Descobriu a pintura através de um livro que encontrou na biblioteca da escola quando tinha 13 anos. Em 1950, chegou a expor em Londres com o surrealista espanhol Joan Miró. «Mas não conseguia vender os quadros e por isso dediquei-me à minha outra paixão – o estudo do comportamento dos animais».
Doutorou-se em Oxford com uma tese sobre os peculiares hábitos reprodutivos de um pequeno peixe de água doce.
Em 1959, já uma estrela da televisão, tornou-se conservador de mamíferos do Jardim Zoológico de Londres. A resistência à mudança com que se deparou levou-o a abandonar o cargo sete anos depois, tornando-se então diretor do ICA – o prestigioso_Instituto de Arte Contemporânea, também na capital britânica.
Um lugar que ocupou por muito pouco tempo: o estrondoso sucesso de O_Macaco Nu (1967) levou-o a abandonar tudo e a mudar-se de armas e bagagens para a ilha de Malta, onde comprou a Villa Apap Bologna, atualmente a residência do embaixador norte-americano.
Ao comparar o comportamento humano com o de outros animais, O Macaco Nu tornou-se um dos marcos fundadores de um novo campo de estudo, a etologia._Ao mesmo tempo revolucionário, iconoclasta, divertido e instrutivo, vendeu, no total, 20 milhões de exemplares.
Mas Morris ficou também conhecido pelas suas experiências com Congo, um chimpanzé que pintava tão bem que Miró e Picasso tinham quadros seus.
Ao longo da sua vida, o zoólogo visitou mais de cem países e assinou cerca de 800 programas de televisão. Foi discípulo de Konrad Lorenz, conheceu Marlon Brando, almoçou vezes sem conta com o pintor Francis Bacon e conta David Attenborough entre os seus melhores amigos.
Autor de cerca de 80 livros e 800 programas de televisão, sabe como manter o público interessado numa história – e é isso que faz como ninguém na sua autobiografia, Observar – Encontros com Humanos e Outros Animais, publicada recentemente na coleção Arte e Ciência, da Universidade do Porto.
Atualmente com 95 anos, Morris continua a escrever e a pintar até de madrugada. E revela que quer assinalar o seu centésimo aniversário com um salto de pára-quedas com os netos. O autor respondeu às perguntas do Nascer do SOL por escrito, a partir da sua casa na Irlanda, para onde se mudou em 2019, após a morte da mulher, Ramona.
Soube que se mudou, há poucos anos, para a Irlanda. Esta mudança de residência implicou uma mudança no quotidiano, nas rotinas?
Sim, houve uma enorme mudança na minha vida quando a minha mulher morreu, em 2018. Estávamos juntos desde 1949 – faltavam apenas alguns meses para cumprirmos 70 anos juntos. Éramos tão próximos que a sua morte me pareceu mais uma amputação do que uma perda. Não podia ficar na casa de Oxford que partilhámos durante mais de meio século [casa que adquiriram em 1980 e que tinha pertencido ao lexicógrafo escocês James Murray, o homem por trás do maior dicionário do mundo, o Oxford English Dictionary] porque estava demasiado impregnada de memórias. Por isso, em 2019 mudei-me para a Irlanda, para me instalar na porta ao lado da casa onde vivem o meu filho, a mulher dele e os meus quatro netos. Tem sido maravilhoso ter a minha família por perto nestes últimos anos, eles têm sido extremamente atenciosos em todos os aspetos.
Há alguns objetos especiais ou recordações dos quais não se quisesse separar e que tenha levado consigo para a Irlanda?
A casa em Oxford era muito grande, tinha 27 divisões, tinha lá a minha biblioteca de 11 mil livros e a minha vasta coleção de arte. Esta casa na Irlanda é muito mais pequena, naturalmente, e apenas pude trazer comigo uns poucos milhares de livros e uma pequena parte da coleção de arte. Tudo o resto foi leiloado antes de eu partir. Mas pude ficar com as peças favoritas e trazê-las comigo. Muitas estão agora em exposição num instituto de arte que abri perto de Dublin. Chamava-se DIVA – Dun Laoghaire Institute of Visual Arts. É o meu presente para a Irlanda, para agradecer ter-me acolhido nos meus anos finais. O Instituto tem duas salas para o ensino de arte, dois estúdios para artistas e duas galerias – uma para exposições temporárias, e uma permanente, para a minha coleção pessoal de pinturas e artefactos. A diretora do Instituto é a minha neta, Tilly Morris.
Tem saudades da sua vida em Oxford?
Deixei excelentes amigos em Oxford e tenho saudades deles, mas sinto-me muito bem aqui na Irlanda, que é um país que acarinha as artes e os artistas.
Como é um dia típico na sua vida? Continua a deitar-se tarde?
Sim, continuo a ser um animal nocturno. Mesmo tendo feito 95 anos em janeiro, continuo a trabalhar todas as noites até às quatro da manhã. O meu cérebro sempre funcionou melhor à noite, de manhã é escusado, por isso acordo sempre tarde. Em 2022 fiz 112 novas pinturas e escrevi um novo livro. Nunca esperei poder fazer isto aos 94 anos e considero-me uma pessoa com muita sorte. Achava que ia morrer cedo, mas para minha grande surpresa ainda aqui estou e prometi festejar o meu centésimo aniversário fazendo um salto de pára-quedas com os meus netos. Não será uma nova experiência para eles, mas para mim sim, se lá chegar.
Andava pelos 11 anos quando estalou a II Guerra Mundial. O que recorda desses anos? Sentia que o país estava em guerra, havia escassez, dificuldades, ou a guerra era uma realidade distante?
Estava muito consciente do que se passava. Durante a Segunda Guerra Mundial caíram cerca de 100 bombas na cidade onde eu vivia. Sempre que lançavam uma fiada de bombas, ficávamos a ouvir atentamente para perceber se o estrondo da segunda explosão era maior ou menor do que o da primeira. Quando era mais maior, significava que as bombas estavam a vir na direção da nossa casa. Se fosse esse o caso, a minha mãe corria a meter-me debaixo da mesa da cozinha, que tinha uma estrutura de metal reforçado que me salvaria a vida se a casa desabasse em cima de mim. Felizmente isso nunca aconteceu, embora as bombas uma vez tenham caído na estrada mesmo ali ao lado.
De todos os animais que teve no seu ‘jardim zoológico doméstico’ em criança, quais são aqueles de que se lembra melhor?
Cheguei a ter raposas domesticadas com a ideia ingénua de que podia ensiná-las a perseguir cães de caça! [A caça à raposa em Inglaterra é feita com matilhas de cães] Também tive 19 porquinhos-da-Índia e mais de 100 sapos.
Como aprendeu a pintar? Aprendeu sozinho ou teve quem o ensinasse?
Tudo começou num colégio interno quando descobri um livro intitulado The Painter’s Object [O Objecto do Pintor] na biblioteca da escola. Foi assim que descobri o surrealismo e comecei a fazer as minhas primeiras imagens surrealistas. Desde aí já completei mais de 3500 pinturas surrealistas.
Por que razão o surrealismo o atraía tanto?
O movimento surrealista começou como um protesto contra a carnificina da Primeira Guerra Mundial. Foi um movimento de rebelião
contra o sistema e no meu caso representou a minha rebelião contra a carnificina da Segunda Guerra.
Alguma vez procurou inspiração ou fez experiências – como fizeram outros surrealistas – com álcool ou alucinogénios, ou limitou-se a confiar na sua imaginação?
Sempre achei a vida embriagante quanto baste, não precisava das ajudas químicas do costume.
Também pintou os seus sonhos? Interessava-se pelas teorias de Freud?
A importância de Freud foi ter colocado tanta ênfase na influência do pensamento inconsciente. Quando começo uma pintura deixo a minha imaginação correr livremente, sem qualquer controlo consciente. Houve uma vez em que me submeti à hipnotização e realizei uma pintura nesse estado de hipnose. Mas o resultado foi decepcionante.
Pode descrever-me a sua visita à gruta de Lascaux? Como se sentiu quando viu as pinturas?
Quando visitei Lascaux tive a sorte de o meu guia ser o rapaz que tinha descoberto a gruta. Tinha acabado de abrir ao público e as pinturas estavam frescas e brilhantes, como se tivessem sido acabadas de pintar, embora tivessem 15 mil anos. Fiquei deslumbrado com tanta beleza. Como disse Picasso quando as viu, ‘Não fizemos nada de novo!’.
Então conheceu Marcel Ravidat, o jovem que descobriu a gruta?
Já não tenho a certeza se era Marcel Ravidat ou Jacques Marsal, os dois dos quatro adolescentes que se tornaram os guardiães e guias da gruta. Quando visitei Lascaux no início da década de 1950 eram novos e conheci um deles na nova entrada da gruta. O que vi lá dentro era tão espantoso que essas imagens permaneceram comigo para o resto da minha vida.
Houve outras obras de arte que mexessem consigo com uma intensidade comparável?
Falando de Picasso, houve uma exposição em Londres em 1945, logo a seguir à guerra terminar, que provocou uma enorme impressão em mim. Precisei de vários anos para sacudir a sua influência e encontrar a minha própria voz. Outras obras de arte que tiveram um grande impacto em mim foram os trípticos de Bosch. Fui vê-los a todos. Gosto tanto do de Lisboa [As Tentações de Santo Antão, do Museu Nacional de Arte Antiga] que mandei fazer uma moldura especial com painéis de madeira exatamente do mesmo tamanho. Depois criei o meu próprio tríptico, usando os mesmos métodos de pintura de Bosch. Esse meu tríptico está agora numa coleção particular em Espanha.
Conheceu artistas como Joan Miró, Henry Moore e Francis Bacon. Eram pessoas normais ou sentia que estava perante alguém especial?
São todos eles pessoas muito especiais, mas muito diferentes entre si. Miró e Moore só eram rebeldes assim que entravam nos seus ateliês. Fora dos ateliês tinham vidas de homens de família bastante normais. Bacon, pelo contrário, tinha uma vida que era ainda mais surrealista do que as suas pinturas.
Não é segredo para ninguém o quanto ele gostava de beber. As coisas às vezes ficavam fora de controlo?
Íamos muitas vezes almoçar, mas eu fazia por certificar-me que nunca jantava com ele. Ao almoço ele era encantador, despretensioso e divertido. Estava sempre a fazer-me perguntas sobre animais. Mas à noite mudava completamente, tornava-se um extrovertido quezilento e copofónico, e eu fazia por evitar estes episódios.
Chegou a visitar o estúdio dele?
Sim. Continua a parecer-me espantoso que ele conseguisse trabalhar naquele pequeno estúdio no meio de um caos total. O estúdio foi magnificamente reconstruído em Dublin [Hugh Lane Gallery] – um trabalho que foi feito por um amigo que vive agora perto de mim. Até o pó do estúdio original foi apanhado e levado para a reconstituição.
Viveu em Malta e ao longo da sua vida viajou por todo o mundo. De que viagens guarda melhores recordações? Dos países que visitou há algum que se destaque?
Devido à Segunda Guerra Mundial não pude viajar durante a minha adolescência, por isso prometi a mim mesmo que ao longo da vida visitaria cem países. Acabei por consegui-lo – a minha contabilidade final é 107 países. Adoro grandes portuárias – Amesterdão, Sydney, São Francisco, Istambul e Lisboa. E adoro subir o Nilo no Egipto. Mas a minha região favorita do globo é o Pacífico Sul. Quando lá estamos sentimos uma enorme paz com o mundo e tudo o resto nos parece de repente horrivelmente apinhado, violento e stressante. Mas ao fim de algum tempo acaba por tornar-se demasiado relaxante e queremos de novo mergulhar no caos da civilização.
Trabalhou muito de perto com diferentes animais, alguns dos quais bastante perigosos. Alguma vez sentiu que estava a correr demasiados riscos?
Três vezes: uma vez com uma cobra venenosa, outra com um urso pardo e outra ainda com um elefante indiano. A cobra fugiu quando eu estava a tentar ‘encantá-la’ para a televisão. Na segunda ocasião, tive de entrar para um espaço fechado com um urso pardo adulto e dar-lhe de comer pondo uma banana na minha boca e deixando-o vir mordê-la – mais uma vez, para a televisão. Por fim, na Tailândia, quando estava a estudar o comportamento dos elefantes, levaram-me a acreditar que um elefante me podia fazer uma massagem aos pés. Há uma fotografia disso nas minhas Memórias.
Alguma vez sentiu que conseguia comunicar com um animal?
Sim, aprendi a dominar a linguagem de vários animais. Sou fluente em ‘chimpanzês’ e ‘tigrês’, por exemplo. Uma vez, quando cumprimentei um tigre solitário num jardim zoológico do Japão, ele levantou-se e começou a esfregar-se contra as grades da jaula.
Debaixo desta fina camada de verniz civilizacional, nós, seres humanos, acabamos por ser parecidos com os outros animais? Continua a diverti-lo observar o ‘jardim zoológico humano?
Sim, continuo a fazer observações relativamente à linguagem corporal humana, e completei recentemente a primeira fase do meu etograma humano – em que tento nomear e descrever cada ação humana. Acaba de ser depositado no meu arquivo científico, que está à guarda da Universidade do Porto, em Portugal.
A etologia ajuda a explicar alguns acontecimentos, por exemplo a invasão russa da Ucrânia?
Os seres humanos evoluíram ao longo de mais de um milhão de anos vivendo em pequenas tribos, e hoje vivemos em super-tribos gigantescas. Existe tanto excesso de população que haverá sempre explosões de violência pontuais.
Atualmente ouvimos muitas pessoas argumentarem que destruímos o planeta, com um discurso apocalíptico. O facto é que nas últimas décadas assistimos a uma redução drástica da biodiversidade. Preocupa-o o futuro do planeta ou encara o que aí vem com optimismo?
Embora eu já tenha descrito a humanidade como o bolor num planeta a apodrecer, costumo surpreender as pessoas quando lhes digo que apesar de tudo estou optimista em relação ao futuro. Isto deve-se a os seres humanos serem tão inventivos e criativos que tenho a certeza de que vai haver desenvolvimentos extraordinários – coisas que nem conseguimos imaginar neste momento, da mesma forma que um monge medieval não podia imaginar um computador ou um aparelho de televisão.
Se não me engano, estas Memórias foram publicadas pela primeira vez em 2007. A tradução portuguesa, que saiu agora, é uma versão atualizada?
Houve quatro razões para publicar esta nova edição de Observar:
1._ A edição original tinha 86 erros textuais, devido ao facto de a editora não ter contratado um revisor. Todos esses erros foram corrigidos na nova edição.
2. _A edição original tinha 45 ilustrações. A nova tem 71.
3. _A edição original tinha 654 páginas. A nova tem 711 páginas.
4. _À nova edição foram acrescentados dois novos capítulos, um postscriptum e um posfácio, que fazem a atualização.
Conta neste livro que nunca se preocupou muito com a saúde ou em fazer exercício. Comeu sempre e bebeu o que lhe apetecia?
As pessoas que se preocupam demasiado com a saúde sofrem com as suas próprias ansiedades – que atacam os seus sistemas imunitários. O segredo é aproveitar a vida e manter uma curiosidade infantil sobre tudo o que há neste delicioso pequeno planeta. A razão por que completei 95 anos no mês passado não é ter feito exercício, ido ao ginásio, feito jogging ou comido alimentos saudáveis – não fiz nada disso – mas sim nunca ter deixado de fazer perguntas.
A sua vida é rica em episódios pouco habituais. Um eminente psiquiatra português já falecido costumava dizer: ‘Os mais certinhos são os mais malucos’. Acha que uma pequena dose de loucura pode ser uma coisa saudável?
A loucura clínica é uma doença crónica da qual o cérebro não consegue escapar. Mas, usada de uma forma mais livre, a palavra ‘loucura’ refere-se à excentricidade e aos prazeres do pensamento irracional. A pintura surrealista é irracional mas não é louca no sentido clínico, porque os artistas surrealistas podem ser bem comportados quando estão fora do ateliê.
Quais são hoje os seus maiores prazeres na vida?
Pintar, escrever livros, e colecionar livros raros e objetos estranhos.
Fez 3500 pinturas, escreveu dezenas de livros, realizou centenas de programas de televisão, viajou por todo o mundo – isto para não falar da família. E obviamente divertiu-se muito. Quer partilhar connosco o segredo de como arranjou tempo para fazer tudo isto?
Um velho artista holandês que eu conheci em tempos, uma vez disse-me: ‘Se eu fizesse todas as coisas que tenho para fazer, nunca fazia nada’.