Por Vítor Rainho e Sónia Peres Pinto
Fala a uma velocidade espantosa e nada a faz fugir do seu raciocínio. Determinada, não tem problemas em assumir que alguns advogados que recebem em obras de arte, sem o declararem, podem estar a colaborar com «branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo». Filha de uma cozinheira e de um mecânico, abandonou a sua terra natal aos 25 anos para estudar e seguir a carreira de advogada.
Foi telefonista/rececionista, secretária de administração de uma empresa hospitalar e aos 25 anos decidiu voltar a estudar. Porquê?
Ainda não tinha completado o 12.º ano quando vim para Lisboa, mas o plano sempre foi esse, ou seja, a minha vinda para Lisboa tinha a ver com isso. Os meus pais não tinham capacidade financeira para que pudesse estudar fora da cidade, sou das Caldas da Rainha, e a ideia era arranjar trabalho em Lisboa, conseguir encontrar uma estrutura em termos financeiros que me permitisse construir o meu espaço e depois continuar a estudar. E assim foi. Vim para Lisboa em 1989, entrei como secretária de administração numa sociedade que trabalhava na área hospitalar e na agropecuária. Completei o 12.º ano no Liceu Camões e ingressei na Universidade Autónoma de Lisboa em 1994.
Tomou agora posse como bastonária e tem sido acusada de ser a bastonária comunista, advogada sindicalista. Acha que a sua vitória não foi bem aceite? No seu discurso de vitória disse que era um choque contra a tradição elitista da profissão…
Imagino que a minha vitória, numa parte da advocacia, poderá não ter sido bem aceite, porque estou a trazer para a praça pública, juntamente com o meu conselho geral, os temas de que ninguém quer falar. E são os problemas sérios que a profissão tem, devido à sua proletarização ao longo dos tempos, nomeadamente para quem presta serviços a terceiros, que são nossos colegas: sociedades, advogados em prática individual que também empregam jovens advogados e os problemas da previdência. É um assunto que ninguém quer falar, porque, naturalmente, quer a previdência, quer os direitos laborais – e não o entendo de outra forma – que têm os trabalhadores das sociedades de advogados, principalmente as maiores, porque a esmagadora maioria das sociedades não tem sequer dimensão e são constituídas enquanto sociedade apenas para divisão de despesas, de espaço e para terem alguns benefícios fiscais. As grandes sociedades deste país não são assim e empregam centenas de profissionais que não têm direitos absolutamente nenhuns. Naturalmente esse foi um tema que trouxe para a praça pública, nomeadamente as suas obrigações sociais enquanto sociedades que são, e também os direitos dos trabalhadores que empregam ou dos prestadores de serviços que contratam. Na maioria dos casos não são prestações de serviços, são contratos de trabalho e não conferem aos meus colegas nenhuma espécie de direitos, quer seja ao nível de férias, ao nível de parentalidade, ao nível de subsídios e de encargos para a Segurança Social.
Como se cruza uma profissão liberal com essas garantias?
As profissões liberais são exercidas de formas diferentes. Temos advogados que são trabalhadores por conta de outrem, como é o caso das sociedades. Um trabalhador por conta de outrem não abandona a sua autonomia técnica, nem as suas obrigações estatutárias, enquanto profissional, mesmo que exerça a profissão ao serviço de terceiros. Não há nenhuma incompatibilidade estatutária. E uma coisa são, que é a esmagadora maioria, os profissionais independentes que exercem a profissão em prática individual e esses, sim, são trabalhadores liberais, mas existe uma outra fação da advocacia que é mais a mais pequena, são cerca de cinco mil profissionais, que trabalham por conta de outrem. Porquê? Basta ler o artigo 12.º do Código de Trabalho: cumprem horário, estão inseridos dentro da estrutura hierárquica da sociedade, os clientes são da sociedade, utilizam os equipamentos da sociedade e prestam um serviço que a sociedade lhes indica. Têm férias quando a sociedade diz que podem ir de férias. Isto não é liberal.
Mas depois há outros advogados que também trabalham para empresas…
Mas para esses não há dúvidas nenhumas que têm um regime próprio.
Foi eleita com cerca de 60% dos votos. Calculo que muitos dos cinco mil advogados que estão nessa situação tenham votado em si…
Não sei. Não posso garantir.
E os grandes escritórios?
Os grandes escritórios são meia dúzia de pessoas. Estamos a falar dos sócios. Os associados são muito mais. Terá havido muita gente que votou em mim, mas não sei se terá sido a maioria, porque, como disse, são cinco mil profissionais e não acredito que esses cinco mil profissionais tenham votado todos em mim. Foi mais a prática individual, que representa 85% dos advogados, esses tais que chama de trabalhadores independentes e liberais, esses sim tenho a certeza que maioritariamente votaram nesta candidatura. Pese embora tenha falado também dos problemas desse setor, mas o que me parece é que nem sempre esse setor da advocacia tem a concreta noção dos seus direitos, enquanto trabalhadores que são.
A votação para a Ordem dos Advogados é obrigatória…
É.
Então só 15 mil votaram quando há 35 mil?
É verdade.
Mas o que quer dizer ser obrigatório?
Quer dizer que as pessoas podem ser sujeitas a um processo disciplinar porque falharam com um dever seu estatutário. Não é da minha competência, isso faz parte dos conselhos de deontologia, são eles que têm de agir, mas creio que não há historial nesta casa de alguma vez ter sido exercido esse poder disciplinar contra quem não votou. Penso que o Conselho de Deontologia entende que não é uma falha suficientemente grave.
Não acha que vai um pouco à imagem que se tem dos advogados? Uma coisa que é obrigatória, mas não cumprem e defendem os maus…
Os advogados não defendem os maus, defendem o Estado de Direito e qualquer criminoso tem direito a ser defendido. Isso é a maior glória desta profissão. Era o que faltava que uma pessoa que fosse má não fosse defendida. Os criminosos têm que ter a proteção da advocacia, no sentido de lhes garantir os direitos processuais. Para evitar o quê? Que os bons que possam estar naquelas circunstãncias e que sejam de facto inocentes não sejam condenados por não terem tido a assistência jurídica a que têm direito. Quanto a esta história da obrigação levo isso mais para uma outra circunstância. Se calhar o que leva as pessoas a não participarem é sentirem-se de tal forma distanciados da Ordem – e encontro razões muito válidas para isso, porque antes de mim, realmente, poucas vezes nos últimos anos que exerço a profissão, e já lá vão mais de 20, se tem olhado para os problemas reais da advocacia. E se calhar aquilo que sucede a parte dos meus colegas é que não participam porque não se reveem nos problemas e na forma como as pessoas lidam com estes problemas.
Mas depois também não fazem parte da solução…
Mas isso acontece com este país, de uma maneira geral.
É como aqueles que dizem mal dos partidos e depois não votam…
Acho que sim. Somos pessoas como as outras. Perguntou-me o que é que me levou a candidatar e digo já que foi precisamente por perceber que estavam a surgir no quadrante as mesmas pessoas de sempre e entendemos que tínhamos que apresentar à advocacia uma alternativa, porque senão íamos continuar a ter mais do mesmo. Foi isso que nos levou a candidatar, ou seja, sair da minha posição crítica em relação ao poder que estava e dizer que conseguíamos fazer isto de forma diferente, que conseguimos trazer diferença à advocacia.
É uma espécie de rutura com as linhas anteriores?
Os últimos três anos que tivemos de mandato –, e já nem falo nos anteriores, porque nos anteriores que são de Guilherme Figueiredo sei que foi feito trabalho, principalmente dentro da estrutura e que era essencial e necessário – foram de uma completa ausência de posição. Quando cheguei a esta casa fomos confrontados com essa circunstância. Havia uma total ausência de resposta por parte do anterior Conselho Geral em relação a todos os organismos públicos, privados e em relação aos advogados. As pessoas sentiam que todas as queixas, que todas as reclamações e todas as tentativas de chegar a esta casa não tinham progressão, ninguém respondia, ninguém fazia nada. Uma boa parte da desilusão que os advogados têm com esta estrutura é porque entendem que é demasiado grande, demasiado burocrática e tem estado sempre ao serviço não dos associados, mas sim dos interesses de alguns associados. É isso que queremos mudar e, por isso, nos candidatámos.
Esses interesses são dos grandes escritórios?
Não são só os grandes escritórios, esses têm uma parte do interesse, porque normalmente ninguém se mete com eles e também não precisam muito da Ordem. Mas se calhar estamos a falar de interesses pessoais. Pergunto muitas vezes por que é que certas pessoas se candidataram aos cargos que se candidataram? Se calhar não tinham tempo, nem disponibilidade, nem feitio para poder exercer este cargo. Este cargo implica disponibilidade, implica conseguir conversar com os nossos colegas e ter uma capacidade de empatia que sinceramente nunca senti no Conselho Geral anterior. Percebo a desilusão e o afastamento dos meus colegas ao sentirem que esta casa representa apenas uma captação de receita e não uma solução para os seus problemas reais.
Sente que herdou uma pasta pesada? No programa fala na precariedade, na dignificação da profissão…
Os profissionais liberais são a maioria dos associados desta casa, representam mais de 85%. Os outros não são profissionais liberais. Quem trabalha para empresas e quem trabalha para sociedades não exerce a profissão enquanto profissional liberal. É uma falsa questão. Todos os demais países europeus, e se forem ver Espanha, todos os advogados que trabalham para sociedades são funcionários dessas sociedades e são tratados enquanto trabalhadores por conta de outrem que são. Em França isto é assim. Na Áustria isto é assim. Isto é, têm advogados que são de empresas, que são os chamados advogados in house, e têm advogados que trabalham para sociedades de advogados, porque têm uma dimensão enorme e precisam de ter profissionais para conseguirem satisfazer as necessidades dos seus constituintes e naturalmente contratam pessoas para trabalharem por conta e sob a direção dessas pessoas, mantendo naturalmente a autonomia técnica que têm. É o mesmo que um médico quando é contratado num Serviço Nacional de Saúde mantém a sua autonomia técnica. O Estado não vai dizer ao médico como é que vai agir perante um diagnóstico de um paciente. Aqui é exatamente a mesma coisa. O advogado tem total autonomia técnica ou deve tê-la, mas isso não implica que não aufira a totalidade do seu rendimento e, na maioria dos casos, até em regime de exclusividade. E mesmo que o não tivesse não tem capacidade para o fazer de outra forma, porque se trabalha 10 ou 12 horas numa sociedade de advogados, quando é que receberia os seus clientes, mesmo que não tivesse esse regime de exclusividade? Isso não pode ser, porque não há trabalho extraordinário remunerado e deveria ter.
O exame de agregação à Ordem custa 1 500 euros. Não pensa mudar?
Penso em mudar, sim. Uma das propostas que temos no nosso programa, que foi sufragada e faz parte das nossas intenções, é precisamente mexer nessa realidade e mexer também na própria estrutura do estado, que entendo que tem de funcionar bem melhor do que aquilo que funciona atualmente, em termos de preparação dos profissionais. Essa é uma situação que me preocupa muitíssimo. Porquê? Porque sempre defendi e continuo a defender que esta profissão é uma profissão de talentos e ninguém pode ficar arredado da profissão por falta de meios económicos para aceder à profissão.
Tem dito que Portugal tem um grave problema de corrupção e é um problema que já está identificado há muito tempo. O que é preciso fazer para ser resolvido?
É preciso as pessoas encararem os problemas de frente. Temos um pacote muito interessante de lei anticorrupção. Na última vez que estive reunida com os líderes de todas as ordens profissionais da Europa, numa conferência internacional que existe todos os anos, em Viena de Áustria, esse foi um dos temas abordados. A corrupção não é um exclusivo português. Temos este fenómeno espalhado pela Europa, até no próprio Parlamento Europeu, como recentemente verificámos. Temos um bom pacote legislativo dentro do país, Portugal está muito bem colocado a esse nível, mas depois o que verificamos é que as coisas não funcionam. É muito difícil investigar a corrupção, é muito difícil conseguir, porque são sempre processos com elevada complexidade e que contam muitas vezes com a denúncia do corrompido, mas de outra forma é muito difícil, a não ser que seja denunciado expressamente por alguém. Depois, a prova é muito difícil, é maioritariamente testemunhal, porque raramente as pessoas caem no erro de trocar mensagens entre si, a não ser os mais distraídos, que também os há como sabemos, quando acedemos, às vezes, a conversas telefónicas e aí percebemos que as pessoas nem sempre têm consciência do que estão a dizer. Agora, parece-me que para combatermos este fenómeno temos acima de tudo de investir na educação. Se a população deste país for semelhante à população da Islândia, que leva isto muito a sério e que não permite este tipo de comportamentos, se calhar tínhamos uma outra reação.
Na Islândia, os advogados podem usar as estratégias que usam em Portugal para conseguirem que os casos prescrevam, pondo mais testemunhos, arranjando mais recursos? Houve mesmo quem publicamente tenha acusado os advogados…
Claramente, não conhece a lei do processo penal. Os processos prescrevem em tribunal porque passamos demasiado tempo na fase de investigação, por falta de meios. Não é responsabilidade do Ministério Público, é por falta de meios. Os recursos que pode fazer são os que estão expressamente previstos na lei e o tempo que os processos levam a resolver são aqueles que os tribunais têm capacidade para resolver, porque o advogado é o único interveniente processual que tem rigorosamente de cumprir prazos. Se tenho uma contestação em cima da mesa, seja ela de 20 ou de 30 dias, se não a apresentar naqueles 20 ou naqueles 30 dias, esqueça.
Mas se apresentar 30 testemunhas ou 50 testemunhas….
Também existe um limite. Depende, se as testemunhas que são apresentadas pelo Ministério Público são 100, é evidente que a defesa tem a possibilidade de apresentar também 100. Agora, nos casos, por exemplo, em cível, isso não sucede. Tem um limite máximo de 10 testemunhas. Quando dizemos que os casos prescrevem, estes prescrevem não é por causa dos advogados utilizarem aquilo que gostam de chamar de manobras dilatórias, porque quem tem a gestão do processo é o magistrado. O magistrado é que pode impor a condução do processo, porque é o tribunal que tem essa faculdade. Se me diz que são os juízes que fazem prescrever os processos? Não. Toda a estrutura está montada de uma forma errada e começa logo por falta de meios. Um dos principais problemas que temos neste momento na Justiça é a falta de funcionários judiciais. Precisamos de mil funcionários judiciais no país inteiro. Temos funcionários judiciais com uma faixa etária que ronda os 58 anos. Agora, a ministra diz que vai contratar 200, mas este ano vão sair do sistema 300. Portanto, mesmo que se contratassem 200 ainda ficam a faltar 100. Terceira situação, o patamar salarial com que entram os funcionários judiciais é de 846 euros. Não acredito que exista alguém que vá concorrer a prestar este tipo de atividade, sabendo que vai ter uma elevadíssima exigência de capacidade técnica para poder exercer as funções. É uma função altamente exigente, que implica muita disponibilidade da vida familiar, porque muitas vezes trabalham fora de horas e sem qualquer remuneração adicional acrescida. E há um detalhe, os funcionários judiciais quando fazem greve param os tribunais. O que isso quer dizer? Quer dizer que a falta dos funcionários impacta muito concretamente na marcha da Justiça. Se falarmos, por exemplo, do Ministério Público, li relatórios de conselhos consultivos em que centenas de milhares de processos ainda nem sequer entraram no sistema, porque não há funcionários que os introduzam e esta falha faz com que se atrase os processos exponencialmente. Um processo simples pode demorar um ano até que as testemunhas sejam chamadas para ser ouvidas e é culpa dos funcionários? Não. Se não estão lá, como é que o processo pode andar? E nem os magistrados do Ministério Público podem, mesmo que queiram ouvir todas as testemunhas que são indicadas em processos penais. Isso faz com que um processo normal possa ser arrastado dez anos em fase de investigação. Claro que quando chegamos a tribunal, evidentemente que o meu colega ou a minha colega que esteja incumbido de defender um arguido ou os arguidos tem todo o direito de lançar mão a todos os meios processuais que estão previstos para garantir uma defesa efetiva do seu constituinte. E o que é que acontece? A culpa é do advogado ou do juiz que deixou prescrever? Não, porque quando os processos chegam a tribunal, muitas vezes já vão a queimar. Temos, por exemplo, o último processo crime que foi instaurado contra Isaltino Morais. Parece curial que um processo esteja 12 anos a ser investigado no Ministério Público? Querem agora o quê? Mas claro, quando foi aberta a instrução por parte dos advogados e conheço, pelo menos, uma das advogadas que está nesse processo, pediu prorrogação do prazo porque tinha não sei quantos volumes para analisar, foi-lhe foi negado. Teve de apresentar a instrução, requerimento, abertura de instrução nos 20 dias que a lei lhe confere. Então quem é que usa de manobras dilatórias?
Então os advogados são os santinhos?
Não são santinhos nenhuns, mas têm de perceber uma coisa, o Estado tem a incumbência de acusar e de provar que a acusação que está feita está além de dúvida razoável para condenar uma pessoa. E a incumbência do advogado é zelar para que sejam cumpridas todas as regras processuais. Não está ali para inocentar ninguém, mas também não está naturalmente para acusar ninguém, porque essa não é a sua função processual. Dou-lhe um exemplo de um filme que gostei particularmente, não sei se se recorda dos ataques que foram feitos na Noruega, em Atocha, de um homem que assassinou não sei quantas centenas de jovens num campo de férias. Houve um advogado que defendeu esse ser humano e teve todo o empenho e todo o profissionalismo naquela defesa, se olharmos só como seres humanos e não como técnicos do direito não merecia, não tinha defesa possível. No entanto, o advogado fez questão de levar até ao fim aquela defesa e defendeu aquele ser humano ignóbil que foi condenado precisamente porque tinha praticado aqueles factos e demonstrou-se que foi ele que os praticou. Teve a missão ingrata de fazer cumprir aquilo que temos de cumprir, que é o Estado de Direito.
Estávamos a falar de corrupção. Há advogados e juízes envolvidos em casos de corrupção…
Como há cidadãos normais. Recuso completamente este tipo de analogia, porque temos uma sociedade, infelizmente, muito corrupta. Temos uma fuga aos impostos gritante e esse tipo de comparações de que há juízes e de há advogados é claro que há, somos 35 mil. Os juízes também são uns largos milhares. Naturalmente que, como seres humanos que são, praticam crimes. O Código Penal existe precisamente porque todos nós, enquanto seres humanos, cometemos crimes e podemos cometer crimes. Podemos fazer essa afirmação em relação aos advogados e aos juízes, mas não são nem a maioria, nem a esmagadora maioria.
Como existem ex-ministros, ex-primeiros ministros, ex-grandes empresários….
Como existem médicos, engenheiros, arquitetos, políticos…
Em relação à fuga de impostos, os advogados são os que têm mais fama de fugir aos impostos. Oiço muitas vezes as pessoas dizer que aquele grande advogado recebeu em obras de arte….
Quem é que tem de fiscalizar essa situação? Será a Autoridade Tributária e tenho uma resposta muito simples para isso.
Mas sabe que se fala nisso?
Claro que sei. Isso até é falado dentro de casa pela Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, que é uma ternura. Entendo que os advogados potencialmente fogem tanto aos impostos como qualquer cidadão. Vemos isso todos os dias, quando vim para este cargo, uma das maiores dificuldades que tive foi contratar uma empregada doméstica, porque queria fazer um contrato de trabalho, queria pagar Segurança Social e nenhuma quis. Tive de contratar uma empresa, porque as pessoas não queriam descontar e não queriam fazer um contrato de trabalho. Isto parece incrível, mas foi a minha realidade.
Agora foi aprovada uma lei…
E bem, até porque isso protege as pessoas. Mas deixe-me dar-lhe a solução para esse milagroso problema. É pura e simplesmente fazer com os honorários dos advogados aquilo que se fez com os honorários dos médicos. Ou seja, o cidadão e a cidadã podem deduzir no seu IRS todos os honorários que pagarem aos advogados e garanto que ninguém sai dali sem o recibo. É o que acontece quando trabalhamos para empresas. As empresas exigem a contraprestação do pagamento e se não o exigem é porque alguma coisa está muito errada. E então, se calhar não estamos a falar de fuga aos impostos, estamos a falar de outro tipo de situação.
Mas nota muito essas situações através da Caixa?
O problema é que a Caixa não tem de fazer essa investigação, quem tem de fazer essa investigação é, naturalmente, a Autoridade Tributária, porque isto é uma questão de rendimentos.
Não estou a falar da investigação, mas do facto de a Caixa se ressentir…
Não se ressente, porque a Caixa tem um esquema completamente à parte em relação aos rendimentos. E isso é o que defendemos, as pessoas têm de ser tributadas de acordo com aquilo que auferem e a Caixa não quer fazer esse esforço porque entende que as pessoas devem pagar de acordo com rendimentos presumidos. E o argumento é que fugimos muito aos impostos, que é uma coisa maravilhosa. Ou seja, em vez de garantirmos, como sucede na Segurança Social…
Os advogados é que argumentam isso?
Não, a Caixa é que argumenta que quer este sistema de escalões de rendimentos presumidos, porque acha que a advocacia, os solicitadores e os agentes de execução não declaram inteiramente aquilo que recebem.
Ou seja, fogem aos impostos?
Exato. Entendo que isso não é argumento. Para já, porque não é incumbência da Caixa fazer essa investigação, mas sim de Autoridade Tributária. E depois porque temos mecanismos, como sucede na Segurança Social, em que a Autoridade Tributária entrega à Segurança Social os rendimentos de cada um.
Mas não estamos a falar de pessoas que recebem por serem quadros de uma empresa…
Mas também garanto que essas pessoas que recebem através de obras de arte representarão com certeza uma ínfima minoria dos 35 mil profissionais. Não podemos falar desses, porque o que está a falar em receber um quadro é muito mais do que uma fuga aos impostos, se calhar é branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo. Não sabemos de onde é que vem aquele dinheiro e de onde é que vem aquela obra de arte. E temos imposições, inclusivamente aqui na Ordem, com o cumprimento de um regulamento que essas coisas têm de ser denunciadas. Alguém que faça isso, mesmo exercendo uma atividade como é a advocacia, está a praticar um ato criminoso e não tem nada a ver com a profissão que exerce, pode ser um médico, pode ser um engenheiro, pode ser um arquiteto, pode ser um político. Não tem a ver com a advocacia. Tem a ver com o comportamento pessoal de cada um.
Há descontos que são feitos duplamente: para a Caixa e para a Segurança Social…
Existem, quando os trabalhadores estão por conta de outrem em empresas e são obrigados a descontar para as duas caixas, porque se querem exercer atividade enquanto advogados têm obrigatoriamente de pagar quotas e pagar contribuições para a Segurança Social.
E muitos criticam esta dupla tributação…
E é, porque, na realidade, pese embora praticamente não receba nada em termos da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores [CPAS] porque foi criada para ser um fundo de pensões e só um dia irá receber uma reforma se ainda existir daqui a uns anos têm simultaneamente de pagar contribuições para a Segurança Social, porque trabalham para uma entidade que é ela própria contribuinte e é obrigada a fazer retenção na fonte e descontos para a Segurança Social de 11%. O que acontece muitas vezes? Se existem empresas e instituições que suportam essa parte da previdência dos advogados, a esmagadora maioria hoje em dia já não suporta. Imagine um trabalhador que ganha 1 200 ou dois mil euros por mês, tem que pagar no mínimo, se tiver mais de quatro anos de atividade, 267,94 euros de CPAS e depois ainda tem que pagar 11% desses dois mil euros que recebe. Naturalmente que isto penaliza e muito.
Mas, na altura da reforma irá receber duas pensões…
Hipoteticamente irá receber duas pensões. A questão que se coloca aqui é que quem recebe as duas pensões também é curiosa. Ainda bem que as recebem, porque se calhar se recebessem só a pensão da CPAS, como vou receber depois de ter 29 anos de atividade, tenho reservada uma previsão de 576 euros por mês em 2034. Ainda bem que têm duas reformas, porque senão teriam de trabalhar até morrer, como iria ser o meu caso se não tivesse descontos de Segurança social. Porque se hoje, em 2023, ninguém consegue viver com a remuneração mínima mensal garantida, imagine em 2034, com 576 por mês como é que viveria? Nem para pagar a minha renda dá, quanto mais para viver.
Falou também que queria criar um canal de denúncia para vítimas de assédio no exercício da profissão e diz que as mulheres são discriminadas…
Esse canal de denúncia é uma coisa que vamos colocar como obrigatória nas sociedades, inclusivamente dentro de casa, porque entendemos que as mulheres e também em termos de sociedade esse problema existe e é muito grave quando existe. Porque é que as mulheres têm dificuldade em acederem a esta profissão? Porque têm dificuldade em aceder a todas. Os indicadores estão à vista de quem quiser olhar. No dia 8 fiz este discurso dentro de casa e é incompreensível como é que numa profissão em que 57% dos profissionais são mulheres, como é que se explica que em sete candidatos a bastonário apenas uma mulher é candidata? Isso acontece de uma forma muito concreta. Esta profissão é muitíssimo exigente, que obriga a ser exercida, quer seja a título de prática individual, quer seja nas sociedades, durante muitas horas por dia. Não tem qualquer apoio na parentalidade. Existe ainda neste país uma enorme desigualdade entre aquilo que são as tarefas domésticas asseguradas pelas mulheres e pelos homens, o cuidar dos idosos, o cuidar dos filhos, etc.
Mas quando oiço esse discurso penso se é algum decreto que vai dizer que em casa o marido tem de ajudar? Que tem de mudar as fraldas?
Não, é uma consciencialização. Hoje, por exemplo, muitos homens cumprem com a sua licença de parentalidade e tomam conta dos filhos, mudam fraldas. Mas a vida não começou hoje. E há quantos anos é que as mulheres ocupam este papel na sociedade? Há milénios. Acha que isto muda por decreto? Está a ver a Finlândia? Está a ver o nível de igualdade que existe na Finlândia? Até agora, em 100 anos houve duas mulheres bastonárias e isso diz muito. Isto é um problema estrutural da nossa sociedade.
Na Finlândia temos uma primeira-ministra mulher…
Sim e curiosamente teve duas presidentes mulheres na Ordem dos Advogados em 100 anos.
Então se calhar a profissão de advogado é mais complicada do que ser primeiro-ministro?
Não é mais complicado, mas em Portugal, curiosamente, só teve uma e nem sequer foi eleita. Isto é uma questão mundial. Se olhar bem para os indicadores causa perplexidade absoluta a toda a gente como é que as mulheres ainda hoje ocupam este espaço de cuidadoras. Aliás, veja até pelas profissões. Onde é que há maioria de mulheres? Professoras, educadoras de infância, advogadas, médicas, enfermeiras, auxiliares.
Não quer que uma mulher vá para a estiva carregar sacos de 50 quilos?
Porque não? Para já, hoje em dia, os estivadores não carregam sacos de 50 quilos. As mulheres têm de estar onde quiserem. E isso acontece na realidade? Se calhar não, porque se calhar cresceu como cresci, devemos ter mais ou menos a mesma idade, a ouvir sempre por parte dos meus pais, que eram pessoas que me amavam, quais eram os meus limites por ser menina. Acha que isso não tem implicação na estrutura social que vivemos?
Temos a ministra da Justiça e a procuradora-geral da República que são mulheres…
Verdade. E no Governo?
Também há…
A maioria são secretárias de Estado. E a maioria das mulheres, mesmo com muita educação, são vítimas de violência doméstica, tal como as outras. Isto é um problema estrutural. Não é um problema de educacional, nem de literacia, ao contrário do que se possa pensar.
Se dividirmos 35 mil advogados por 10 milhões de habitantes dá um advogado por quanto?
Dá por 285,72 habitantes, não sei o que é que isto quer dizer em termos percentuais, mas quer saber se temos muitos advogados? Temos. Sabe quantos advogados é que existem na Áustria? Seis mil e a população são nove milhões. Na Escócia são 12 500 e a população também anda à volta dos nove milhões. Mas, curiosamente, se calhar somos o país da Europa em que a população não consegue ter acesso à advocacia.
Por causa dos custos?
Não é só por causa dos custos, é porque a estrutura não está montada para que as pessoas tenham acesso. Uma das propostas que fizemos ao Governo foi criar um serviço nacional de aconselhamento jurídico, que é um direito, um dever constitucional do Governo de garantir que todas as populações possam ter consulta jurídica. E isso existe plasmado na Constituição e ainda hoje não temos isto. Prestamos consultas muito reduzidas no âmbito do sistema de acesso ao direito e aos tribunais. Entendo que estas consultas têm de ser espalhadas à população inteira e que as pessoas têm direito a ir a um gabinete jurídico, independentemente dos rendimentos que auferem, e poderem ter acesso a uma consulta jurídica.
Gratuita?
Gratuita ou com um co-pagamento. Não me espanta nada, quando vou a um hospital também posso ter…
Mas não acha que há muitos advogados?
Não, por acaso não acho. Ninguém se queixa de falta de trabalho. O que se queixam é de falta de boa remuneração desse trabalho, que é uma coisa diferente. Pode ser consequência disso.
Era isso que ia perguntar…
Mas isso garante melhor os direitos dos cidadãos. O drama é que a população não acede aos serviços de um advogado. Porquê? Porque as taxas de Justiça são muito caras, porque a população é muito empobrecida e porque o Estado não garante como deve, como é sua obrigação que as pessoas possam aceder a esse aconselhamento jurídico. E faz falta. No caso da TAP, veja lá se o aconselhamento jurídico não foi fundamental para que acontecesse a desgraça que aconteceu.
O aconselhamento?
Ou a falta dele.
Um processo que teve os principais escritórios de advogados envolvidos…
Uma coisa é certa. Isto pode acontecer. É evidente que o caso da TAP é muito curioso. Por acaso, numa das primeiras entrevistas que dei, disse que deveriam ter contratado advogados. Pelos vistos contrataram e a fazer fé do que está a dizer a CEO e a engenheira que saiu, foram ambas aconselhadas por advogados. Se não cumpriram com as suas obrigações, ambas sabem como recorrer aos meios legais que têm ao dispor para demandar a devida responsabilidade. Todos os advogados têm seguros de responsabilidade civil, todos os advogados têm de cumprir com as suas regras deontológicas e têm de cumprir com uma prestação de serviços de elevada capacidade técnica. Aqui está um caso eloquente de que a falta de informação pode resultar num desastre. O que diz a CEO é que ninguém lhe disse que não poderia fazer aquele pagamento nos termos em que foi feito e que foi assessorada pelos advogados. Se isto é verdade, naturalmente que não pode ser responsabilizada porque utilizou o técnico que estava na empresa e foi ele que lhe prestou uma informação deficiente. Sendo isto verdade tem todo o direito de se queixar e os meus colegas terão de responder de acordo com a sua responsabilidade perante essa falha de serviço.
Deixe-me fazer uma provocação. Penso que elogiou, várias vezes, Marinho e Pinto…
Não, não é verdade. Acho que Marinho e Pinto teve um papel muito importante nesta casa que foi abrir as portas a toda a advocacia. Até integrei um instituto com ele e fui sua apoiante, mas não acho que tenha sido um bastonário fundamental, mas fez muita coisa que foi bem feita.
Poderá um dia, à semelhança de Marinho e Pinto, entrar na vida política?
Não, não pondero. Com toda a sinceridade.
Mas quiseram-na colar ao Bloco de Esquerda…
E ao PCP. Não tenho feitio para ser política. Sabe porquê? Porque digo demasiadas vezes a verdade, sou muito assertiva e frontal e isso não são características de um bom partido político.
Não quero dizer que é a Robin dos Bosques da advocacia porque não estou a ver onde vai roubar aos ricos para dar aos pobres…
Não, quero é Justiça.
Como vê o facto de oito em cada dez advogados estagiários terem chumbado no exame à Ordem?
Vejo isso de duas formas. As últimas que saíram têm necessariamente a ver com uma realidade específica, ou seja, são fruto de problemas que aconteceram na pandemia. Sobre isso não tenho dúvidas, porque os números subiram muito e este curso que foi agora avaliado iniciou-se em 2019 e em 2020, logo apanharam com todo o tempo da pandemia. Não puderam estar nos escritórios dos patronos, não puderam assistir às diligências que costumam assistir em tribunal, não puderam interferir como deveriam no tribunal. Esta profissão é eminentemente prática e uma das coisas que temos de garantir aos jovens advogados é que conseguem, na prática, no dia-a-dia, perceber e ver como é que funciona a profissão. Isto não se ensina na faculdade, isso é uma confusão que muita gente, inclusive os alunos de Direito têm. As pessoas partem do pressuposto que esta é a profissão por excelência que recebe os alunos de Direito. Não é verdade. Os alunos de Direito podem fazer uma série de coisas que nada tem a ver com a advocacia e isso se calhar é um problema, porque quando chegam aqui têm de perceber aquilo que disse há pouco, é que quando sou advogado estou a defender uma parte. A Justiça tem de ser aplicada, mas tem de ser aplicada de acordo com os interesses da minha parte e não estou ali para aplicar a Justiça, quem está ali para aplicar a Justiça é o juiz. Estou ali para defender a minha parte e vou utilizar todos os meios que estão ao meu dispor.
Nunca lhe custou fazer uma defesa?
Muito. Já tive defesas muito complicadas. Já tive, por exemplo, um caso no âmbito do acesso ao Direito em que tive de defender um violador de menores que vinha acusado de 252 crimes de violação. Foi a coisa mais difícil que fiz até hoje na minha vida.
Não podia ter alegado objeção de consciência?
Não posso, porque tenho um compromisso com o estado de direito democrático e com a Justiça. Não entendo que se possa fazer isso.
Mas quem estiver no tribunal pode-o fazer?
Se quiser, pode. Pode pedir escusa e, muitas vezes, é concedida.
E não acontece nada?
Nada. Sou contra isso, porque entendo que se estamos ali estamos para fazer cumprir o estado de direito e não tenho o direito de não garantir àquele cidadão, mesmo que seja um ser humano abjeto e ignóbil, tem de ter direito a uma defesa e as vítimas têm de ter direito a um julgamento justo. Estou ali para defender os interesses dessa pessoa.
E como convive com isso?
Tive uma semana sem dormir, porque aquilo era mesmo muito mau, mas, lá está, era essa a minha função enquanto advogada. E quando ele me perguntou se ia preso, respondi-lhe na cadeia que era evidente que iria preso e no dia em que não fossem presas pessoas como aquele senhor estava tudo invertido. E foi preso e cumpriu. Acho que ainda está a cumprir uma pena de 14 anos e seis meses, que foi mais ou menos aquilo que lhe disse que ia apanhar por ter feito aquilo que fez.
Vamos a um dos grandes temas da atualidade que é a lei das Associações Públicas…
Já não é o grande tema de atualidade, porque já foi aprovada.
Aparece como uma lutadora pelos mais desfavorecidos na advocacia. Tem esse lado de justiceira, de certa forma, mas depois é contra decisões como os estágios profissionais serem remunerados….
Certo, e acha que isso representa um obstáculo ou é um retirar de um obstáculo para aceder à profissão? Se fosse corporativista, o que dizia logo era muito bem, não entra ninguém, que é o que vai acontecer, porque a esmagadora maioria da advocacia, que é a advocacia em prática individual e é aquela que dá estágios à maioria dos candidatos à advocacia, não tem capacidade para pagar. Se me pergunta, concordo com os estágios remunerados? Naturalmente que sim. Todas as pessoas devem ser remuneradas pelo trabalho que prestam, seja em estágio, seja fora dele. Agora, essa obrigação é do Governo, porque não pode impor a um advogado que esteja a ministrar um estágio, porque quando estou a ser patrona estou a ensinar aquela pessoa, tenho de perder o meu tempo, com todo o gosto, porque se assumi esse compromisso tenho de o cumprir.
Nem sempre é assim, às vezes, são atirados aos lobos…
Mas é isso o que está mal nos estágios. A minha estagiária andou comigo por onde andei.
Conheço outras situações…
E eu também. E, nas sociedades, por exemplo, isso sucede muito e são remunerados. Mas quando chegamos ao fim do estágio, o que é que aquelas pessoas sabem fazer? Injunções, execuções, notificações judiciais avulsas. E quando lhe perguntam: ‘Agora tens aqui um cliente teu que tem que arrolar testemunhas num processo crime, como é que fazes isso?’ Ele responde: ‘Não sei porque nunca fiz isto’. Esse é um dos problemas que temos. Deviam passar por todas as especialidades para saberem o que é que a profissão. Sou crítica nessa matéria. Relativamente à lei, a crítica que fiz ao estágio é que deve ser o Estado a garantir que, quem não pode pagar, possa aceder a fundos do Estado através de um estágio profissional, como sucede tantas vezes, para poder remunerar os estagiários. Porque se não o que vai acontecer é que os patronos vão dizer que não.
Mas diz que os grandes escritórios pagam…
Pagam e alguns deles até muito bem.
Por que é contra uma entidade externa a fiscalizar os profissionais?
Não faz sentido absolutamente nenhum, porque não conhecem a profissão.
Mas é só para fiscalizar os membros das Ordens profissionais?
Exato. Mas o que é que sabem da profissão e do que é a organização desta casa? O que é que sabem para vir aqui dizer se estou a fazer bem ou não o meu trabalho? Não são médicos, não são arquitetos, não são engenheiros, são professores universitários. Mas lá está, a academia não tem nada a ver com o exercício das profissões. Isso vai representar que queiram responsabilidade disciplinar sobre um profissional que está a fazer corretamente o seu trabalho e alguém entende que não e defende que deveria ser diferente, quando não conhece a profissão e não sabe porque não tem a experiência do que é que se passa dentro dela. Essa é a crítica que fiz no início da nossa conversa ao meu antecessor, pese embora tivesse a inscrição ativa fazia muito pouco trabalho de advocacia todos os dias na barra para perceber o que é que se passa e quais são os problemas que temos no dia-a-dia, porque é professor universitário, é árbitro, faz pareceres, escreve livros. Isto não tem nada a ver com a atividade da advocacia no seu dia-a-dia. Provavelmente o senhor professor não vai a uma repartição de finanças para saber como é que é tratado ali pelos funcionários. Não lhe pedem para tirar um soutien quando está a entrar num estabelecimento prisional, em nome do Estado de direito democrático.
As outras mulheres não têm de retirar o soutien?
Não, não estou ali na qualidade de outra mulher. Estou ali na qualidade de advogada.
Mas houve advogados recentemente apanhados….
E então? Então porque uma pessoa prevarica e comete um crime vamos retirar as prerrogativas constitucionais que existem para a profissão de advogado? Nem pensar. Isso é inconcebível. E já agora, em relação a essa colega que agiu muito mal, o assunto já está a ser tratado, quer a nível criminal, quer a nível deontológico, como é evidente. Curiosamente, não teve de tirar o soutien e levava droga com ela, mas não apita. As prerrogativas da advocacia não são pessoais, são da profissão. Os advogados e as advogadas que vão aos estabelecimentos prisionais não vão visitar presos, vão cumprir com a sua obrigação estatutária de prestar assistência aos reclusos e, como tal, não vão na qualidade de visitas, não têm de estar sujeitos às outras regras. Ainda esta semana disse isso na rádio e muito me espanta que o presidente do sindicato venha com essa conversa.
O presidente do Sindicato dos Guardas Prisionais?
Dos Guardas Prisionais que vem dizer que é uma questão de segurança. E pergunto para quem? Não estou a perceber, mas há memória desta casa de algum advogado ter comprometido a segurança dos estabelecimentos prisionais? Nunca ouvi. E depois respondem-me que também são fiscalizados. Naturalmente que são, são funcionários da cadeia. Não entro numa cadeia, entro num parlatório para conferenciar com os meus constituintes. Eles entram todos os dias dentro da cadeia e bem gostaria de falar dos objetos estranhos que entram dentro das cadeias e que, muitas vezes, não são levados pelas famílias, como sabemos. E agora vamos responsabilizar todo o corpo de guardas profissionais, porque existem alguns que não cumprem com os seus deveres? Não podemos fazer isso.
Não respondeu o que a Ordem vai fazer em relação à lei das Associações Públicas…
Vai fazer uma proposta de estatuto que proteja o que tem que ser protegido com esta legislação, nomeadamente o segredo profissional, as prerrogativas e os direitos da advocacia, garantindo que nenhuma destas questões é colocada em causa, mesmo existindo um órgão de supervisão que foi agora aprovado.
O que diz sobre esta trapalhada da lei dos Metadados?
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre essa matéria.
Também sabe que se fala que tem de haver uma revisão constitucional para acabar com isto?
Agora está em curso. É uma questão de proporem alternativas. Acho que a visão do Tribunal Constitucional é a que está correta e cabe aos tribunais fazerem aquilo que estão a fazer e aplicar essa lei. Não cabe na cabeça de ninguém que estejam disponíveis durante um ano, os dados de toda a população deste país para poderem ser analisados para fins criminais. Ou tem uma suspeita séria de que o cidadão está em vias de cometer um crime grave para poder assegurar esses dados ou isso não pode acontecer, porque os dados que estão ali salvaguardados conseguem retratar toda a sua vida no espaço de um ano. Com quem falou, onde esteve, com quem esteve e isso é uma violação grosseira daquilo que são os seus direitos constitucionais.
Disse numa entrevista que a ‘minha faquinha corta sempre a direito’…
É verdade.
Vamos vê-la também em programas televisivos a comentar?
Não, porque não tenho feitio por isso. Acho que a bastonária tem de intervir no espaço público quando está a falar no interesse dos cidadãos, das cidadãs e da instituição. Fora disso, não faz nenhum sentido ser comentadora política, estar a escrever artigos de opinião. Posso aceitar escrever um artigo de opinião, mas de assuntos que têm a ver com a justiça. Porque não existo no espaço público para isto. Enquanto estiver nessas funções não tenho religião, não tenho partido político, não tenho absolutamente nada. Sou uma cidadã e exerço os meus direitos de cidadã, participo no espaço público, mas sempre com a contenção presente de que neste momento represento uma classe inteira.
E continua a fazer voluntariado no IPO?
Continuo a fazer voluntariado no IPO e na Comunidade Vida e Paz, mas estou à espera até que reativem, porque nos últimos três anos isso não foi possível por causa da pandemia.
Não vai ao Eleven [inaugurado pela família Júdice]?
Não. Não vou ao Eleven, mas não é porque não gosto é porque realmente gosto mais de trazer a minha marmita e comer aqui do que a ir a restaurantes. Gosto mais de andar de transportes públicos do que andar a ser conduzida. Ainda esta semana, utilizei o carro da Ordem para ir ao jantar dos 40 anos do Tribunal Constitucional e aí ao serviço da Ordem naturalmente uso o carro e o motorista que está contratado pela instituição. Agora entendo que perco muito mais tempo se me for buscar todos os dias a casa, apanho muito mais trânsito e levo muito mais tempo a chegar aqui do que se me meter no metro e vir de comboio, quando há CP, até aqui, porque tenho o metropolitano à porta e a estação de Santa Apolónia a dez minutos. Mas não uso isto para dizer que alguém tenha de fazer igual a mim. Isto é a pessoa que sou e não vou deixar de ser só porque fui eleita bastonária, porque não é do meu feitio. Gosto de ser eu a fazer a minha comida, distrai-me durante o fim de semana e depois trago-a durante a semana. Tenho ali, por exemplo, umas ervilhas com ovos escalfados para almoçar que são maravilhosas e que fiz durante o meu tempo livre, enquanto estou a pensar nos problemas desta casa. E depois trago aquela lancheira lindíssima do Principezinho, venho por ali afora nos transportes públicos e como aqui dentro do gabinete ao sol e a ver as pessoas lá fora.
Passa a ideia de que os advogados são todos uns pobretanas. Quando o comum dos mortais pensa precisamente o contrário…
Passo a ideia de que são pessoas como as outras, que têm vivências e dificuldades como qualquer ser humano. Essa ideia de que o advogado é muito rico, que anda de Jaguar e que explora os seus clientes é mais uma ideia dos filmes do que propriamente a da realidade.