por Sónia Peres Pinto, Daniela Soares Ferreira e Joana Mourão Carvalho
Na semana passada, o primeiro-ministro apresentou as medidas que considera serem necessárias para mudar o cenário da habitação em Portugal. As críticas ao novo plano do Governo não tardaram a surgir. Sem surpresas, a direita considerou que o programa está «alheado da realidade» e segue uma linha «mais próxima da extrema-esquerda», desconsiderando os privados, mas até a bloquista Mariana Mortágua acabou a afirmar que «há Estado a mais» nas novas medidas.
A reação era a esperada, já que o programa governamental espelha uma continuidade das políticas do antigo ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos, tal como admitiu Marina Gonçalves. Em entrevista à Renascença e ao Público, a nova ministra da Habitação garantiu que há uma continuidade do trabalho que desenvolveu enquanto secretária de Estado e que «a linha não muda».
«É esta a visão que devemos todos ter no porquê de se ter autonomizado o Ministério da Habitação e ter-se mantido uma linha de continuidade com o trabalho que estava a ser feito pelo ministro das Infraestruturas e da Habitação, mas também pela secretária de estado da Habitação e que continuará com o Ministério da Habitação», declarou.
A marca do pedro nunismo neste pacote para a habitação também nunca seria uma novidade dado o timing em que foi apresentado. Quando delegou a tutela a Marina Gonçalves no início de janeiro, António Costa deu-lhe três meses para dar execução à política de habitação. Mas não foi necessário esgotar esse prazo, ainda que a ministra tenha assumido a pasta há pouco mais de mês e meio, o que para muitos só revela que esta política habitacional tenha bebido inspiração no trabalho que até aqui tinha sido desenvolvido por Pedro Nuno Santos.
A forma como este pacote foi apresentado em trio, pelo primeiro-ministro, pela ministra da Habitação e pelo ministro das Finanças, também evidenciou a falta do rosto destas medidas. Apesar disso, Marina Gonçalves disse que não se sentiu relegada para segundo plano, estendendo a responsabilidade das medidas a todo o Governo.
«O Governo é um só e fazemos este trabalho em equipa. Até podíamos ter lá mais ministros que contribuíram para este pacote legislativo e que foram parte importante na sua concretização. […] Termos três ministros a apresentar um pacote para a habitação é valorizar o assunto de forma coletiva e percebermos que a habitação é mesmo uma prioridade», desvalorizou, na mesma entrevista.
Ao Nascer do SOL, o politólogo José Filipe Pinto diz que António Costa sentiu necessidade de «dar palco a esta nova pasta e a esta nova ministra» e, face a esse cenário, viu-se «obrigado» a apresentar medidas que causassem impacto junto do público. «Até diria, mais do que medidas são medidas populares, que se aproximam perigosamente do populismo» por Portugal estar perante um grave problema habitacional. «Todos sabemos que qualquer alteração na taxa de juro representa um esforço imenso para a maioria dos agregados familiares no que diz respeito ao crédito à habitação e também todos sabemos que o mercado de arrendamento está com preços proibitivos e que precisava de uma intervenção».
Em relação à estreia de Marina Gonçalves como ministra, apesar de já ter assumido anteriormente funções de secretária de Estado de Pedro Nuno Santos diz apenas: «Há uma diferença muito grande entre ser secretária de Estado e ser ministra, o que significa que as grandes linhas de uma política habitacional teriam sempre de decorrer da ideia do ministro e não de uma secretária de Estado».
O politólogo chama também a atenção para o facto do primeiro-ministro estar a anunciar um conjunto de alterações, sem ter um rumo político e que implicava ser alvo de uma série de reações, não só dos partidos que estão na oposição, mas também dos grupos de interesse que estão ligados ao fenómeno do arrendamento e da habitação.
«O que estamos a assistir agora é a sucessivas clarificações, porque não houve da parte do Executivo o cuidado de acautelar. Estamos perante aquilo a que defino como uma política de terra à vista, ou seja, de conseguir satisfazer os interesses da maioria dos portugueses que, evidentemente, numa primeira abordagem, e sem grande profundidade, vão concordar porque facilita mais o arrendamento ou porque podem ver a sua carga mensal cair, no que diz respeito aos encargos com a habitação, por isso é perfeitamente normal que aplaudam», refere.
De acordo com José Filipe Pinto, as medidas não são sustentáveis, dando a ideia de que o Governo encontrou um tesouro. «Não é possível haver este tipo de subsídio populista, no sentido de querer agradar a muitos milhões de portugueses, mas por outro lado, sente-se esmagado com o encargo que a habitação representa no seu orçamento mensal».
A agravar esta situação está o facto de não ter havido uma verdadeira política de habitação nos últimos Governos. «Nunca tivemos verdadeiramente uma política de habitação. E, por isso mesmo, as medidas que agora aparecem são medidas soltas que não se inserem naquilo a que se chamará verdadeiramente uma política. Até porque a ministra que tutela a pasta é alguém que assumiu a pasta há muito pouco tempo».
O que separa Governo e PSD na habitação
Dois dias antes de o Governo apresentar o pacote ‘Mais Habitação’, o PSD antecipou-se e deu a conhecer o seu próprio projeto para esta área. O plano dos sociais-democratas incide sobretudo no aumento da oferta de casas, na criação de apoios transitórios e pretende ainda estimular outras «soluções inovadoras».
Entre as medidas mais controversas destes dois pacotes está o aproveitamento do património devoluto. Enquanto que o Executivo de António Costa pretende avançar com o arrendamento obrigatório destes imóveis, o partido de Luís Montenegro exclui a intervenção na propriedade privada e propõe criar um «regime excecional de colocação semiautomática em uso de imóveis públicos devolutos ou subtilizados», bem como sujeitar os imóveis públicos devolutos a um IMI agravado.
No que se refere aos apoios transitórios à procura, o PSD propõe que se aposte num subsídio de arrendamento habitacional que abranja jovens e a população mais velha. A ideia é que este regime de subsídio temporário substitua o programa Porta 65 para jovens. O apoio seria definido em função do valor da renda e limitado a rendas máxima de referência por tipologia de imóvel. Já o Governo apresentou uma proposta para atribuir um subsídio máximo de 200 euros para as famílias com taxas de esforço superiores a 35% no pagamento da renda. A medida destina-se a todos os contribuintes até ao sexto escalão, mas há limites à atribuição.
Na proposta do PSD, saltam ainda à vista os incentivos para facilitar a compra de casa por parte dos jovens, como por exemplo um apoio financeiro aos capitais próprios na compra da primeira habitação própria permanente. E os sociais-democratas vão ainda mais longe que o Governo nos estímulos a soluções inovadoras, como é o caso do build-to-rent, revitalização das cooperativas de habitação e facilitação da construção modular.
Contudo, de fora do programa do PSD ficam o fim dos vistos gold e de novas licenças de Alojamento Local, que o pacote do Executivo socialista já prevê.
Medidas não agradam a todos
Se por um lado, o presidente da Associação dos Inquilinos Lisbonenses, Romão Lavadinho, elogia as medidas ao dizer que são positivas tanto para proprietários, como inquilinos, dizendo que tem «pena que não seja proprietários, nesta altura». Por outro lado, António Frias Marques, presidente da Associação Nacional de Proprietários, afirma que as alterações anunciadas para o mercado de habitação servem apenas «para desviar as atenções», referindo que «se há uma coisa que António Costa realmente conseguiu foi pôr todos distraídos dos verdadeiros problemas», refere ao nosso jornal.
E dá cartão vermelho ao Governo, uma vez que defende que nos últimos sete anos não foi construída uma habitação. «Isto é política mas é uma política que, sinceramente, não aprecio muito. É para entreter as pessoas».
Um discurso que leva Tiago Mota Saraiva, arquiteto e urbanista, a censurar os senhorios. «O discurso das associações de proprietários está a ser terrorista, qualquer coisa que se faça no mercado de arrendamento que não seja liberalizar é sempre muito pouco ponderado, ao ponto de dizerem mentiras. A questão dos devolutos já está inscrito na lei e, por isso, não levanta dúvidas e não se trata de casas de segundas habitações ou de imóveis de imigrantes», refere ao Nascer do SOL.
Governo acena coma resolução do problema
As medidas aprovadas pelo Conselho de Ministros têm como objetivo «responder de forma completa a todas as dimensões do problema da habitação», como afirmou António Costa.
As medidas estão agora em discussão pública e o prazo dura até ao próximo dia 10 de março. Só depois serão aprovadas, umas pelo Governo, outras através de proposta de lei à Assembleia da República, no Conselho de Ministros de 16 de março. De acordo com o primeiro-ministro, «a habitação é uma preocupação central e transversal da sociedade portuguesa porque diz respeito a todas as famílias e não apenas às mais carenciadas», mas também «aos jovens e às famílias da classe média».
Para já, até que termine a discussão pública e até que as medidas sejam oficiais foram apontados cinco eixos de problemas e de soluções. Um deles visa aumentar a oferta para habitação que diz que «sem alteração de plano de ordenamento do território ou licença de utilização, terrenos classificados ou imóveis licenciados para comércio ou serviços podem ser usados para a construção de, ou reconvertidos para habitação».
Ainda neste âmbito, o Estado vai disponibilizar terrenos ou edifícios para cooperativas ou o setor privado fazerem habitações a custos acessíveis, referindo «dois concursos dedicados à construção modelar que encurta significativamente os prazos de construção e aumenta a eficiência energética».
Outro dos objetivos é simplificar o licenciamento. Aqui, António Costa destacou dois tipos de medidas. Uma, «muito inovadora, é que os projetos de arquitetura e de especialidades deixam de estar sujeitos a licenciamento municipal passando a haver um termo de responsabilidade dos projetistas, ficando o licenciamento municipal limitados às exigências urbanísticas». E está prevista uma penalização financeira das entidades públicas quando não respeitem os prazos previstos na lei para a emissão de pareceres ou tomada de decisão, passando a correr juros de mora a benefício do promotor.
Aposta na ofertado arrendamento
Em relação ao arrendamento, o Governo afirma que é preciso reforçar a confiança dos senhorios para que coloquem no mercado casas devolutas «através de duas medidas a primeira das quais é que o Estado propõe-se arrendar todas as casas disponíveis durante cinco anos desde que possa subarrendar».
A outra medida pretende introduzir uma alteração, relativamente a contratos que já existem ou que sejam estabelecidos entre senhorios e inquilinos, para que, em todos os pedidos de despejo que deem entrada no Balcão Nacional de Arrendamento, após três meses de incumprimento, o Estado passe a substituir-se ao inquilino no pagamento e ao senhorio na cobrança da dívida.
Quanto ao arrendamento acessível, o Executivo estabelece «um princípio de isenção de imposto de mais valias a quem venda ao Estado, incluindo municípios, qualquer tipo de habitação», incentivando quem tem casas que não pretende usar a vender, para que se possa aumentar o número de habitação a colocar em arrendamento acessível. Ao mesmo tempo, será criada uma linha de crédito de 150 milhões de euros para financiar as obras coercivas por parte dos municípios, que a lei permite, «mas os municípios raramente fazem por dificuldade financeira».
Destaque ainda para a criação de um «forte incentivo para que regressem ao mercado de habitação frações que estão dedicadas ao alojamento local» através de várias medidas.
O Governo explica também que as atuais licenças serão reavaliadas em 2030, e, posteriormente, haverá reavaliações periódicas; serão proibidas as emissões de novas licenças com exceção do alojamento rural nos concelhos do interior onde não há pressão urbanística e onde podem contribuir para a dinamização económica do território; os proprietários que transfiram fogos do alojamento local para arrendamento habitacional até final de 2024, terão uma taxa zero no IRS até 2030; será criada uma contribuição extraordinária aos alojamentos locais para financiar políticas de habitação.
Reforçam-se ainda os incentivos fiscais para o arrendamento acessível, sem pagamento de IMT na aquisição de casas para arrendamento acessível. Quem realize obras de reabilitação nestas casas pagará IVA à taxa de 6%, e terá total isenção de IRS sobre os rendimentos prediais. E melhoram-se os incentivos fiscais para todo o arrendamento, baixando a taxa de 28% para 25%.
Mas há mais. O Governo destaca ainda o reforço de incentivos à estabilidade nos contratos de arrendamento: «Se o contrato for entre 5 e 10 anos a taxa de 23% passará para 15%; se for entre 10 e 20 anos, a taxa de 14% baixará para 10%; e se for mais de 20 anos, baixará de 10% para 5%».
Sendo a especulação imobiliária um assunto que está na ordem do dia, o Governo também não deixou de lado este tema. E, para o combater, foram destacadas duas medidas, com destaque para o fim da concessão de novos vistos gold, «sendo renovados os existentes, se se tratar de investimentos imobiliários, apenas para habitação própria e permanente ou se for colocado duradouramente no mercado de arrendamento».
Junta-se o facto de o Estado passar a limitar o crescimento das rendas em novos contratos, devendo estas «resultar da soma da renda praticada com as atualizações anuais e do valor da subida da inflação fixada pelo Banco Central Europeu».
O Governo decidiu ainda apoiar as famílias com medidas quer no que diz respeito ao contrato de arrendamento quer no crédito à habitação.
É também criado um apoio para créditos até 200 mil euros de famílias tributadas até ao 6.º escalão do IRS, o Estado bonificando o juro em 50% do valor acima do valor máximo a que foi sujeita a família no teste de stress que fez quando contratou o crédito.
No valor dos contratos de arrendamento já em vigor, atribui-se aos agregados familiares que tenham rendimentos até ao 6.º escalão de IRS inclusive e uma taxa de esforço superior a 35% e uma renda de casa no limites fixados pelo IHRU para o respetivo concelho, um subsídio do Estado até ao limite máximo de 200 euros mensais para as rendas.
António Costa lembrou que lembrou que no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) foram definidas 2 700 milhões de euros para aumentar a oferta pública de habitação, em que 1 200 fogos estão concluídos, 11 900 estão em fase de projeto ou de obra e acena com um calendário para 26 mil novas casas de oferta pública de habitação.
Pouco depois, a ministra da Habitação explicou as medidas anunciadas. Em entrevista à RTP3, Marina Gonçalves explicou, por exemplo, que os proprietários têm o dever de dar uso às suas habitações. «O instrumento de que aqui falamos é para um momento em que alguém não quer arrendar o seu imóvel quando há um dever de utilização do património. Este dever existe na lei. Não é nada que esteja a ser criado aqui», defendeu.
E acrescentou que o Estado não diz que a casa tem que ser arrendada obrigatoriamente. «Há todo um processo de contacto com o proprietário do imóvel que pode simplesmente explicar que não está usado porque está à espera de uma licença de utilização» e que estes argumentos são válidos «para o proprietário dizer ‘vou pô-la à venda, vou pô-la a arrendar’».
E depois das críticas do alojamento local, Marina Gonçalves defendeu que não vai acabar em 2030. «O que dissemos é que iríamos reapreciar o regime vigente do AL, porque as condições serão outras e permite flexibilidade na forma como avaliamos e a importância do setor».