Kenzaburo Oe reclamava-se herdeiro de uma grande tradição nas letras japonesas com mais de um século que remontava a autores como Natsume Soseki e Mori Ogai, assumindo que a imaginação podia substituir-se à fé, e mais do que um dom, impunha-se como uma responsabilidade de indagar seriamente sobre as questões decisivas do seu tempo, não cedendo às formas de idolatria ou às grandes ficções genéricas e espúrias que dão conta do sentir comum dos homens. Em quase todas as suas obras traça um caminho a partir da sua biografia ou até da sua interioridade e, aos poucos, esse fio vai ganhando espessura e entrelaçando-se nos grandes temas, estabelecendo uma tensão entre a moral e a liberdade individual. Este autor que se tornou uma das poucas vozes agrestes e assumidamente críticas num país pouco dado a dissonâncias começou por ser aclamado como um prodígio quando escreveu os primeiros contos e novelas, ainda enquanto estudante universitário, vindo a assumir prevalência entre a geração de autores do pós-guerra, mas não demoraria a tornar-se uma das figuras contra as quais o seu país ergueu um permanente regime contencioso, pela forma como ele enlaçava os mitos e a história, desencadeando um ataque poderoso a essas concepções abrangentes e irracionais em que se fundam as mitologias nacionalistas.
Depois de ser galardoado com o Nobel, em 1994, manteve a sua postura desafiante e esteve sempre cercado de polémicas, sem nunca deixar de provocar embaraço pela sua capacidade de ir forçando os limites, misturando ternura e cinismo, loucura e lucidez. Oe morreu no passado dia 3 de março, aos 88 anos, mas só esta semana a notícia foi avançada. Sendo apenas o segundo escritor japonês laureado pela Academia Sueca, a sua morte terá sido recebida por largos sectores da sociedade japonesa com um certo alívio pela forma como ele foi assumindo um tom de denúncia face ao rumo do país nas últimas décadas, apontando o dedo não apenas ao recrudescimento do nacionalismo estatal e a um reforço da instância militar como, do ponto de vista económico, ao modo como as novas tecnologias foram elevadas a uma panaceia, incentivando-se a competição e o consumismo desenfreado, um conjunto de traços que, em seu entender, estavam a levar o Japão para o tipo de mentalidade que o conduzira à catástrofe da II Guerra Mundial.
Para Oe, depois de um quarto de século de democracia vibrante e com espaço para que fermentasse um ambiente intelectual de questionamento da sua história recente, o país abdicou do trauma e das suas lições e retomou a tendência para a conformidade. Dominado pela vertigem do crescimento económico, nesta nova era o país via-se entregue a um regime de partido único caracterizado por atitudes “insulares e inflexíveis” que impediram que se estabelecessem relações construtivas com outros países asiáticos, ou sequer que assumisse um papel significativo no plano regional como nos assuntos internacionais.
Antes de Oe, fora Yasunari Kawabata a receber a mais alta distinção literária, mas, fosse no tocante ao estilo ou à substância, não poderia imaginar-se dois autores que se posicionassem num mais claro contraste. Se Kawabata explorava os temas tradicionais num registo delicado e conciso, em primorosos romances ou relatos breves caracterizados por um subtilíssimo perfume, que se chegava a ser tão inebriante e levemente indecoroso estava longe de um regime confrontativo, Oe não estava em paz consigo mesmo, e na forma como se implicava através da sua escrita num processo de auto-exame tantas vezes cruel, arrastava a própria sociedade japonesa para essa bulha na sua consciência, e isto foi algo a que aquele país procurou esquivar-se. Ele viria a tornar-se uma personalidade emblemática daquela geração do pós-guerra que rasgou um rumo através de narrativas bastante dolorosas, exorcizando fantasmas e o sentido de traição de um país que se deixara conduzir ingenuamente pelos seus líderes a uma condição de terror e desagregação profunda. Reflectindo este processo, ao contrário de Kawabata, cuja escrita era imensamente depurada, e se entregava a meditação de um lirismo tocante, Oe representava um certo desvario, levando o idioma ao seu limite, ao ponto de o dilacerar em frases longas e retorcidas, quase escrofulosas, que seguiam apalpando o terreno e abordando sem o menor pudor esses aspectos da experiência humana que chocam com a moral mais conservadora, seja o sexo, até na sua componente mais depravada, seja a depressão e os vícios de que esta se cerca, a degradação e todas as formas de abuso a que o homem se submete no esforço para se reconhecer de novo e recuperar enfim a sua dignidade.
É indicativo que um dos seus admiradores tenha sido Henry Miller, que comparava Oe a Dostóievski no seu “alcance entre a esperança e a desolação”. Há na sua prosa um fulgor espinhoso, e esta avança de forma algo nervosa, provocando desconforto, muitas vezes fazendo o leitor sentir tonturas, como se nem estivesse certa do seu rumo nem lhe interessasse passar uma ideia de firmeza. A marginalidade aqui comporta um risco, e fica claramente bem para lá da zona demarcada dessa tradição de equilíbrio e serenidade que tipicamente se associa à arte japonesa. Oe está empenhado também em expor essa forma de impostura, aquela pose estilística que assume um ar de sabedoria, apoiando-se num tom ambíguo, em afirmações sempre bastante vagas, como é próprio de videntes e falsários. Oe quer arrancar as máscaras, revelar aquilo que as pessoas procuram esconder umas das outras e até de si mesmas. Há na sua escrita um constante aceno a essa dimensão tenebrosa, a essa qualidade um tanto grotesca da existência, e isto aproxima-o mais de autores ocidentais como Günther Grass e Norman Mailer ou Philip Roth do que de qualquer outro dos romancistas japoneses. Talvez seja por isto que muitos dos leitores que tinham expectativas de descobrir nele um exemplo desse exotismo e fervor mitológico que caracteriza a obra de Yukio Mishima se tenham sentido defraudados, sentindo que Oe estava longe de ser um ‘genuíno’ criador japonês.
«Quando comecei a publicar, havia uma grande geração de pensadores independentes – a tal geração do pós-guerra – mas, hoje, o cenário tornou-se bastante mais pobre. Os jovens romancistas que assumem maior favor junto do público – autores minimalistas como Banana Yoshimoto e Haruki Murakami – não mostram grande interesse em assumir qualquer empenhamento político e esquivam-se ao tipo de embrulhadas em que se meteram os seus antecessores», notava Oe numa entrevista a The New Yorker. «A ficção que eles escrevem parece tentar captar esse brilho vazio dos jogos de vídeo, e a verdade é que tem conseguido vender milhões de exemplares.» Nesse perfil que David Remnick escreveu de Oe para aquela revista, frisava que ele não pretendia assumir uma atitude desdenhosa em relação à geração mais nova, e muito menos face a Yoshimoto ou Murakami, mas mostrava-se preocupado com essa fórmula que lhes permitia retratar e, ao mesmo tempo, ser tão apelativa para um tipo de pessoas a quem as tensões políticas nada dizem e que preferem até alhear-se desse tipo de questões, ficando satisfeitos por viver as suas vidas de acordo com uma subcultura pós-adolescente.
Influenciado pelo existencialismo de Sartre e o realismo grotesco rabelaisiano, Oe estudou literatura francesa na Universidade de Tóquio, e começou nesses anos a criar uma série de figuras desdobrando os conflitos e a desilusão que caracterizaram aquela geração que cresceu arcando com devastação provocada pela II Guerra, e muitos desses seus anti-heróis parecem ecos ou restos trágicos, consciências marcadas pela desgraça e por uma vergonha que os conduz à abjecção, manifestando das mais diversas formas a sua repugnância pela civilização. Em tantos dos seus primeiros relatos, os protagonistas são pessoas que se deixaram cativar por formas de fanatismo e que acabaram como párias, raspando a pele e a consciência entre todas as formas possíveis de dissolução moral e física. Oe tornou-se uma espécie de vândalo literário, atacando as convenções do registo autobiográfico e esse lirismo bastante vago de tantos dos seus predecessores, como Kawabata. Inicialmente aclamado, não demoraria muito para que viesse a ser visto como um ‘enfant terrible’ numa cultura muito ciosa da majestosa afectação. A crítica não demoraria a cair-lhe em cima, e houve quem acusasse a sua prosa de «cheirar a manteiga», considerando que o seu caso não era mais que um sintoma do que acontecia quando a pureza da prosa japonesa era conspurcada pela sintaxe ocidental. O certo é que Oe nunca desarmou, e mesmo quando o seu assalto aos valores e às convicções da cultura japonesa lhe valeram ameaças de morte por parte das forças políticas mais conservadoras, não deixou a sua postura transgressiva.
Num certo sentido, este escritor que foi sempre descrito pelos entrevistadores como alguém bastante acessível e nada cerimonioso, pouco dado ao registo balofo e àquela severidade das figuras deslumbradas consigo próprias, nasceu em janeiro de 1935, o quinto de sete irmãos no seio de uma abastada família de proprietários rurais numa pequena aldeia na ilha ocidental de Shikoku, um lugar imerso nas tradições locais e na propaganda de guerra que em breve seria anexado a uma povoação vizinha sendo apagada do mapa. O registo conflitual que caracteriza a sua prosa assinala essa perda da inocência de um miúdo que perdeu o pai aos nove anos, depois deste se afogar na guerra no Pacífico, em 1944, e que, aos poucos, assistiu ao naufrágio do seu sentido de deslumbramento e segurança com a explosão atómica e depois a voz do imperador que foi transmitida pela rádio, reconhecendo que o país fora derrotado, e proclamando a sua rendição incondicional, o que significou um rude golpe num país onde Hirohito era tido como uma divindade, e onde os professores regularmente perguntavam aos miúdos o que fariam se este lhes desse a ordem de se suicidarem, treinando-os para o dever de sacrifício patriótico que Oe viria a abominar acima de todas as coisas.
No discurso que fez na cerimónia em que lhe foi entregue o Nobel, Kenzaburo Oe descreveu o Japão como um país dividido por uma ambiguidade dilacerante – entre a tradição e a modernidade, a adoração do imperador e a democracia, a agressão e o trauma. Reconheceu o quanto esta polarização tinha tido um impacto profundo em todos os aspectos da sua vida, e também da sua obra, marcando-o como “uma cicatriz profunda”. Entendia que o papel da arte é ajudar nesse processo de cicatrização, e assumia o seu empenho em falar em nome de uma geração de dissidentes que se opunham ao rearmamento do Japão, sendo ainda um defensor de que o país devia reparações aos seus vizinhos regionais pelas invasões e pela subjugação na guerra do Pacífico. Esta postura levou a que fosse frequentemente difamado, sobretudo depois de ter-se recusado a receber a Ordem da Cultura do Japão, no mesmo ano em que lhe foi atribuído o Nobel, e isto por este ser atribuído pelo imperador. «Não reconheço outra autoridade, nenhum outro valor mais alto que a democracia», disse então.
Num sinal que veio validar as suas objecções ao esforço do país para branquear os crimes da seu passado recente, em 2005, Oe foi acusado de difamação num processo relacionado com um ensaio publicado mais de 30 anos antes, em que ele afirmava que os oficiais japoneses haviam coagido centenas de habitantes de Okinawa a cometerem suicídio perto do fim da II Guerra, distribuindo granadas e dizendo-lhes que era melhor fazerem-se explodir porque as tropas americanas estavam a chegar e iriam infligir-lhes os piores castigos, desde violação e tortura, antes de os matarem. Os queixosos nesta acção eram um veterano de guerra de 91 anos e os familiares de um outro veterano, mas quem estava por trás do processo eram políticos da extrema-direita empenhados em ver apagadas dos manuais de história quaisquer referências ao envolvimento dos militares nesse e noutros dos episódios mais sórdidos daquele período.
O processo acabaria por ser decidido a favor de Oe, com o juiz a reconhecer que os militares desempenharam um papel decisivo nos suicídios em massa, mas apesar de ter saído reforçado na sua posição, os três anos ao longo dos quais se arrastou este caso foram um período de tamanho tumulto na vida do escritor que este se viu impedido de escrever fosse o que fosse.
Se até aqui abordámos vários aspectos importantes da biografia de Kenzaburo Oe, deixámos para o fim o acontecimento central e que marcou tanto a sua vida como a sua obra. Quando tinha 28 anos e era já um autor de culto, Oe vinha de um período depressivo em que parecia ter perdido o foco e a consideração do suicídio havia-se tornado uma companhia constante. Corria o ano de 1963, e nasceu o seu primeiro filho, uma criança que veio ao mundo com uma hérnia cerebral a sair-lhe do crânio, o “monstruoso bebé de duas cabeças” que viria a dominar a ficção de Oe daí em diante. A única possibilidade que a criança tinha de sobreviver era ser submetida a uma cirurgia correctiva, mas os médicos admitiram que havia uma boa hipótese de a criança ficar em estado vegetativo. E mesmo que sobrevivesse não escaparia a uma condição seriamente diminuída do ponto de vista mental, e a uma vida inteiramente dependente do cuidado de outros. Nos dias que se seguiram, Oe ansiava por que a criança morresse e não fosse obrigado a tomar uma decisão. Mais tarde, nas suas memórias ficcionadas viria a referir-se a este período como uma absoluta desgraça, considerando que “não havia nenhum tipo de detergente que pudesse livrar-me de uma mancha que atingiu de forma tão profunda a minha vida”. Para escapar do hospital, aceitou o convite para fazer uma reportagem à volta de um congresso pela paz em Hiroshima. Oe aproveitou a oportunidade e mergulhou no drama dos sobreviventes da explosão que ocorrera quase duas décadas antes, e, aos poucos, nas entrevistas que foi realizando, sentiu que aquelas pessoas, ao recusarem-se a ser encaradas como “uma série de vítimas personificando as estatísticas”, estavam a incitá-lo a ter a coragem de enfrentar o desafio que lhe havia sido colocado na sua própria vida. Nesses dias, conheceu mulheres que haviam escolhido ser mães independentemente do risco de os seus filhos poderem desenvolver leucemia e morrer na infância, e deparou-se com uma série de heróis discretos que apesar de tudo o que lhes aconteceu nunca consideraram que o suicídio fosse a solução. No livro de ensaios sob o título Notas de Hiroshima, ele reconhece o papel decisivo que teve o seu encontro com o Dr. Fumio Shigeto, director de um hospital em Hiroshima que acolheu muitas das vítimas da bomba atómica e um sobrevivente ele mesmo da explosão. Oe recorda como ele lhe contou que um dos jovens médicos da sua equipa se suicidara desesperado por não sentir que tivesse condições de fazer grande coisa para aplacar o sofrimento avassalador das vítimas, mas que Shigeto tentou convencê-lo até ao fim de que «a única coisa que importa, quando há pessoas feridas e que estão em sofrimento, é cuidar delas, lutar para lhes dar uma hipótese de sobreviverem, mesmo se esta parece uma luta desesperada e para a qual não parece haver nenhum método».
Oe diz que foram estas palavras que o encheram de uma tremenda vergonha por ter caído em desespero depois do nascimento do filho, preferindo não fazer nada: «não estava a fazer nada pelo meu filho – o meu filho, que nem podia dizer nada e nem sequer expressar o seu sofrimento ou fazer alguma coisa por si mesmo». Então, Oe regressou a Tóquio e optou pela cirurgia, e escolheu baptizar o filho de Hikari – nome que significa «luz» em japonês. Hikari sobreviveu, e o pai encheu-se de esperança mesmo depois de os médicos lhe terem dito que era improvável que o filho viesse a progredir em muitos aspectos para além das capacidades de uma criança de três anos. Sofrendo de autismo, epilepsia e de um campo de visão bastante restrito, foi só aos seis anos que Hikari começou a falar. Isto aconteceu quando os dois davam um passeio pelo bosque, e depois de a mãe ter começado a reproduzir cassetes com a gravação do canto de diferentes pássaros, que eram depois identificados. Hikari identificou o canto de um desses pássaros, e em breve viria a revelar um prodigioso alcance e memória auditiva. Embora o seu uso da linguagem tenha sempre permanecido bastante limitado, não precisava de mais do que umas quantas notas para distinguir qualquer gravação das peças de Bach ou Mozart entre tantos outros compositores clássicos. Aprendeu piano e desenvolveu um admirável dom para a composição e gravou ao todo quatro CDs, tendo o primeiro conquistado um importante prémio no Japão e vendido 400 mil cópias, mais do que qualquer romance de Oe vendera até então, algo de que o romancista se dizia muitíssimo orgulhoso.
A partir dali Oe desenvolveu um método para a sua ficção baseado na «repetição com variações». «Começo cada novo romance como se fosse uma abordagem nova a algo que já fiz escrevi antes, e depois parto desse esboço e vou reescrevendo e elaborando continuamente, e à medida que o faço, os traços do meu trabalho anterior desaparecem e outros novos impõem-se no seu lugar.» Boa parte dos protagonistas dos livros subsequentes eram pais com filhos deficientes, e Hikari, nas suas diferentes variações e reflexos na obra do pai assume uma importância simbólica enorme, tornando-se uma figura que representa essa capacidade do homens transcender as suas limitações e constrangimentos, a representação dessa ânsia do pai se redimir. «Eu acredito na tolerância, e que os fracos podem ter um papel a desempenhar na luta contra a violência; é essa a mais persistente das minhas convicções», escreve Oe num dos seus ensaios. «O actual governo japonês quer reerguer o país agitando a bandeira dos fortes. Mas depois da derrota [em 1945] o que se abriu para nós foi uma oportunidade de estarmos do lado dos fracos. É isso o que o Japão devia fazer: os fracos são um valor em si mesmos.» Num país onde as pessoas com deficiências profundas são remetidas para vidas de clausura, onde é motivo de vergonha os pais andarem com esses filhos em público, ao escrever romances como Não Matem o Bebé e Morte pela Água (ambos editados pela Livros do Brasil), os únicos livros de Oe actualmente disponíveis por cá, o escritor quis mostrar como esse receio de se mostrar vulnerável é apenas uma projecção do que há de mais negro dentro de nós.