o que prometia ser uma postura subversiva e vital acabasse por se misturar com o registo das figuras penugentas remetidas para a morgue.
Em breve, Manuel de Freitas também já se fazia às teses tal como Nuno Júdice ou Gastão Cruz, e demonstrava o mesmo desdém por tudo o que surgiria depois dele como era próprio daqueles que nunca admitiam que pudesse surgir quem lhes fizesse sombra. Uns e outros haveriam de se assemelhar na gestão do seu prestígio como de um fundo de certificados de aforro, não se cansando de deplorar o que ia aparecendo à laia de nova poesia portuguesa por esses anos. Hoje, a maioria dos leitores de poesia só com grande dificuldade seria capaz de distinguir as posições que ali se confrontavam, apontando as acentuadas diferenças estéticas que motivaram tanto alarido. De qualquer modo, e uma vez cessado o clarim, continuava a ser preciso que a vida se sentisse viva, e que a poesia pudesse representar um sentido de radical incomodidade frente “aos mecanismos da merda em que nos fazem chafurdar”. O certo é que nesses anos, em grande medida, se deixou de falar de poesia, e começou muitas vezes a discutir-se questões de dieta e exercício lírico, não ajudando a que fosse reforçada a autonomia das posições, com a firmeza de certas derivas mais solitárias e drásticas a serem ignoradas face a orientações de grupo. Com isto, a poesia de que se falava mais não fazia outra coisa senão exprimir um sabor residual, recaindo numa impotência reflexiva, sem a ferocidade dramática dos grandes solitários.
Com o poder da sua expressão ácida mas sempre sustentada numa dicção primorosa, tanto na crítica como nos poemas, os quais se emparelhavam e cominavam os seus efeitos, a voz de Manuel de Freitas assumiu uma influência transgressiva. Era uma poesia geracional como poucas, e destacou-se logo pela forma como enunciava e enfatizava aquela relação de perda ou diluição do sujeito contra as imposições da época, deixando-se esbater ou desfiar numa geografia e num cruzamento de referências capazes de traçar um quadro de encanto e pavor, como uma espécie de curador de um museu íntimo de vozes e lugares onde um certo romantismo se exasperava, abandonando-se a um tom desencantado e muitas vezes cáustico no olhar lançado sobre o mundo e a sociedade. Na sua defesa de uma poesia leal à vida na sua crueldade, tentando reflectir a realidade em toda a sua nitidez, e acusar um quotidiano asfixiante, esta mesma postura, tão severa com os outros, aos poucos foi-se deixando emboscar num registo bastante banal que, se começou por nos livrar de um ambiente cultural contagiado de ficção, e separado do mundo em quase tudo, depois também se artificializou no seu excesso de encenação. Muitos destes poemas, de tanto expor o “coração (metáfora reles)” não iam além das lamúrias de um actor “fingindo morrer/ num fingido poema em que a ruína/ se exalta”.
Ao reunir a sua obra poética em três volumes – tendo o primeiro chegado recentemente às livrarias –, torna-se absurdamente claro o quanto esta assume um carácter de inventário e cenarização desses lugares ameaçados onde se cruzam presenças tão esbatidas que mal se distinguem já de fantasmas, onde a memória começa a parecer-se com um registo senil, onde cada um tece o casulo do seu exílio íntimo, e se acostuma aos modos da desolação. “Sei apenas que as poucas pessoas que amei/ estavam por detrás de um balcão/ onde o álcool ardia, muito devagar./ Os meus pobres anjos./ Também por isso gostava de te obrigar a esta taberna,/ exílio cantante de todas as minhas antigas manhãs.”
Há algo de compulsivo nesta poesia, como já notara Joaquim Manuel Magalhães, talvez porque a verdadeira aflição contemporânea e que aqui se torna mais explícita do que em qualquer outra obra nasce do pressentimento de que tudo, nos nossos dias, parece irremediavelmente destinado à desaparição. Daí que os poetas mais insistentes e que, por isso, acabam de algum modo por se impor, sejam os que se mostram obcecados com a construção de uma personalidade com os contornos que só assumem as personagens, uma personalidade que mal se distingue de uma forma de mito pessoal. E nem é preciso inventar a vida, dar-lhe um verdadeiro propósito, basta aludir às formas de fracasso e desespero, para se chegar muito depressa a esse pavor de tudo ter sido em vão, e só restar depois a morte, “a morte que permanece já nem palavra/ sequer, mas a imensamente repetida,/ recalcada ou vomitada. Tanto faz,/ único assunto em que as mãos depõem/ a sua desesperante ferrugem”.
“Talvez os rituais só existam/ quando se perde a magia”, admite Freitas. Tendo isto em conta, é fácil compreender porque, na poesia que entre nós se publica, tem faltado aquela profunda inquietação que faz o espírito revolver-se e buscar novas imagens, uma relação de intensidade nova com o mundo. Em sentido contrário, vão-se notabilizando poetas que estabelecem entre si uma cumplicidade diluente, ao ponto de nos ficar a sensação de que cada um termina perto do lugar onde começa o vizinho, não estando apenas limitados por si mesmos, como pelas suas próprias companhias. Vão erodindo o campo de acção poético, até só lhes restar uma pose desoladora e cínica, uma vigilância no sentido de serem observados com rigor os dogmas de uma fé negativa, e isto a um ponto tal que as lições mais notáveis que recebem uns dos outros serão porventura uma série de desilusões, não sendo capazes de organizar outra perspectiva do mundo e da vida senão como esse quotidiano saturado pela mediocridade e o estupor.
Na melhor das hipóteses alguns destes poemas revelam-se comoventemente impotentes, tão enredados em dramas vulgares, sem uma individualidade verdadeiramente profunda e autêntica, mas também, e por isso mesmo, não exigindo muito dos leitores. É uma poesia que cede caminho, que encontra o leitor onde este já estava e de algum modo o justifica no seu repúdio generalizado, mas também na sua autocomplacência.
Tudo é uma verdade relativa e local, e às tantas fica claro que a própria essência deste discurso se revela conjuntural, assentando menos naquilo que afirma do que em tudo o que nega, e acabando na refutação do próprio vigor criativo da literatura. E foi por não exigirem grande coisa dos leitores que estes poetas foram tão bem sucedidos ao espalhar as suas sinecuras, mas à medida que parecia diminuir a importância daquilo que estava em causa nos versos, a própria poesia parecia capitular, tornando-se mais outra dessas zonas devolutas, como se apertasse nos braços os cadáveres devastados pela peste para dançar uma última valsa, ridicularizando tudo e mofando também de si mesma, da sua antiga paixão.
É algo característico dessas formas de recuo irreverentes que começam por seduzir e conseguir a nossa adesão, mesmo no abate de forma indiscriminada de falsos ídolos e grandes valores e nobres sentimentos, assumindo posições imperiosas e apressadamente liquidatárias, impondo palavras de ordem redutoras. Mas depois de um certo arrebatamento destrutivo é preciso propor outra coisa em seu lugar, e é aqui que falham estas propostas, mostrando-se incapazes de fazer do silêncio uma reserva para se recalibrarem os poderes expressivos, antes mergulhando nele até recaírem numa forma de esclerose e de mumificação dos discursos. E isto fragiliza o próprio discurso poético e a actividade crítica face aos lugares comuns e às vulgaridades que assumem preponderância numa sociedade entregue aos efeitos do mediatismo e à consequente perda da distância crítica. E, a par de Manuel de Freitas, não é muito difícil apontar um conjunto de autores que acabaram por facilitar uma espécie de retirada e capitulação com a sua pose de príncipes do nojo, servindo todas essas palavras de néctar e cianeto, tão condizentes com as exigências de uma agonia um tanto ordinária ainda que maquilhada com uns pós de sofisticação intelectual.
Esta é uma gramática e até uma intenção cujas origens seria ocioso tentar buscar nesta obra, uma vez que, apesar de todo o seu conseguimento formal, ou até talvez devido ao enredo de uma forma que se vira contra si mesma, degradando-se e atingindo uma certa insistência inane, com todo o seu enlevo barroco, tudo aqui surge como derivado, destinado à dissolução. É mais o ímpeto de quem segue ou rebusca, e não tanto o terror incitante daquele que explora ou desbrava. E seria, por isso, em vão que buscaríamos as raízes ou as consequências de um juízo mais profundo nestes versos, que acabam sempre por corresponder a um fatalismo por referência a algo que ali comparece meramente como um reflexo, uma angústia induzida, vulgar. Em muitos aspectos trata-se mais de uma performance, uma adaptação de um argumento alheio por um actor que pretende baixar do universal para “o timbre estragado das suas mãos” esse drama, traduzindo-o de acordo com as suas circunstâncias e o seu entorno particular, entrando num mimetismo e copiando certas obsessões e tiques sem perceber exactamente o alcance destas manifestações, mas pretendendo que o público se deixe enredar e preencha por si mesmo as lacunas.
É uma questão de gramática e não de existência, de tal modo que essa queda resulta mais como uma pose, conseguindo por isso ser solene umas vezes e outras cáustica, por vezes quase lírica, sem acrescentar, no entanto, grande coisa ao que já se sabia do desespero humano. E “entretanto a morte/ entra nesta taberna/ vestida de corpo aposentado/ – e senta-se devagar, peida-se/ devagar, olha-me fixamente,/ tanto quanto a miopia lhe permite./ Bebe sôfrega a morte e peida-se/ ainda. Não jogamos xadrez,/ nem sequer dominó – isto não é/ Bergman, é apenas a vida (?),/ pouco dada a estéticas.”
Nestas páginas fala-se muito de dor, mas cedo começamos a suspeitar de que o verdadeiro drama aqui é definido pela ausência deste. Trata-se “de uma perda monótona de luz, de uma dissolução insípida no seio da noite, sem ceptros, sem auréolas, nem nimbos”, para citar Cioran. E para prosseguir com este espantoso e virulento pensador que escapava às doutrinas preferindo um lirismo descoroçoante, espalhando veneno entre as rosas moribundas de um romantismo que se refez numa seita de carpideiras abusando da nossa paciência com as suas imprecações cínicas, ele fazia notar como os que se viram para a arte o fazem por covardia e numa gestão de subterfúgios. “Só os que vivem fora da arte vão até às últimas consequências. O suicídio, a santidade, o vício – eis algumas formas de falta de talento. Directa ou disfarçada, a confissão através da palavra, do som ou da cor evita a aglomeração de forças interiores e fragiliza-as, repelindo-as para o mundo exterior. Trata-se de uma diminuição salutar que torna todos os actos de criação elementos de fuga.”
Assim se percebe como há algo de paródico nesta representação de uma angústia que talvez até tenha começado por ser uma manifestação sincera, mas que acaba dominada por um talento que chega a ser excessivo, de tal modo que só vemos a forma, e aquilo que os poemas dizem é apenas um langor melódico para que aquela voluptuosidade estilística nos vá distraindo, sendo sua uma música insuflada artificialmente. Dá-se, assim, um processo de habituação a esse rigorismo amaneirado, essa lenta asfixia do corpo mole numa armadura cada vez mais tensa e que dispensa até os momentos sublimes e reveladores, abandonando-se à exiguidade da experiência quotidiana, à nimiedade dessa errância anedótica, própria de um espírito que tudo despreza por se sentir incapaz de aceder a reservas de novas matérias-primas, as quais em vão procuraria em casa ou no regime circular e urbano de uma existência comodamente burguesa, sem roçar nada de inusitado ou arrebatador.
No início, o maior valor desta música advinha da noção de que jamais esta poderia repetir-se. Mas, com o passar dos anos, e ainda que se fosse aperfeiçoando formalmente, esta não fez outra coisa senão repetir-se, esboçar os mesmos movimentos sujeitos apenas a delicadas ou trôpegas variações. Assim, o desafio passava a estar do lado desse esgotamento gradual de um registo musical condenado à partida, até chegar a um ponto em que a imobilidade parecia já incapaz de disfarçar um odor insuportável, próprio de um corpo que se decompõe dentro da sua armadura. E a partir de certa altura tornou-se claro que “a verdadeira morte não é a podridão, mas sim a aversão a qualquer irradiação, a repulsa por tudo aquilo que é um germe, por tudo aquilo que floresce sob o calor da ilusão”, como sublinha Cioran.
“A verdadeira existência trágica”, diz-nos ele, “quase nunca se encontra entre aqueles que sabem lidar com as forças secretas que os assediam; de tanto enfraquecerem a sua alma através da sua obra, onde iriam eles buscar energia para alcançar o limite dos actos? (…) Aquele que se exprime não age contra si próprio; só conhece a tentação das últimas consequências. E o desertor não é aquele que vai até às últimas consequências, mas sim aquele que se dissipa e se revela por medo de que, entregue a si mesmo, se perca e sucumba.”
A lição que nos serve esta poesia não passa, assim, de uma forma de decadência eloquente, uma música que se arrasta apropriando-se de todos esses sinais de um apocalipse que se tornou tão banal como outro afrodisíaco qualquer. Uma representação que tem tanto de pesadelo como de uma mercadoria vulgar, e que pode servir ao mesmo tempo como uma metáfora do colapso do mundo em que vivemos ou como uma espécie de devaneio daqueles que tiram prazer de diagnosticar a catástrofe a partir das suas existências bastante cómodas, não se negando qualquer luxo ou a satisfação de todos os seus apetites.
O fim do mundo, esse que está presente e desenha os seus caracteres por toda a parte, é, ao mesmo tempo, algo que está permanentemente a ser adiado, permitindo que se fantasie com ele e se chegue a desejar que ele venha de uma vez e ponha fim de vez a esta patética agonia. E é nessa medida que esta poesia se configura como um excerto desse vastíssimo evangelho niilista dos nossos dias, correspondendo a uma ética que apenas sabe exprimir-se pela repulsa, como o neurasténico que procura razões para se atormentar, ainda que goze de uma existência bastante pacata e confortável, como o tolo extasiado que se compraz na infelicidade, embora tenha todas as condições para se sentir um privilegiado.
É uma poesia em busca de rugosidades, e que varia na sonoridade entre o tom de um cravo temperado e a rezinguice pigarreante, como se, tendo abandonado o prazer e o gozo sublime da existência, se forçasse a uma espécie de sacerdócio, a uma disciplina auto-punitiva, que, mesmo se presume ter superado a moral judaico-cristã, não abdica dos rigores de uma arte que corresponde a um ideal sacralizador, avançando nessa zona crua, dura, seca, amarga. E ao lado de tudo isso temos a biologia mais circular: “Falo de órgãos, artérias, tendões./ Do mesmo modo que a alma/ é um órgão proscrito que sem vigor/ assediamos, adivinhando talvez que/ o vazio saberá devorar os traços/ que de si próprio deixou: bagatelas,/ massacres e aflitas circuncisões/ de sentido. Pega-se nisso tudo,/ de costas para a retórica,/ e faz-se uma canção decadente.”
Chegamos assim à condição mais privada da arte, aquela que é própria de alguém cuja devoção, desvinculada já dos antigos motivos espirituais, transporta esse vazio, tão comum na adolescência, para uma forma nobremente fria. E se, nisto, ainda assume a comum pretensão de ter despojado o mundo de ilusões sentimentais e de o ter visto tal como ele é, na realidade, depois damos por estes poetas dominados por uma espécie de fatalismo mimalho, entregando-se a todo o tipo de manobras dilatórias para não se comprometerem com nenhum acto derradeiro nem dar um passo, deixando que a musa arrefeça para depois também poderem acrescentar essa queixa às suas listas.
A quem desiste de buscar um sentido para a vida ou para os versos (o que, no fundo, vai dar ao mesmo), não se poderá, em princípio, acusar de nos ter levado ao engano. A menos que o tenha feito ritualizando a ideia de desistência, fazendo desta um processo retórico, como quem jogasse à roleta russa sem nunca pôr uma bala no tambor, fazendo daquilo um teatrinho ao jeito desses adolescentes que ensaiam inúmeras vezes as suas notas de despedida e as deixam por aí meio amarrotadas, pedindo para ser lidas. Para um poeta que foi-se sempre despedindo e que já ao terceiro livro chamou “Game Over”, e sendo que a este se seguiram outros quarenta títulos (mais coisa menos coisa), poderá dizer-se que levou esta fita longe demais. “De que vos falarei,/ com palavras póstumas/ onde o rancor se apaga?/ Era uma vez// aquele jogo triste que não sei jogar.”
E não é que afinal até sabia?
Não deixa, assim, de haver aqui um certo logro. Vamos dando nestas páginas por um endurecimento e uma severidade à moda antiga, uma poética que vai alastrando e que, a certa altura, culmina o seu processo de evangelização, em que estes sacerdotes displicentes que se condenaram a uma autocensura íntima dos prazeres mais sinceros, já não por serem considerados sórdidos, mas tidos como ingénuos ou inúteis, acabam por inventar em seu lugar outros, procurando firmar uma certa distância elitista, instituindo uma liturgia que faz desse exercício de deplorar tudo à sua volta uma forma de compensação artificial, uma arte atormentadora, de quem sente que o mundo como está puxa mais o vómito do que a vontade de cantar.
E uma vez que da vida não nos chegam notícias nem fica uma lembrança menos nebulosa ou cinicamente recortada, restam as deambulações etílicas (“A verdade encontrá-la-íamos/ talvez na sombra perdida de todas as garrafas/ com que um dia renunciámos ao mundo: Johnnie/ Walker, Four Roses, Jameson, Jack Daniels,/ Moskovskaya, Captain Morgan, Jose Cuervo, etc./ Um infindável folclore da agonia”…), o enredo das pequenas mortes, ascensões e descidas à boleia de impulsos químicos, esses miseráveis milagres das sustâncias “teimosamente ilegais” e que, talvez só por isso, sirvam ainda um toque de malignidade aventurosa a enredos meio anedóticos onde, de resto, as vagas personagens destas estórias escapam por todas as vias aos confrontos mais duros para os quais empurra a lucidez, exigindo que se pague uma e outra vez o preço de se ter alguma lealdade a outra coisa além de nós próprios. Aqui, a demolição de tudo é o álibi de quem vai “traficando a vida nos interstícios da morte”, abusando de um langor que, apesar da tensa articulação dos versos, se rende à ladainha, à tacanha filosofice e ao pessimismo desvairado: “Porque o fracasso do mundo é ele próprio./ Procurem remendos para o irreversível/ e talvez ainda venham a postular/ novíssimas legiões de descrença. Tanto faz tudo.”
E, então, a própria literatura não passa de “eufórica cinza”, e aquele que esgarça a frivolidade dos seus juízos em versos bem burilados, garante-nos sempre que pode que, “nos tempos que correm, antes um dealer/ do que um poeta – sem ironia à mistura”, e adianta também que “é boa qualquer substância/ que nos traga algum esquecimento,/ voilà uma ética – e uma maldição”.
E assim vamos, e também é possível ganhar balanço e, de caminho, sugerir ainda que “a lírica portuguesa teria sido outra/ se Camões tivesse perdido não um olho/ mas dois, se Diogo Bernardes/ tivesse conhecido o LSD, se Cesário/ Verde não tivesse abandonado/ o campo e a vida. O mundo seria o mesmo,/ cercado de morte e de desamor,/ pouco permeável a estéticas, sonetos/ e vilancetes. Pouco habitável também,/ apesar do LSD, dos poetas e do/ verso livre”… Até porque, no que toca à mais radical eloquência, são cada vez mais raros os poetas que dão provas de ter aprendido a tempo a lição de que mais vale perder para o silêncio alguns poemas estimáveis do que ir para lá da conta, e ficar aí no embaraçoso registo do epígono ou até da viúva de si mesmo. Mas a este respeito, Manuel de Freitas parece ter encontrado num graffiti o mote em relação ao qual toda a sua obra é como um sudário que ele tece e destece numa infinita glosa: “Ali para os lados da Sé, conciso/ e anónimo, alguém fez melhor,/ dizendo assim tudo, poupando o folclore/ das palavras de um modo discreto e banal:// estou sozinho,/ estou triste, etc.// Acrescentar o quê?”
Ao mesmo nível está a fixação asfixiante com a “morte”, que se torna uma rima desestruturante, à medida que se desliga do amor pelos outros e se torna uma forma de apego narcísico, como se essa angústia sepultasse o indivíduo, incapaz de transcender a ideia do seu próprio fim. A morte que surge amiúde como uma bengala lírica, um penico virado ao contrário e exposto no museu, e que umas vezes quer ser insolente e trocista ao passo que outras já procura arrancar alguma nota na corda da aflição. “E eu,/ obrigado, desses que querem sempre/ um infinito barato a emoldurar a morte,/ por baixo ou por cima de instintos calcinados.”
A morte aqui é pau para toda a obra, um pretexto cínico e uma defesa contra a esterilidade dos versos, é essa ficção que tanto se explica e em vão persiste na ausência do assombro que em nós provoca a vida. Ou seja, esta impõe-se como um argumento de quem se põe a “vazar o vácuo no vazio” em sinal da sua impaciência frente ao inesperado argumento que só a vida poderia providenciar. “Como se a morte,/ ela de novo, fosse/ o vagão inútil de comboio nenhum, chegando atrasado/ ou tão cedo afinal, temos ainda um pouco de sorte:/ o pão e a água nem podres sequer. Um consentido/ exagero de lugares-comuns, indefesos lugares/ com que pensamos açoitar o inominável disforme,/ a morte demasiado concreta de que pudeste morrer.”
Muitas vezes os que tão fervorosamente renegam à poesia a sua capacidade de renovação e o seu absurdo fulgor, apenas revelam esse receio de se ser vulnerado pela inquietante proximidade da beleza, que chega a ser tão desoladora por não cumprir horários, não se encostar às nervosas conjecturas dos que se protegem do terrível e descontrolado fascínio desses acasos magníficos que volvem os nossos planos e a própria espera inúteis. Nestes poemas assistimos, portanto, a um “imenso carnaval de destroços”, a esse “fausto miserável/ das coisas por vir eternamente”, enquanto “as mãos sem/ jeito decalcam silêncios antigos” e “os corpos regressam de não ter/ partido”, dispondo-se assim uma e outra vez o “circo inábil da noite”.
A poesia aparece como uma vaga hipótese de redenção ou quase: “a quase/ redenção que a poesia oferece à pobreza do rosto,/ absorto em céu e mágoa pelo milagre da música”, mas, no fim, acabamos sempre diante da infeliz sujeição daquele que não consegue descoser a sua identidade tão ansiosa, como se escavasse a partir de um excesso de vontade de existir e deixar uma marca nessa condição infernal, esse túmulo ostentoso que deveria servir de sustento ao pobre mito de um homem que se vê devolvido sempre pelas vagas à “gangrena breve do nome”, essa “gangrena terrível/ por onde cresce a voz e se detém nula”.
Está tudo lá, nos próprios versos, desde o primeiro livro. E mesmo que busquem um enredo capaz de nos distrair melhor, de folgar um pouco a perspectiva, nem com o enlevo de um ritmo nervoso e sagaz, nem assim estes versos chegam a cunhar uma moeda capaz de impor o seu valor no Além.
A maioria destes poemas parecem sofrer de ejecção precoce, ou perdem a erecção diante do receio das consequências, adiantando-se à morte num receio absurdo de se sentirem tentados a apertar contra si aqueles corpos que dançam na berma do abismo contagiados por essa vertigem que nos abala e logo se esquiva. Aqui tudo é desesperadamente imberbe, e muito depressa somos entregues às mais perras lamúrias: “E eu esforço-me/ por defecar um sorriso que engane a atroz fosforescência/ do nome em ruínas.”
“A noite passou, sem sono nem alegria./ E eu esqueci-me de lavar a louça/ e de encontrar um sentido para a vida/ (truque poético bastante conhecido)./ O amor não bateu à porta com as suas mãos/ frágeis e desonestas, nenhum amigo/ – desses que não tenho – quis ludibriar/ a sua solidão bebendo um copo comigo.”
No fundo, a verdadeira obsessão desta poesia não é tanto a morte como a ânsia hoje tão vulgar de firmar um nome. Mas de tanto antecipar o fim, é a vida que não chega a cumprir-se, e vai-se dando “um nítido trespasse de alma”, cingindo sempre os poemas à artificialidade desses inferninhos da impaciência, onde se acumulam os tais juros de demora, encurralando-se entre esse outro beatério que se reúne nos “templos da amargura”, as tabernas e os bares (“Nem tudo são bares e tabernas, deve haver/ algo mais, embora eu não saiba o quê.”), prisões feitas do vidro fosco das garrafas, com os seus próprios confessionários e padres, esses labirintos que se oferecem aos demónios vulgares cumprindo as suas penas de renúncia ou eterna hesitação, tentando arranjar bilhete para o “panteão da miséria”.
Este sim é o verdadeiro estupor diante do mundo, e não, como insiste o poeta, esses vícios de quem aposta com o melhor de si em renovar as hipóteses da vida. “Sofremos com nojo a pertença em nós/ inculcada de uma geração, as suas taras/ vindas de longe, modos diferentes/ de se ser igual. Com uma raiva triste,/ vemo-los foder, procriar, indo aos poucos/ definhando, esperados que são/ por pós-modernos jazigos.// Não há nada a fazer,/ nenhuma palavra nos salva./ Somos sempre contemporâneos da merda.”
A questão é que há, sim, outras palavras, há uma duração que vai além do corpo, há outra relação mais funda, e a poesia comparece se um gesto subtil da atenção agarra subitamente um fio que, se seguido até ao fim, permite superar ou transmutar as piores condições que nos serve a época, e vingarmo-nos até das nossas circunstâncias e limitações pessoais. Maurice Blanchot lembra como na sua IX Elegia Rilke traz para a luz o poder que nos pertence, “a nós, os mais perecíveis de todos os seres”, de salvar o que durará mais do que nós: “… E essas coisas, cuja vida/ é declínio, compreendem que tu as celebras; perecíveis,/ elas conferem-nos o poder de nos salvarmos, a nós, os mais perecíveis./ Elas querem que, no fundo do nosso coração invisível, as transformemos/ em – ó infinito! – em nós! Seja qual for, no fim, o nosso ser”.
Blanchot sublinha os versos em que o poeta alemão deixa, na gramática mais ardorosamente simples, bastante claro aquele que é o compromisso do poeta: “Aqui, entre aqueles que passam, sê, no reino do declínio,/ Sê o cristal que ressoa e no fragor da ressonância já se quebrou.”
Da poesia de Freitas, em sentido contrário, recolhem-se apenas destroços, sinais demasiado convencidos de que tudo está destinado a perder-se: “não é nas palavras/ que o que se perde regressa alguma vez”, garante ele. Assim, neste incansável testemunho contra a própria poesia, é natural que só raramente, como que a contragosto, nos seja possível pressentir esse fragor que ressoa, aquele poder da transfiguração ou da metamorfose que permite aos homens acederem ao eterno e ao espaço imaginário que os redime e liberta do tempo destrutivo.
Se a poesia nos surge como o privilégio que é próprio da dimensão contemplativa e desse engenho espantoso através do qual o homem é capaz de arrancar de si um tumulto inesperado e organizar as suas forças mesmo quando tudo o empurra para o pessimismo, contrariar essa vitalidade desesperada é negar a diferença que explica a feição imponderável daquilo que torna certos homens presenças tão inquietantes. É aí, nos seus actos que rompem com as piores nódoas da existência, que o princípio do contágio opera e nos instiga a deixar testemunho e com ele transformar o mundo.
Mas isso só é possível se o homem puder escapar por um instante que seja à sua identidade, a tudo aquilo que o sufoca, e a isso se liga o seu “dom de desaparecer”. Blanchot frisa que “nesse desaparecimento manifesta-se também o poder de reter, e nessa morte mais pronta exprime-se a ressurreição, a alegria de uma vida transfigurada”.
Ao insistir tanto no nome, sendo-lhe perpetuamente devolvido num naufrágio que não mais cessa, a poesia de Freitas parece viver engasgada com um trauma, algo parecido com aqueles brinquedos que gaguejam uma melodia apropriada pela sua doçura à infância isto até que esta, na sua repetição, acaba às tantas estrangulada pelo próprio cordel, esse fio que se puxa para dar corda, mas que às tantas já degrada aquela breve frase musical. Assim, o brinquedo torna-se sinal de um trauma, e aquele que lhe puxava o cordel aparece-nos anos depois a deplorar “a inútil alma que emprestamos às coisas”.
No fundo, a morte acaba por assemelhar-se a esse brinquedo, e de tão gasta a sua frase musical, esta devasta toda a potência elegíaca. Com todos os equívocos e os destroços que se acumulam no horizonte, numa época em que o niilismo parece marcar toda a civilização e ser também o seu destino, o cinismo torna-se sedutor e faz escola. Esse pensamento que nega a existência de qualquer valor, proclamando que a vida não se fundamenta em nada e que não faz sentido procurar-lhe o significado. Daí que a própria impotência seja um factor de união entre aqueles que só sabem falar de si como seres sensíveis e aviltados, uma geração de vítimas e ofendidos. Certamente para quem vive deste modo a sua vida, a morte só pode ser mais outra imperdoável ofensa.
Já Blanchot recorda que, num sentido poético, “morrer não será morrer mas transformar o facto da morte, em que o esforço para ensinar-nos a não renegar o extremo, a expormo-nos à perturbadora intimidade do nosso fim, concretizar-se-á na afirmação apaziguadora de que não existe morte, de que ‘perto da morte já não se vê a morte’”.
Este penetrante crítico literário toma balanço nos versos de Rilke e lembra-nos que o que define a condição humana é precisamente a desenvoltura desse “animal que vive no Aberto”, e que por isso se liberta da morte.
Por outro lado, este mesmo poder pode ser invertido e tornar-se a razão da nossa clausura mais mesquinha (“tudo o que existe é um excesso,/ a visitar-nos trocista em condoída pobreza”, escreve Freitas), dessa forma de agonia perpétua, uma vez que é na medida em que estamos submetidos à perspectiva de uma vida limitada e mantida entre limites que, na verdade, nos condenamos a só ver a morte. E Blanchot cita mais alguns versos de Rilke: “Só a vemos a ela; o animal livre/ tem sempre o seu declínio atrás dele,/ e diante dele Deus, e quando avança, avança/ na Eternidade, assim como fluem as fontes.”
Pelo contrário, obcecada com a morte, a poesia de Manuel de Freitas não exprime outra coisa senão um efeito de exaustão, diz-nos como se esgotaram as fontes. Na verdade, o que se perdeu aqui foi o acesso a esse privilégio diferenciador, fazendo-se da morte o centro de todos os argumentos, como ralo em volta do qual se organiza um niilismo troca-tintas, redundante e inescapável, como quem afia uma lâmina a partir de uma premissa covarde, de tal modo que, se até certa altura esta parecia ser usada como uma forma de agir em legítima defesa, às tantas tornou-se um hábito, um modo de ser e até uma fisionomia, aquela expressão ácida e arrogante que constrói toda a sua suposta radicalidade atrás da linha de uma relação desoladora e tendente à inexpressão.
O que nos fala em tantos destes versos são esses grunhidos e balbucios que podemos imaginar que escapam daqueles que se condenaram ao inferno numa espécie de amuo face à própria vida. E mais uma vez Blanchot lembra que “a morte, ‘só ver a morte’, é, pois, o erro de uma vida limitada e de uma consciência mal convertida.
A morte é essa preocupação de limitar que introduzimos no ser, é o fruto e talvez o meio da má transmutação pela qual fazemos de todas as coisas objectos, realidades bem fechadas, bem finitas, totalmente impregnadas da nossa preocupação com o fim. A liberdade deve ser emancipação da morte, abordagem desse ponto em que a morte se faz transparente.” E retomamos as palavras de Rilke: “Pois, perto da morte, já não se vê a morte/ mas olha-se fixamente para fora, talvez com um grande olhar de animal.”
Em sentido contrário, se quiséssemos imaginar o que seria uma inversão do próprio movimento da poesia, teríamos de imaginar versos nos quais apenas se lesse esse modo de se apegar ao mundo através do medo, o qual não consegue escapar à perturbação narcísica de ver o seu nome ser apagado das superfícies demasiado instáveis e sujeitas à erosão da vida.
Só que a vida é precisamente essa impermanência, esse vigor que deve ser renovado e transferir-se entre os corpos, entre as vozes, de tal modo que os homens possam viver as suas vidas empenhados em furtar-se à morte, não estendendo de forma inepta os dias das suas vidas para definharem já sem condição de apreensão desses elementos em eterno e vivificante conflito, mas para ultrapassar o momento de morrer, como que distraídos, deslumbrados, indo longe demais.
Entre nós, contudo, não precisamos de imaginar o que seria essa inversão do testemunho da poesia, pois, nos últimos largos anos, para onde quer que nos desviássemos, víamo-nos a pisar um território submergido por esse degradante enredo, aquele que se vai munindo de todos os subterfúgios, todos os truques e ardis para justificar ou aligeirar o seu fracasso, tornando-se incapaz de superar a morte. “Modos de pavor, em suma,/ que em qualquer tempo seriam/ esta mão ocidental e fria/ que escreve para ninguém ouvir/ o nada que tem (terá?)/ para dizer na noite corrompida.”
Só resta, assim, esta noite corrompida, rendendo-se, adequando-se às expectativas do fim, a uma vida que já não se distingue, que, em vez da subversão, está inteiramente convertida a essa relação de aparências, assoberbada com o exterior, esse real que já não oferece margem para os devaneios da interioridade, e que se vê retido nos modos de decomposição, deixando-se sepultar vivo.