Laura Ramires e José Cabrita Saraiva
Encontramo-nos no Grande Real Villa Itália, o hotel cor de salmão, perto da Boca do Inferno, que ocupa a casa onde outrora viveu o último Rei de Itália, Humberto II. Lili Caneças conheceu-o em pequena, quando tinha seis anos. «Foi o primeiro rei que conheci. Isso marcou-me, fiquei muito feliz de ter conhecido um rei, mas achei absolutamente natural», recorda. Atualmente, com 78 anos, continua a frequentar a alta sociedade:_em abril de 2022, por exemplo, esteve em Monte Carlo num baile organizado por Alberto do Mónaco.
Filha de uma pianista clássica e de um comandante da Marinha de Guerra, conta que a mãe a educou para casar com um príncipe – o que só não aconteceu por acaso. Em vésperas de completar 79 anos, publicamos a primeira parte de uma grande entrevista em que Lili Caneças explica que adora viver mas tem cada vez menos vontade de ir a festas: «Troquei as discotecas pelo ginásio e o champanhe pelos sumos. As noitadas desgastam».
Em contagem decrescente para celebrar mais um ano de vida, qual é o seu estado de espírito? Adoro fazer anos, adoro festas. Posso dizer que a minha vida é uma festa – tornei a minha vida na minha festa. Aliás, costumo dizer: a vida é uma festa, cabe-te ser convidada para ela. Ou passar ao lado dela: ficar em casa, ser antissocial – também há imensa gente que prefere ficar em casa. Quando digo festa, não é só dançar e tomar copos. Para mim, ir ver um concerto fantástico ou ir ao teatro ver uma peça fantástica é uma festa. A vida é uma festa, um banquete que nos é proporcionado.
E não se importa com a idade? Nunca escondi a minha idade, nasci a 4-4-44, às quatro da tarde. Acho que é muito melhor as pessoas perceberem que se pode envelhecer bem, com dignidade e com bom aspecto, do que estar a esconder ou dizer que são mais novas. Estão a enganar quem? Elas próprias. Hoje em dia vai-se à Wikipedia e toda a gente sabe de tudo, não vale a pena. O dia 4 de abril, para mim, é sempre uma festa. Mas tenho um bocadinho de tristeza porque durante 25 anos comemorei com o meu maior amigo, o barão Stefan von Breisky. Era como um irmão gémeo, nós éramos iguais. Tenho uma casa muito gira na Gandarinha, mas é pequena. Ele tinha a casa da Malveira, que era enorme, cabiam 200 pessoas e vinha gente de todo o mundo para as nossas festas. E em casa do Stefan era assim: ninguém dizia mal de ninguém, ninguém falava de doenças, ninguém falava de chatices, era mesmo… celebrar a vida! Eu sou muito assim, quando começam a dizer: ‘Ai, Lili, sabe lá o que é que me aconteceu!’… ‘Não sei nem quero saber, porque se é para pôr para baixo não vale a pena!’. [risos]
Está a preparar algum evento especial para comemorar? É evidente que vou celebrar.
Nestas alturas gosta de recordar o passado? Ou não é uma pessoa saudosa? Não sou nada saudosa. Fui a todos os lugares onde quis ir e conheci as pessoas todas que quis. A minha vida foi um privilégio, uma vida abençoada e fantástica! A única coisa que ainda não fiz e tenho vontade de fazer é uma viagem à volta do mundo, demore o tempo que demorar. Agora, como estou novamente a trabalhar em televisão todos os sábados [programa Em Família, na TVI], é um bocadinho complicado. Tinha agora uma festa fantástica, em Palm Beach, uma coisa única. A minha filha foi. Mas como comecei há pouco tempo o programa da TVI, acho que era desagradável começar logo a faltar. Ou faço as coisas muito bem ou então não faço.
Esse desejo de viajar pelo mundo mostra o seu lado mais jovem. Aliás, diz que quando era mais nova costumava rodear-se de pessoas mais velhas e, atualmente, acontece o oposto, rodeia-se de pessoas mais novas. Quando era mais nova só tinha amigos mais velhos. O meu ex-marido [Álvaro Caneças] era mais velho, eram todos mais velhos. Tinham muita sabedoria de vida e contavam-me histórias. E eu adoro ouvir histórias giras e bem contadas. E hoje faço exatamente o contrário: rodeio-me de gente jovem que adora – mas adora mesmo, não vos passa pela cabeça! – andar comigo porque têm acesso ao mundo em que eu vivi, a pessoas que eu conheci – gente famosa, celebridades, reis e rainhas, atores de cinema… E eu conto como as conheci, o que me disseram. Ainda hoje, estava a abrir uma gaveta e encontrei isto [tira da mala o cartaz da peça Hamlet, na Broadway, autografado por Jude Law]. Eu tinha dito no meu Instagram que só tinha pedido uma única vez um autógrafo – ao Paul McCartney – mas não. Depois vi o Jude Law, quando fui ver o Hamlet, a Nova Iorque, e está aqui: ‘Lili, with love. Jude Law’. E esteve montes de tempo a falar comigo. Tive a oportunidade de ver os melhores atores do mundo a fazer o Hamlet. Ele, de facto, é extraordinário, e eu disse-lhe: ‘You’re the best Hamlet i saw in my life’. Ficou tão feliz, tão feliz, tão feliz. Ele agora está um bocadinho afastado do cinema, nesta altura estava no auge da sua beleza. Esteve três horas em cena, numa peça sem cenários, em que ele era o centro das atenções todas.
Referiu o Instagram, onde é seguida por mais de 100 mil pessoas. É um fenómeno. Eu vivo sozinha, mas nunca estou sozinha. Saio à rua e estou no palco. Por exemplo, vou ao CascaiShopping montes de vezes porque adoro ir ao cinema. Isto não é arrogância, nem excesso de autoestima, nem armar-me em estupenda, mas o carinho que recebo de pessoas, de todas as idades, que me vêm abraçar… Os miúdos pedem selfies: ‘Oh! Tia, Tia’; as pessoas mais velhas dizem-me: ‘A Lili é a minha inspiração’, ‘Por causa da Lili eu vou ao ginásio’; ‘Por causa da Lili eu maquilho-me’; ‘Por causa da Lili eu uso saltos altos’… Isto não é uma, nem duas, nem três pessoas. Abraços coração no coração. E eu penso que tenho uma responsabilidade para com esta gente toda de me manter viva, saudável, estupenda, para poder dizer: ‘Se eu consigo, tu também consegues’. Não sou milionária, não tenho nada a mais do que os outros. Posso não ser uma pessoa muito comum porque tive uma vida privilegiada, e tenho essa noção, mas se eu consigo toda a gente consegue. Quando me dizem: ‘Ah, mas a Lili pode ir ao ginásio…’. E então? Se você ficar em casa, quando estiver a ver a novela, em vez de estar a fazer tricô, pega numa garrafa de água do Luso e trabalha os tríceps. E se em vez de andar de elevador subir escadas trabalha as pernas. Pode andar a pé e nadar – temos 300 dias de sol por ano –, não é preciso ir ao ginásio ou ter dinheiro.
Mas nas redes sociais também há pessoas muito agressivas… No meu Instagram é raro tratarem-me mal ou chamarem-me nomes. No meu caso tenho três ou quatro pessoas que me odeiam. Não bloqueio ninguém, mas digo à pessoa: ‘Se você não gosta de mim, deixe de me seguir’. É a única coisa que digo. E respondo a toda a gente, estou para aí três horas por dia a responder às pessoas. Perguntam-me: ‘Lili, esse anel é tão giro, onde é que comprou?’ e eu digo: ‘Olha, filha, comprei ali…’; ‘E foi muito caro?’. E eu respondo: ‘De dinheiro não gosto de falar’. É desagradável falar de dinheiro, não vale a pena.
E quem tem acesso ao seu perfil pode ver que faz justiça à ‘socialite’ que é, ou seja, partilha várias fotografias com algumas das personalidades mais importantes, nomeadamente, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. E foi o Marcelo que tirou a selfie. No jantar dos 100 anos da Versailles. Ele conhece-me de toda a vida, gosta de mulheres bonitas e de fazer charme, é muito ‘charmeur’. Gosto imenso dele e acho muito triste um homem genial ficar como o Presidente das selfies e dos abraços. Mas a culpa não é dele.
Há dias partilhou um vídeo de uma participação num videoclipe. Gosta de se desafiar? O Salvador Corrêa de Sá é uma pessoa extraordinária. É o maior pintor de frescos de Portugal, se não da Europa, faz frescos lindíssimos em todos os palácios e casas de gente fantástica. E, além de ser um artista, é um bocado como eu, gosta de misturar pessoas que aparentemente não têm nada a ver umas com as outras. Se virem, no vídeo que partilhei [a propósito do lançamento do novo single do Tiago Andrade Nunes], está um tipo com uma cabeleira branca do Luís XIV – é um embaixador que gosta de se divertir. Levou aquilo, vestiu aquilo e dançou. E porque é que fez isso? O Tiago [Andrade Nunes] – que é um grande cantor, compositor, poeta –, vai lançar este novo single e o Salvador decidiu juntar um grupo. Aquela casa é sempre uma casa muito cheia de gente e de gente muito diferente, de gente muito eclética, de gente muito alternativa… E ao Salvador ninguém diz que não. Ele é um dos dedos da minha mão. Quando o Salvador me diz ‘Lili, hoje às nove e meia’, lá vou eu. Até fui à balda, de botas da tropa, vestida de leggings, porque não tive tempo de mudar de roupa, mas sabia que a minha presença era importante. O single vai sair daqui a pouco tempo e vocês vão ver que a maior parte daquelas pessoas são aristocratas, embaixadores, diplomatas, mas também está lá a Ágata, como símbolo da música pimba. E eu pergunto à Ágata: ‘Então Ágata, estás ansiosa por ouvir o novo single?’, e ela responde: ‘Claro, estou super ansiosa’, e começa assim o videoclipe. Portanto, com pessoas improváveis, num jantar improvável, mas em que tudo resulta bem.
A Lili acompanha todas as mudanças tecnológicas. Prova disso também é que até há pouco tempo era habitual ouvirmos falar em livros de memórias, mas recentemente ouvimo-la levantar a possibilidade de criar um canal no Youtube, onde pudesse contar algumas das suas histórias… Tenho tanta, tanta história para contar…
Qual seria, por exemplo, o tema do primeiro episódio? Talvez a maneira como nasci, porque eu nasci de bem com a vida. A minha mãe sempre disse que quando eu nasci o que ela ouviu foi o som de uma gargalhada e não o choro normal de um bebé. Devo ser um bocadinho alien. Por exemplo, nunca tive febre. Lembro-me de a minha mãe dizer que quando me foi dar a vacina da BCG não precisei porque já estava imune. Há uma quantidade de coisas no meu organismo que são um bocadinho diferentes das pessoas ditas normais. Os sinais de velhice… A gente só envelhece por fora porque o meu corpo nunca me deu, até hoje, um sinal de que estou velha. No ginásio faço a mesma coisa que fazia há 40 anos e não me canso. Se for preciso estar a dançar a noite toda ainda estou. Quanto à parte exterior, hoje em dia há tanta coisa… Fiz o peeling há 20 e tal anos. Renovei a pele toda.
O famoso peeling que abriu os telejornais? Todos! Os três telejornais. A TVI, inclusive, foi para ‘o ar’ às 19h45 para mostrar em primeira mão, acham normal?! A minha pele estava completamente destruída pelo sol e falei para o [Ivo] Pitanguy, que era o maior cirurgião plástico do mundo – era onde ia a Gina Lollobrigida, a Sophia Loren – e que eu conhecia muito bem, porque andava só com gente mais velha e as minhas amigas iam todas fazer os liftings com ele. Deixou-me até assistir a uma operação, que era uma coisa absolutamente horrível, saíam os olhos com pinças, saíam as orelhas… Na altura eu disse: ‘Que horror, nunca vou fazer isto’. Depois, havia uma amiga minha que foi assistente do Pitanguy durante para aí 20 anos, e tinha uma pelezinha de bebé. E eu perguntei-lhe: ‘O que é que tu fizeste?’. ‘Fiz agora um peeling com o Pitanguy’. Falámos para o Pitanguy e ele cobrava-me 18 mil dólares. O meu pai tinha acabado de morrer, portanto tinha dinheiro para pagar. Fui lá com várias amigas minhas, vi o trabalho que fazia. E ele disse uma coisa que nunca esquecerei: ‘Vocês, portugueses, vêm fazer comigo, mas têm o sétimo melhor médico facial do mundo, que é o Doutor Baptista Fernandes’. Podíamos ir perfeitamente ao Baptista Fernandes, que era fantástico, mas como não era famoso, ia tudo para o Pitanguy. Ele era fantástico porque para as pessoas com dinheiro cobrava caro, mas depois fazia muitas recuperações de queimados, de pessoas que precisavam, e não cobrava. Estive várias vezes na clínica dele em Bota Fogo, era uma clínica absolutamente modesta, nada de especial, os quartos pequenos – e eu dizia: ‘Meu Deus, que miséria’. Só víamos que era uma clínica especial porque tinha era arte muito boa, quadros muito bons, esculturas… Mas não é normal numa clínica destas os quartos serem tão pequenos.
O peeling veio a propósito do canal de Youtube. Tinha ficado com a sensação de que iria partilhar temas sobre os eventos da alta sociedade onde esteve, as pessoas com quem privou… Há tanta coisa, tanta coisa… O que vou fazer aqui no Grande Real Villa Itália é um bocadinho o que estou a fazer agora convosco, por exemplo, falar sobre como conheci o Jack Nicholson, o Jude Law, o Paul McCartney, a Renata Tebaldi… Mas sempre com algum propósito pedagógico, porque estar só a falar de Chanel ou Dior num tempo destes, em que as pessoas não estão a passar uma época muito boa, acho que é um bocadinho…
Ofensivo? Não será ofensivo… Mas prefiro falar, por exemplo, de quando vi o Hamlet. Senti-me tão feliz, tão privilegiada, vinha de Portugal, estava na primeira fila, o bilhete custou-me para aí 80 dólares, o que não é uma fortuna, e vi um dos maiores atores do mundo. E depois fui jantar com a minha filha e com o meu neto ao 21, um dos restaurantes mais emblemáticos e icónicos de Nova Iorque. E como tenho um cabelo que se nota muito à noite, várias pessoas vieram ter comigo, e houve uns que até queriam que fôssemos com eles para São Francisco. Antes o Instagram só dava para fazer vídeos de um minuto mas agora já dá mais tempo, portanto, talvez pense fazer o canal no Instagram, contar histórias divertidas.
Está sempre com vontade de fazer coisas novas ou não é capaz de dizer que ‘não’ a nada? Durante a minha vida quase toda fui incapaz de dizer ‘não’ e por isso muita gente se aproveitou de mim. Fui uma porta que se abriu para todos os sonhos de muita gente. Também não me arrependo porque os ajudei. Proporcionei-lhes isso. Mas muitos acabaram a dar-me uma facada nas costas, como aconteceu ao Júlio César. E isso acho muito triste. Mas não ligo absolutamente nada. Hoje em dia só faço o que quero e o que me apetece e aprendi a dizer não. Quando não me apetece nem me ponho a inventar, porque detesto dizer mentiras. Noutro dia estava a ver a entrevista do Miguel Falabella ao Goucha, e ele dizia: ‘Eu digo imensas mentiras’. E eu pensei: ‘Ai, que horror’. Não digo nenhuma mentira porque tenho uma mente tão aberta… Se me disserem qualquer coisa que aparentemente é completamente alternativa ou extravagante, para mim é normal. Não faço critérios nem juízos de valor sobre ninguém, se não tinha ido para juíza em ver de ter ido para Germânicas.
Mas isso porque já viu muita coisa e não se impressiona facilmente? Acho que já vi tudo o que havia para ver, menos orgias e coisas assim – nunca foi o meu género assistir a uma orgia, fazer um ménage à trois ou swings ou qualquer coisa desse género… Mas por exemplo: a primeira vez que fui ao Carnaval no Rio, ainda não havia sambódromo, era na Presidente Vargas e no Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro. E a primeira festa era no Iate Clube do Rio de Janeiro. O Iate Clube é lindo, com a piscina toda decorada com flores, deslumbrante. Ficámos até às 5h/6h da manhã, uma noite linda de sonho e, às duas por três, vejo, debaixo da minha mesa, um homem e uma mulher a fazerem amor. Na minha mesa estavam aí dez pessoas e pensei: ‘Mas sou só eu que estou a ver?’. Ninguém repara. Aquilo era tão normal para eles que pensei que estava a fazer uma figura de estúpida a olhar. ‘Meu Deus, que saloia que eu sou’. Olhei assim vagamente e eles lá fizeram o que tiveram a fazer.
E fingiu que também achava normal? [risos] Estava com pessoas muito minhas amigas e ninguém comentou. Foi um ato sexual completo, todos nus. Isto para dizer que de facto acho que já vi tanta coisa, tanta coisa que não gosto é de mentiras.
Não gosta de mentir, mas numa festa ou na vida social existe um lado de representação. Tem de ter uma certa máscara? Não. E aí é que existe a Lili Caneças e a Maria Alice. Não sei se viste a entrevista que dei ao Goucha em que lhe disse: ‘A Lili Caneças toda a gente conhece, há 40 anos que existe, hoje estou aqui para falar da Maria Alice’. Quando vou agora ao Em Família conto coisas divertidas e ponho toda a gente a rir porque penso: ‘Estas pessoas já têm vidas complicadas e ainda vão levar com gente mal disposta?’. Quando chego à missa dizem-me: ‘Ai, Lili, agora sábado à tarde já temos o que fazer’ [ver o Em Família], porque são pessoas, na maioria, que vivem sozinhas, que têm vidas tristes, que estão no fim da vida. Não têm companhia de ninguém e nós vemos aqui como as pessoas são largadas nos lares… E penso: ‘Ó, meu Deus, que povo este? Em que é que nós nos tornámos para conseguirmos fazer isto às pessoas que estiveram toda a vida do nosso lado?’. Sobretudo os avós. Eu vejo, por exemplo, a relação que tenho com o meu neto Pedro. Vi-o nascer e foi ele que me ensinou a rappar, a fazer hip-hop e a mexer no Instagram. Ele agora está a produzir um rap, mas à séria, parece ser uma das melhores músicas do mundo. E ele diz-me: ‘A avó não faça isso porque é ridículo, a avó não pode de maneira nenhuma ir rappar porque rappar é a história de uma vida com montes de palavrões, com pessoas que, por um motivo ou por outro, estão zangadas com a vida’.
O seu neto está zangado com a vida? O meu neto não está zangado com a vida mas tem histórias para contar de coisas que viu, de coisas a que assistiu e, portanto, não será sobre a história da vida dele, porque é uma pessoa privilegiada, que nasceu em berço de ouro, mas de coisas que ele viu e ouviu. Os rappers morrem a toda a hora. Havia uns de quem o Pedro gostava muito, e punha no meu carro em altos gritos, que eu não me importo nada, deviam ser angolanos e cantavam assim: ‘Hoje é meu dia di morte, hoje é meu dia di morte’. E eu digo-lhe: ‘Ó, Pedro, você nunca diga isto. Porque acho que as palavras às vezes atraem as situações.
Falou do evento a que faltou recentemente, em Palm Beach. Um dos últimos em que esteve presente foi em 2022, em abril, no Mónaco, organizado pelo príncipe Alberto… Pois foi. Fui festejar os meus anos a Monte Carlo. É um principado lindíssimo e, depois, não há pobreza, é tudo bonito. Fico no Hôtel De Paris – conheço-os todos porque vou para lá para festas com a minha filha desde que me divorciei. Como tinha amigos aristocratas arranjava sempre convite para essas festas e dividíamos o quarto, pagávamos as despesas a meias e não era assim tão caro porque o hotel fazia um preço especial. Então o que é que eu pensei? ‘Sou filha de Deus, sei lá quantos mais anos é que vou durar, se posso, vou para Monte Carlo’. Fui para o Hôtel De Paris, estive lá dez dias. O Marcos Marin, que pintou montes de quadros da Grace Kelly, do príncipe Alberto, da Stéphanie, do Michael Douglas, de toda a gente, fazia 40 anos de carreira. Como eu fui a primeira pessoa em Portugal a ser pintada por ele, achei que era minha obrigação estar nesse jantar. Estava o príncipe Alberto também e tirámos fotografias com ele. Não há cá selfies, que ele não permite isso. Está lá o fotógrafo da Casa Grimaldi e é o príncipe que vai dando ordens à sua assessora – ‘agora chama estes, agora chama aqueles para tirarmos fotografia’. E encontrei a mulher dele, a Charlene. Diziam que ela tinha feito uma plástica e estava desfigurada, mas encontrei-a na Louis Vuitton e vi que estava estupenda. Em Monte Carlo é tudo tão caro, tão caro, tão caro que tens de ser milionário para viver lá. Tomas um café e são 40 euros. Agora, é tudo tão bonito, ninguém rouba porque toda a gente tem dinheiro, é tudo super vigiado, tudo controlado. Cascais também podia ser assim. Até já arranjaram maneira na marina de os barcos maiores poderem vir para cá… Cascais tem tudo, mas está mal aproveitado… Poderíamos fazer daqui o lugar mais glamoroso, mais cosmopolita, como o Mónaco é. Aliás, o nosso clube naval já é geminado com o Iate Club de Monte Carlo.
Já é um começo… O problema é que nós temos várias geminações, mas a maior parte delas muito pobres, muito pobres, muito pobres. Ora, se estivéssemos como Monte Carlo, para variar tínhamos gente com dinheiro, gente que viria para cá porque, eu vi, no tempo dos reis e das rainhas vinha para cá a Grace Kelly, a Jackie Kennedy, o Schlumberger, até o Senhor Gulbenkian veio para cá, que eram as pessoas mais ricas do mundo e se vieram para cá alguma coisa achavam que tínhamos já nessa época.
Mas foi durante a Guerra… Sim, também muitos judeus vieram para cá para depois poderem ir para o Brasil. Muitos deles diziam: ‘Quando me reformar vou para Portugal’.
Cumpriram? Sim, muitos cumpriram. Vieram para cá porque, de facto, é um sítio muito tranquilo e acolhedor, o povo é simpático. Temos tudo para sermos o melhor país do mundo e não somos, vai-se lá saber porquê. Já disse no meu Instagram e vou repetir – não tenho nada a perder, já tive uma vida tão longa, se me mandarem matar, paciência: ‘Nasci no país mais pobre do mundo numa ditadura e vou morrer no país mais pobre do mundo numa pseudo-democracia’. Eu dou-me até lindamente com o António Costa, é super querido comigo, sempre um encanto de pessoa, um homem super inteligente. Mas, por exemplo, sabes se na Suíça o Governo é de esquerda ou de direita? Ninguém fala de política e o povo vive lindamente. Conheço muito bem a Suíça: organizados, tudo fantástico, super profissionais, um país lindíssimo. Nós podíamos ser assim. Vês o que a Joana Vasconcelos fez agora na passagem da Dior? Uma coisa fantástica. Temos talentos tão grandes. Tenho um grande amigo, o Yuri Alves, que ganhou dois Emmy seguidos. Ouviste falar?
Não. Como eu tenho mais seguidores do que ele, pediu-me para eu pôr nas minhas stories [do Instagram], para as pessoas poderem saber. Ele até queria fazer um filme sobre a minha vida, está a tentar arranjar patrocínios, mas aqui em Portugal é tudo tão difícil. Não há ajudas para a arte, para a cultura, para a educação, nada… Os portugueses vão-se acomodando e eu fico muito triste. O que é que eu posso fazer? Tento motivar as pessoas para fazerem coisas, puxar para cima. Jesus fez uma doutrina chamada Cristianismo em que a palavra, basicamente, era amor. Não havendo comunicação social, não havendo redes sociais, não havendo nada, a palavra amor chegou aos nossos dias. E talvez esteja a haver uma mudança. Eu não sou ativista, os homens nunca me fizeram mal nenhum, sempre me trataram muito bem, mas vejo que as mulheres estão a ficar com muita força.
Se estão! O empoderamento da mulher vai levar a uma mudança do mundo enorme. Agora já há uma quantidade de mulheres no Parlamento Europeu, há uma quantidade de mulheres com posições fantásticas. Mas nos países latinos ainda há um pouco de misoginia e de chauvinismo, do homem: ‘Olha vai-me buscar isto, vai-me buscar aquilo; vai fazer isto, vai fazer aquilo’.
Mas também existe o contrário, o cavalheirismo… Ah, isso também existe, eu acho que sim, acho que os homens continuam a ser uns queridos e uns gentlemen, pelo menos para mim são. Agora, sei que as mulheres não têm sucesso com tanta facilidade que tem um homem. É uma questão de tempo. Uma vez estava a falar com o Valter Hugo Mãe e ele dizia-me: ‘Ó Lili, isso ainda vai demorar 30, 40, 50, 60, 70 anos’. Mudar mentalidades é muito difícil.
Continua a receber muitos convites para eventos e festas exclusivas? Recebo dezenas e cada vez me apetece menos ir [risos], porque já fui a tantos, tantos, tantos e dantes havia muito mais glamour. E, de facto, o dinheiro mudou de mãos. Não estou a defender as pessoas que ganharam dinheiro de uma maneira menos ortodoxa, mas o dinheiro mudou de mãos e, hoje em dia, há muitos novos-ricos que não se sabem comportar, que não têm educação, que não têm inteligência, que não têm cultura. As festas não têm o glamour que tinham quando era miúda. Essas grandes festas do Schlumberger e do Patiño foram das melhores que houve no mundo inteiro. Mesmo na festa que eu fiz no hotel da Penha Longa, quando deixou de ser Aoki Corporation e passou a ser Four Seasons, veio até o filho da Rainha Elizabeth II, o Eduardo.
Foi a Lili que organizou essa festa? Sim, já foi há montes de anos. Trabalhava com o meu primo, que era broker, fazia gestão de fortunas, e como eu conhecia gente rica no mundo inteiro fiz uma mailing list onde tinha para aí dez mil pessoas: jogadores de golfe, jogadores de ténis, milionários, aristocracia, jet-set, empresários… Ofereceram-me tanto dinheiro, tanto dinheiro que não pude recusar. Dá uma trabalheira fazer uma festa assim, vocês não têm noção.
Disse que cada vez lhe apetece menos ir a festas… Costumo dizer que troquei as discotecas pelo ginásio e o champanhe pelos sumos. A minha vida hoje é outra, senão não conseguia viver muito tempo, porque evidentemente as noitadas desgastam. Mas foi uma época da minha vida de que gostei muito, porque as pessoas à noite estão mais relax, não estão a pensar nos problemas, toma-se um copo com um amigo… Hoje vês miúdos praticamente em estado de coma ou com droga.
Há um certo meio que conhece, da televisão, onde também há muita droga. Isso não sei, só sei o que vejo. Se fores à Pensão do Amor, na rua cor de rosa, como eu fui uma vez à noite, vês miúdos caídos no meio do chão e não sabes se estão mortos ou se estão vivos. Qual é o prazer que me dá em sair para um lugar desses e ver aquilo e pensar que podem ser os meus netos?
Há um bocado ia perguntar-lhe: quando diz que esteve numa festa no Mónaco, em Monte Carlo, com os príncipes… Mas não foi esse o meio em que nasceu? Não.
Houve alguma altura em que não se sentisse à vontade ou sempre se sentiu bem? Sempre me senti bem porque a minha mãe me deu uma educação fantástica. Educou-me para eu ser uma princesa e para casar com um príncipe, com regras de etiqueta, com postura… Adorava-me e era capaz de estar uma tarde inteira a pôr-me camomila no cabelo para ficar mais clarinho. E estava preparadíssima para casar com um príncipe. Não casei, mas até podia ter acontecido. Nasci loirinha num país de gente escura e diferente de mim. Estava sempre a rir, não precisavam de me pedir ‘dança’ já eu estava a dançar, não precisavam de me pedir ‘canta’ já eu estava a cantar, e, como era diferente, as pessoas olhavam muito para mim. Habituei-me sempre, no meu pequeno núcleo, a ter o protagonismo.
A ser o centro das atenções? Exatamente. O Rei de Itália conheci-o quando tinha seis anos.
Aqui? Não, o meu pai era comandante da Marinha de Guerra, mas comandante numa altura em que os barcos não estavam ancorados nas docas, em que não havia dinheiro para pagar às Forças Armadas e em que morrer pela pátria era um orgulho, uma época completamente diferente. Eu só conheci o meu pai aos quatro anos, quando ele veio da Índia, e vivi até aos cinco anos em Vila Franca de Xira. Tenho o problema de ser aficionada porque me habituei a estar junto aos touros e a ir para as herdades ver tudo aquilo.
E isso é um problema porquê? Oh, porque hoje em dia… Se puser no meu Instagram uma corrida de touros, insultam-me… Em Vila Franca havia aquelas largadas de touros nas quintas, íamos às touradas. Havia uma toureira chamada Conchita Cintrón, que era uma loira muito bonita, e eu dizia: ‘Quando for grande quero ser a Conchita Cintrón’. Hoje temos que andar escondidos, praticamente, para ir para as corridas de touros, porque acham que estão a maltratar o animal, mas esquecem-se que se não houvesse corridas de touros, o touro era uma espécie que já tinha desaparecido.
Um veterinário que conheci disse-me que os touros das touradas eram os animais mais felizes do mundo. Não percebo que, de repente, Portugal inteiro seja contra as corridas de touros… Se me apetecer vou, se não me apetecer não vou, mas não posto no meu Instagram porque o único insulto que vi foi tipo: ‘Ó minha grande vaca, tu é que devias estar lá a ser toda espetada para ver se gostavas’. Uma vez fui a um matadouro para ver e comparar, e as vacas eram mortas de uma forma completamente básica, primária, e sofriam horrores. O meu fisioterapeuta é forcado e foi tantas vezes colhido, também é uma coisa de vida ou de morte. É uma luta de igual para igual.
Entretanto, fizemos aqui uma digressão porque estava a dizer como é que conheceu o Rei Humberto II de Itália. A minha mãe era pianista clássica, tirou o curso de Conservatório em Lisboa, com 19 valores. Nasci num meio em que se preservava muito a cultura, a boa educação, regras de etiqueta e tudo isso. O meu pai era comandante da Marinha de Guerra numa altura em que, como estava a dizer, só uma elite é que ia para a Marinha de Guerra. Quando o meu pai veio da Índia, foi para capitão do Porto de Peniche. Ser filha do Sr. Comandante numa terra de pescadores era como ser a Cleópatra, rainha do Egipto. Tínhamos uma casa fantástica, com três andares, que era a capitania do porto, parecia um pequeno castelo, o meu quarto dava para o mar, dava tudo para o mar, num sítio esplendoroso. O meu pai tinha duas paixões: o mar e o Sporting. A família ficava assim um bocadinho para trás. Quando os pescadores estavam um bocadinho ‘entornados’, o meu pai mandava prendê-los e depois as mulheres deles vinham ter comigo: ‘Ai menina, peça ao paizinho, o meu marido foi só daquela vez que tomou uns copinhos a mais porque ele é impecável, nunca bebe…’. Se o Sporting ganhasse estava tudo resolvido, o homem era solto no mesmo dia. [risos] Entretanto abriu uma pousada nas Berlengas e o meu pai convidou o Rei de Itália para ir lá inaugurar. A minha mãe pôs-me muito bonita, com um vestido branco todo aos folhinhos e um laçarote no cabelo. Na inauguração, fui entregar um ramo flores ao Rei de Itália – lembro-me de ser muito alto –, deu-me um beijinho, disse-me que eu era muito bonita. Fiquei muito feliz, mas achei absolutamente natural. O primeiro rei que conheci fez-me festinhas, deu-me beijinhos, era um querido. Depois viemos para a Parede e, mais tarde, quando me casei, vim para Cascais. E estavam cá todos: o Rei Humberto, os condes de Barcelona, o Juan Carlos, Rei de Espanha, o Rei Carol da Roménia, a Rainha Joana da Bulgária… Os reis viviam todos entre Cascais e Estoril, de tal maneira que depois vinham pessoas fantásticas visitá-los. Eu ia para a praia do Tamariz porque era onde estavam as princesas e podíamos usar biquíni, nas outras praias tinha que se usar fato de banho completo senão o cabo do mar multava – eram 25 tostões, o preço de dois cafés. Então, ia de biquíni para a praia do Tamariz, e conheci essa gente toda. Tornei-me muito amiga da irmã do Juan Carlos, a infanta Margarida. Mesmo sendo cega de nascença, tinha uma alegria… Íamos ao cinema, íamos dançar para o Vangogo – que era a discoteca mais badalada de Cascais. Portanto, sempre me dei com aristocracia.
Não se sentia intimidada? Não, nunca me senti intimidada, muito pelo contrário. O que me intimida são pessoas mal educadas, rascas, malcriadas, ordinárias, pessoas que insultam. As pessoas que estão de mal com a vida, eu tento ajudá-las como posso, mas acho que precisam mesmo é de ajuda psicológica.
AGRADECIMENTOS:
HOTEL GRANDE REAL VILLA ITÁLIA
VESTIDO: LOJA DAS MEIAS