Sónia Peres Pinto e Daniela Soares Ferreira
Demissões em bloco de chefes de equipa de urgências, falta de médicos de família – as últimas contas apontam para mais de um milhão, em que as situações mais graves verificam-se em Lisboa e Vale do Tejo – encerramentos de serviços e listas de espera para cirurgias sem fim. Mas as verdadeiras dores de cabeça ocorrem nas urgências, com serviços cheios, horas intermináveis de espera. É este o estado da saúde em Portugal. E as queixas multiplicam-se.
O caso mais recente é a demissão dos chefes de equipa de urgência de Medicina Interna do Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, que apresentaram a demissão em bloco numa carta enviada esta segunda-feira ao conselho de administração, criticando a falta de soluções para os problemas do serviço.
As urgências pediátricas são outros dos problemas que o setor enfrenta. O ministro da Saúde já avisou que vai demorar algum tempo até se conhecer o plano de reorganização das urgências pediátricas de Lisboa e Vale do Tejo que já devia ter sido divulgado. E defende que é preferível aguardar algum tempo e ter um sistema mais seguro. Ainda esta segunda-feira, a direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde publicou o plano de reorganização para as urgências de pediatria da área de Lisboa e Vale do Tejo. Só três ficam de fora deste horário, funcionando apenas das 9h às 21h: Hospital de Loures, Torres Vedras, do Centro Hospitalar do Oeste, e São Francisco Xavier, Centro Hospitalar Lisboa Ocidental.
Esta estratégia resulta de “longas semanas de trabalho, com os profissionais das várias instituições que estão no terreno, com a ponderação e diálogo necessários, visando a construção de respostas que visam assegurar a proximidade e o acesso da população ao SNS, sublinhando a enorme generosidade e esforço dos profissionais”, diz a DE-SNS em comunicado.
E se o Governo deu 1 177 milhões de euros no Orçamento do Estado para a Saúde só este ano, um aumento de 10,5% em comparação com o orçamento inicial de 2022, é insuficiente para dar respostas tanto aos profissionais como aos utentes que também não têm a vida mais facilitada. Os tempos máximos de espera no Serviço Nacional de Saúde (SNS) voltaram a aumentar, sobretudo nas cirurgias cardíacas e oncológicas durante o ano de 2021 e os primeiros seis meses de 2022, informou a Entidade Reguladora da Saúde (ERS).
Os números analisados pela ERS mostram que, apesar do aumento das cirurgias e consultas relativamente ao primeiro semestre de 2021, a lista de espera continua a aumentar. Nos primeiros seis meses, um doente oncológico esperou em média 27,5 dias (em 2021 esperou 21,5 dias) pela cirurgia com a taxa de incumprimento de 22% (mais um ponto percentual do que em 2021) a crescer nas cinco regiões de saúde. Para cerca de 51%, a primeira consulta não respeita o tempo previsto (em 2021, esta percentagem era de 32%). Quanto à cardiologia, houve mais primeiras consultas do que no ano passado, mas a grande maioria dos utentes espera mais do que o que está definido na lei.
Nos primeiros seis meses do ano passado, nas várias especialidades foram realizadas no SNS mais de 265 mil cirurgias programadas – um aumento de 18% em relação ao ano anterior. No entanto, apesar de ter diminuído ligeiramente o incumprimento, a lista de espera para cirurgias continua a aumentar. No primeiro semestre deste ano, mais de 167 mil doentes aguardavam por uma operação. Já nas primeiras consultas de especialidade realizaram-se mais de 587 mil a pedido dos centros de saúde, mas piorou (37%) o incumprimento dos prazos máximos previstos na lei. Já as consultas de cuidados de saúde primários também sofreram atrasos significativos: as taxas de incumprimento nos prazos máximos de espera aumentaram entre 15,2% e 21,9% nas consultas no domicílio, e entre 2,9% e 10,4% nos pedidos de renovação de medicação, em ambos os casos entre janeiro e junho deste ano.
Para este ano, o ministro da Saúde acenou com a realização de mais de 12 326 000 consultas (mais 15,7% face a 2019), mais de 3 657 000 primeiras consultas hospitalares (mais 29,7% face a 2019) e mais de 660 000 cirurgias (mais 38% comparativamente a 2019). E reconhecendo que os elevados tempos de espera nos serviços de urgência dos hospitais são “um problema crónico” que só poderá ser resolvido com “medidas integradas em todo o sistema”.
Raio-x Também a relação do Governo com o setor não tem sido pacífica. Com todas as falhas que têm existido no SNS, os médicos estiveram recentemente em greve numa paralisação de dois dias convocada pela Federação Nacional dos Médicos (FNAM). “Não temos outra alternativa neste momento. O Governo e esta equipa ministerial estão a empurrar-nos para isso. Infelizmente não era a medida que queríamos tomar e lamentamos desde já profundamente o facto de alguns doentes verem as suas consultas e cirurgias adiadas, mas isto também é uma luta pelos doentes, para que tenham acesso e qualidade à prestação de cuidados médicos no Serviço Nacional de Saúde”, chegou a dizer a presidente do sindicato, Joana Bordalo e Sá.
Os médicos reclamam novas grelhas salariais bem como o redimensionamento da lista de utentes dos médicos de família, a dignificação das condições de trabalho e a valorização da carreira, que inclua um horário-base de 35 horas (a maior parte dos médicos no SNS trabalha 40 horas por semana) e a dedicação exclusiva opcional.
Na última década (2011-2022), o aumento do número de profissionais, sobretudo desde 2015, foi anulado pelo aumento do número de profissionais que trabalham em tempo parcial e pelas alterações aos horários de trabalho (regresso às 35 horas). Esta é uma das principais conclusões do Relatório Recursos Humanos em Saúde, elaborado no âmbito da Iniciativa para a Equidade Social, uma parceria entre a Fundação “la Caixa”, o BPI e a Nova SBE que revela ainda que a capacidade do SNS “depende, entre outros fatores, do número de horas trabalhadas e não do número de profissionais. Concluindo assim que ‘o esforço financeiro realizado foi canalizado para a recuperação e não para a expansão da capacidade’”.
O estudo elaborado por Pedro Pita Barros e por Eduardo Costa mostra que, apesar do número de profissionais de saúde no nosso país tenha “crescido de forma contínua” – tendo em conta que entre dezembro de 2014 e junho de 2022 se verificou um aumento global de 29% com mais 35% de médicos internos, 25% de médicos especialistas e 35% de enfermeiros – o aumento da procura por cuidados de saúde e a sofisticação técnica “esbatem os ganhos obtidos pelo aumento do número de profissionais de saúde”. O relatório revela também que Portugal “apresenta fortes desequilíbrios na força de trabalho em saúde, o que acentua a dificuldade para fazer face às necessidades de uma população particularmente envelhecida, com elevada prevalência de doenças crónicas e hábitos de vida pouco saudáveis”.
No entanto, os responsáveis alertam para as limitações “que impedem uma justa comparação”, mas defendem que Portugal é o país da OCDE com maior número de médicos por mil habitantes (5,5 médicos por cada mil habitantes). Por outro lado, surge entre os dez países com menos enfermeiros (7,1 enfermeiros por mil habitantes) e é mesmo o país da OCDE com o rácio de enfermeiros por médico mais baixo (1,3 enfermeiros por médico, em contraposição à média dos restantes países que apresentam um rácio de 2,7 enfermeiros por cada médico).
O problema do envelhecimento E se o número de profissionais não é elevado, a idade é também um problema. É sabido que o número de médicos portugueses perto da reforma tem vindo a crescer e isso é visto com um problema claro a resolver. Segundo os dados mais atuais – que dizem respeito a dezembro de 2021 – cerca de um quarto dos médicos (24%) inscritos na Ordem tinha mais de 65 anos, “o que faz antecipar uma vaga de aposentações nos próximos anos, cenário que atingirá o seu pico na presente década (2020-2030), com um expectável volume médio de aposentações anuais superior a 450”.
Este envelhecimento é menos expressivo nos enfermeiros mas o estudo garante que “afeta diretamente o planeamento dos recursos humanos em saúde, uma vez que a proporção de médicos envelhecidos não só reduz o número de profissionais disponíveis para trabalhar em período noturno ou na urgência, como permite antever, para a presente década, a aposentação de cerca de 5 mil médicos”. E deixa sugestões: “‘O planeamento atempado dessas aposentações é fundamental para minimizar disrupções no normal funcionamento dos cuidados de saúde’ adiantam os investigadores, frisando o impacto destas saídas ao nível, por exemplo, da manutenção da capacidade formativa no SNS”.
E a exaustão? O mesmo relatório fala ainda na exaustão e na perda do poder de compra dos profissionais de saúde. “A deterioração da atratividade do SNS tem vindo também a ser reforçada pela diminuição da competitividade das condições remuneratórias, fruto da evolução negativa das mesmas”. E deixa números: é que, enquanto o ganho médio nacional subiu 23% entre 2011 e 2022, no caso dos médicos observou-se um decréscimo de 5% (em parte explicado pelas aposentações) e no caso dos enfermeiros o ganho médio subiu 14%, no mesmo período.
“A comparação entre a evolução das remunerações reais e a evolução do poder de compra, evidencia que, em 2022, os médicos perderam 18% do poder de compra face a 2011, e os enfermeiros perderam 3% (em média, os trabalhadores nacionais viram o seu poder de compra subir 6% no mesmo período, apesar da quebra significativa em 2022, face ao aumento da inflação)” e os autores do estudo referem que o período de recuperação registado antes da pandemia “não foi suficiente para recuperar significativamente as dificuldades sentidas durante a crise financeira e para fazer face à dinâmica recente de preços”.
PPP vs polémicas As famosas Parcerias-Público-Privadas (PPP) foram lançadas no Governo de António Guterres, em 2001, mas foram concretizadas durante um outro Executivo socialista, pelas mãos de José Sócrates e que voltaram entretanto para a responsabilidade do Estado. Ainda na semana passada, o ministro da Saúde defendeu que “não houve decisão política” de terminar com as PPP e as que não foram renovadas foi por “recusa legítima” dos privados em manter o contrato durante a renovação, nomeadamente os hospitais de Loures, Braga e Vila Franca de Xira. A única exceção é Cascais.
Pizarro recusou “alimentar qualquer guerra” entre público e privado. “Cada setor tem o seu papel, mas não há dúvida de que o nosso seguro coletivo é o SNS”.
Uma opinião contrária tem o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP) ao referir que “o fim das PPP foi uma péssima notícia para os portugueses, para o SNS e para o país”. E para Óscar Gaspar, “os principais prejudicados com o fim das PPP foram os portugueses que beneficiavam do funcionamento eficiente daqueles hospitais”, admitindo, no entanto, que o fim destes regimes representa “uma decisão política que não nos diz respeito. Compete aos decisores políticos e ao SNS definir os termos de gestão dos seus hospitais”.
O responsável defende que numa perspetiva nacional, é necessário que haja uma maior articulação entre os setores privado e público, o que, no seu entender, leva a um reforço da sustentabilidade do sistema e a um aumento de acesso dos portugueses aos cuidados de saúde. “Todos os manuais sobre o assunto o aconselham e esta questão é tanto mais verdadeira quanto no ‘post- covid’ será necessário um esforço acrescido para aumentar a capacidade de resposta às necessidades de saúde dos portugueses”, diz ao i.
E em relação aos benefícios não hesita: “As PPP trouxeram quatro novos hospitais para o SNS, construídos a tempo e horas e sem qualquer derrapagem. Os contratos estabelecidos foram cumpridos, os termos do acompanhamento da atividade assistencial foram os mais exigentes e tidos como exemplares pelo Tribunal de Contas. As PPP pouparam dezenas de milhões de euros ao Estado em cada ano de funcionamento. O nível de satisfação dos cidadãos/utentes era elevado, tal como a satisfação dos colaboradores/profissionais de saúde”, lembrando que os ganhos não foram apenas financeiros, mas de prestação de cuidados de saúde e da organização de serviços.