Arcebispo de Braga. “Senti vergonha, tristeza, humilhação. É uma realidade muito trágica”

É uma das vozes mais ouvidas da Igreja e considerado um dos mais progressistas. Lamenta profundamente a dor causada às vítimas.

Numa conversa guiada pelo riso e pelo sofrimento, o arcebispo de Braga, D. José Cordeiro, fala com desassombro da sua vida, não virando a cara às perguntas mais provocatórias. Não foi para o seminário por vocação, antes queria ser médico ou professor, casar e ter filhos. Apaixonou-se, mas os laços com Deus foram mais fortes. Acabou em Roma, onde se doutorou em Liturgia. Por lá ficou uma década, parte dela como reitor do Pontifício Colégio Português, lugar que herdou do cardeal poeta Tolentino de Mendonça, de quem foi vice. Dizem que quem por lá passa chega rapidamente a bispo – e foi o caso, com apenas 44 anos.

Os tempos que correm parecem não abalar a espessa camada de tranquilidade que o acompanha nos gestos e na voz. Apenas o olhar o atraiçoa. O recente relatório da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja abalou a Igreja. A ele também. Seguir em frente é o seu lema. Foi o primeiro bispo a sair para a rua para pedir desculpa às vítimas. Ganhou a confiança dos fiéis e tem recebido novas denúncias. Não gosta de injustiças e manda recados a quem fala demais.

Que recordações guarda da Páscoa da sua infância?

As minhas primeiras memórias remontam a Angola, onde nasci. Lembro-me de uma vigília pascal, que é a noite mais importante do ano na liturgia da Igreja, numa missão da diocese do Sumbe, na província de Cuanza Sul… A azáfama da minha mãe na cozinha enquanto fazia o folar, tanto o de carne como o doce, o cheiro do cabrito ou do cordeiro pela casa. E a preparação para a visita pascal: na mesa, usava-se a melhor toalha – uma de linho, herdada da minha avó – e faziam-se tapetes de flores à entrada da casa, para receber os padres, que só iam à nossa terra de 15 em 15 dias ou então nas quadras festivas. Aliás, dormiam lá em casa. Era um momento muito marcante na vida familiar.

Os seus pais foram para Angola porquê? Para fugir à miséria em Portugal?

Sim. Os meus pais eram de Parada, em Alfandega da Fé, Trás-os-Montes, uma zona muito pobre. O meu pai tinha veia para o negócio e partiu em 1955, sozinho. A minha mãe era professora e só se juntou a ele 10 anos depois. Ele instalou-se no interior, em Seles, no Cuanza Sul, onde não havia nada. Começou com uma mercearia e depois teve camiões. Na missão, também se dedicavam à agricultura e o meu pai todas as semanas ia a Luanda, onde abastecia o mercado central. Era muito empreendedor. Trabalhou muito e morreu muito cedo – e esse foi um momento que mudou a minha vida. Mais tarde voltei àquela zona e fui convidado a celebrar missa numa capela que o meu pai ajudou a construir, em cima de um morro de pedra. Só no fim olhei a assembleia e disse quem eu era. Foi muito gratificante porque as pessoas ainda se lembravam da minha família e sobretudo do meu pai, que ajudou muito aquela gente. Foi muito reconfortante ouvi-los falar dele. Senti a sua presença.

Sentiu a vocação muito cedo ou era uma criança normal? Há a ideia de que um padre já nasce a rezar…

(risos) A vocação surgiu muito mais tarde. Naquela altura (eu saí de Angola com 8 anos), era uma criança como as outras. Adorava pirão e nunca comia com os meus irmãos. Éramos três. A minha mãe sabia sempre onde me encontrar, pois eu ia para casa de uma das empregadas, onde comia pirão. Adorava aquilo e peixe frito. Brincava com os outros miúdos, não havia diferenças entre brancos e negros. Tenho uma cicatriz debaixo do queixo por ter caído de umas escadas durante uma brincadeira. Andava de bicicleta. Parti um dente, fui mordido por um cão com raiva. Ainda tenho a marca no braço direito.

Um ‘selvagem’, portanto?

(risos) Uma criança normal.

Nunca entrou num quintal do vizinho para desviar fruta?

É possível, não me lembro. Mas havia para lá muita goiaba, maracujá. Não faltava fruta.

O que aconteceu à sua família com a independência de Angola?

Em agosto de 1975, tivemos de sair. Mas o meu pai sempre pensou voltar. Amava Angola e eu também. Aliás, consegui a dupla nacionalidade no ano passado.

Saíram com a ponte aérea. O que recorda desse período?               

Lembro-me de termos saído repentinamente. Fomos para Nova Lisboa, hoje Huambo, onde ficámos na casa de amigos, à espera do avião da Força Aérea portuguesa. E aí tive a imagem mais terrível da minha pequena vida. De repente, estávamos debaixo de fogo e a minha mãe diz para irmos para debaixo da cama, como se isso resolvesse alguma coisa. Tenho a imagem do corredor, que fazia porta com porta, e de uma bala a atravessá-lo de um lado ao outro.

Foi o susto da sua vida?

A seguir à mordidela do cão (risos).

O regresso, para quem nasceu num grande espaço e em liberdade, deve de ter sido um choque.

Fomos para casa dos meus avós, em Parada, uma vila onde não havia a mesma amplitude de horizontes. O modo de viver e conviver era outro, mas depressa me integrei. Chegámos sem nada e só com a ajuda da família foi possível ultrapassar isso. Acompanhar o refazer de vida dos meus pais foi uma lição de vida.

Como ‘deram a volta’?

A minha mãe começou por arranjar emprego num jardim de infância e o meu pai foi tarefeiro da Câmara Municipal de Alfândega. Mas depois chegaram os camiões, vinham em mau estado e o meu pai começou a fazer uns serviços com eles. Mantinha a veia empreendedora e, nuns terrenos dos meus avós, fez uma vacaria.

Entrou para o seminário mal acabou a primária, dois anos depois de ter chegado ao país. Era a vocação que finalmente chegava ou essas necessidades que a família passava levaram a isso?

A vocação só nasceu dentro de seminário e passado muito tempo. O meu pai não queria que eu fosse padre. Como eu era o filho mais velho, preferia que eu desse continuidade ao negócio. Mas achou que o ensino oficial ali na zona não era o melhor. No seminário, não só tínhamos tudo o que o ensino oficial tinha como as regras de estudo, de vida e o desporto. Todo o nosso dia era muito bem preenchido e nos fins de semana também não ia a casa – só nas férias, Natal e Páscoa.

Então não era padre que queria ser?

Quis ser médico, quis ser professor e os meus primos ainda me gozam porque eu queria casar e ter filhos.

O padre é um homem como outro qualquer. Teve namoradas?

Sim. A primeira namoradinha foi ainda em Angola, na escola primária. Era a Natividada (tratava-a por ‘Dadinha’) e era uma coisa de crianças. Mais tarde, o seminário de Bragança já era muito aberto, e, apesar de termos aulas no seminário, íamos prestar provas ao liceu, e aos fins de semana também tínhamos atividades pastorais em várias paróquias – ou seja, convivíamos com raparigas. Com 16 anos, foi o meu momento de maior rutura. Tive outro relacionamento e desta vez mais sério. Mas não era esse o meu caminho. Ainda somos amigos, estive sempre presente na sua história, desde o casamento ao batismo dos filhos. Também passei por um momento mais monástico porque São Bento é o padroeiro da diocese de Bragança-Miranda e foi o fundador do monaquismo no Ocidente e eu quis ser Beneditino. Ainda tenho um pouco essa alma monástica.

No seminário, soube-se do namoro? Não foi questionado se queria mesmo o sacerdócio?

Claro. Na formação sacerdotal, tudo isso era levantado. Já era assim naquela altura. Quando hoje se diz que a Igreja, na formação para a sexualidade nos seminários, não tinha a qualidade desejada, não era bem assim. Em cada tempo, a Igreja foi capaz de responder a esta questão. Não podemos é ter uma visão anacrónica das coisas e querer olhar com os olhos de hoje para o que se passava nos anos 50. E agora essa dimensão é ainda mais cuidada porque, na formação geral para a Igreja Universal, há grandes dimensões em que está articulada toda a formação sacerdotal: a humana, a espiritual e a intelectual. E na dimensão humana inclui-se tudo aquilo que diz respeito ao homem. E isto para que alguém seja considerado com suficiente maturidade para abraçar este ministério – e aqui eu sublinho ‘suficiente maturidade’, porque a maturidade total nunca a teremos. A idade prevista para a ordenação sacerdotal é aos 24 anos e o Papa Francisco até a quer alargar mais. Ora, este acompanhamento não pode ficar na formação inicial de um sacerdote: tem de permanecer porque estamos numa fase não apenas de mudança de procedimentos, tanto na formação inicial como na permanente, mas de mudança de cultura. De uma cultura de transparência, de segurança, da participação, da comunhão, da fraternidade.

Volto à questão da vocação que, como agnóstica, tenho dificuldade em perceber. O que é isso, como soube que tinha sido tocado por ela?

A vocação não é explicável: ultrapassa-nos. É um dom de Deus que exige a nossa resposta e o nosso compromisso, mas é maior do que nós. A vocação é a resposta a um chamamento que pode não ser logo percetível. Comigo, pelo menos, não foi assim. Entramos numa dimensão em que só a fé, e a inteligência da mesma, pode responder. Comigo, aconteceu precisamente aos 16 anos, com a morte do meu pai. Nessa altura, senti que devia de dar continuidade à sua atividade e pensei desistir do seminário. O meu pai marcou muito a minha vida. Depois, com a ajuda dos formadores do seminário e sobretudo da minha mãe, que me disse que, se era essa a minha vocação e se era esse o caminho que Deus queria para mim, estava ali para me ajudar. Estas suas palavras deram-me uma liberdade muito grande para prosseguir.

Nunca mais vacilou na sua fé?

Sim. E aprendi, com a ajuda de pessoas mais experimentadas, que perguntar e duvidar não é mau. Não se pode é permanecer na dúvida a vida inteira. Mas a pergunta acompanha toda a nossa vida e acaba por ser aquela que se segue. Jesus Cristo é a pergunta permanente. E durante a vida essa dúvida aparece, a tentação de seguir outro caminho também, mas a presença de Jesus Cristo, desculpe a redundância, é de tal forma presente que não se encontra mais vida para lá dessa vida. Não há maior horizonte e maior liberdade do que seguir atrás dele. Deve-se estar sempre vigilante e preparado – estar inteiro, como diz o Fernando Pessoa. Mas ser inteiro não me isenta de dúvidas e incertezas. Mesmo nos momentos de grandes tempestades, sente-se a sua presença.

Dê-me um exemplo

Na altura do Natal, fui visitar uma senhora que estava moribunda. Era muito pobre e tudo à sua volta impunha distância, mas ela foi para mim um dos rostos mais luminosos de Deus. Estava tranquila e consciente de que estava iminente a sua passagem, a sua morte. Parecia que via o invisível. Fiquei tão pequenino e arrepiado. Nunca, naquele local, esperaria ter esse encontro tão palpável do rosto de Cristo. Senti que estava ali uma presença maior do que eu e Deus é isso: é maior do que o nosso coração e do que a nossa inteligência.

Havia livros proibidos?

Não havia livros proibidos, mas havia livros recomendados (risos)… o que vai dar ao mesmo. Mas nunca senti que estivesse proibido de ler o que quer que fosse. Sempre li muito, sobretudo quando vim para a Alfândega da Fé, porque passavam por lá as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian e eu requisitava o máximo de livros.

Leu ‘O crime do padre Amaro’?

Li.

Pode fazer a resenha?

Certamente que o escritor partiu de alguma realidade conhecida. Eça de Queirós tinha uma perspicácia crítica, refinada, que é muito importante. Porque esse anticlericalismo, na perspetiva positiva, dá que pensar. Quem lê O crime do Padre Amaro confronta-se com o ideal, com o real e com o querer conviver em simultâneo com a santidade e com a perversidade. E quando tudo isto se conjuga… acaba sempre mal. (risos)

Estamos numa fase em que se tem discutido muito os abusos sexuais de crianças na Igreja. Enquanto esteve no seminário, isto era uma realidade presente?

Com certeza que houve casos, mas eu tenho uma experiência feliz de seminário. E já no Porto, onde estive nove anos como diretor espiritual no seminário, antes de ir para Roma, nunca ouvi falar disso. Nessa altura, nem sabia tão pouco o que isso significava. Não se pode ter a ideia de que, lá por haver casos desses, infelizmente, a Igreja é um ninho de pedófilos.

Leu o relatório da Comissão de Independente (CI)?

Li logo na noite em que nos foi entregue por Pedro Strecht, na véspera da assembleia plenária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), reunida em Fátima para discutir o relatório e apresentar as medidas a tomar contra os abusos sexuais na Igreja.

Como se sentiu?

Senti vergonha, tristeza, humilhação. É uma realidade muito dura, muito trágica. Não esperava. Mas tínhamos de agir, encarar a realidade e o drama da situação e encontrar a saída, a solução que tem de contar com todos. Porque este tipo de violência com as crianças e adolescentes é um problema grave que atravessa toda a sociedade portuguesa e a Igreja em particular e todos somos corresponsáveis. Tínhamos de agir e tornar a Igreja mais segura, mais confiante e, juntos, encontrarmos também a forma de proteger e de formar.

No dia seguinte, na conferência de imprensa da CEP, em que eram esperadas as medidas que os bispos iriam tomar, o debate acabou por afunilar. Pedro Strecht dissera publicamente que havia uma lista de mais de 100 padres abusadores no ativo, quando, afinal, cerca de 40% dos suspeitos já tinham falecido, e a Comunicação Social cercou José Ornelas com essa questão. O que vos foi transmitido, afinal, acerca dessa lista?

Não se falou se havia mortos – e essa foi uma das nossas perplexidades. A reunião foi muito correta e cordial e da nossa parte foi transmitida a gratidão por todo o trabalho realizado. Podia-se, porventura, questionar-se alguma questão metodológica, como alguns fizerem em relação à forma como se chegou à estimativa de quatro mil e tal vítimas, quando apenas havia um décimo de testemunhas. No entanto, há ali uma linha criteriosa e científica, é um estudo.

Confrontados com um número assustador de padres supostamente no ativo, jornalistas, e não só, estavam à espera que os bispos agissem no imediato e, durante a conferência de imprensa, perguntou-se até à exaustão a José Ornelas o que ia ele fazer a esses sacerdotes. Quando ele respondeu que a sua lista só tinha nomes e que era preciso ir para casa trabalhar, muitos pensaram que lá estavam os padres a encobrir de novo os abusos. José Ornelas mentiu? Afinal, como era a lista que vos chegou às mãos?

Claro que não mentiu! A cada bispo foi entregue uma lista de padres que supostamente pertenciam à sua diocese, num envelope fechado. Era suposto ser confidencial. Só quando abri o envelope, é que vi que era uma folha Excel com apenas uma coluna, com nomes. Alguns estavam completos, outros só tinham o primeiro nome e não havia qualquer outra informação. De facto, era necessário sair dali e ir trabalhar.

Confrontadas com a vossa perplexidade, algumas pessoas vieram dizer coisas graves, como por exemplo “os bispos têm elementos suficientes para agir” ou então “eles sabem que nós sabemos que eles sabem”.

Essas afirmações não são de todo corretas! Poderão ter uma parte de verdade. Houve dois momentos importantes nos trabalhos da CI. O primeiro, em que são os próprios bispos que entregam os nomes de sacerdotes que já constam do seu próprio arquivo ao grupo de trabalho. E outro momento, em que a CI, já com os testemunhos das vítimas, se desloca aos arquivos das dioceses para fazer a sua pesquisa. E nessa listagem alguns dos nomes já estavam, outros foram acrescentados com o acesso que a CI teve à nossa informação e também à articulação que tiveram com as comissões diocesanas de proteção de menores e adultos vulneráveis. Porque também houve essa articulação. Porque alguns processos que ainda estão nas comissões não estão nos arquivos. Aqueles que ainda carecem de investigação prévia… Portanto, em relação àquilo que constava no nosso arquivo, nós sabíamos quem eram os sacerdotes. O problema não era esse, mas sim quando surgiam nomes novos. E mesmo em relação a casos que já conhecíamos – por exemplo, de sacerdotes que já tinham sido condenados –, precisávamos de confirmar se os testemunhos da CI eram da época em que o caso correra na justiça civil, ou na canónica, ou se eram dados novos. As pessoas não podem ser julgadas duas vezes pelos mesmos crimes e, por isso, pedimos mais informações à CI. Em relação a dois casos, ainda estamos à espera.

Estes foram os únicos problemas que surgiram?

Houve outros. Por exemplo, o que hoje é a diocese de Viana do Castelo pertencia a Braga e alguns nomes estavam na mesma listagem de Braga. Em relação aos institutos de vida consagrada (que para as pessoas também é difícil fazer a distinção, ou seja, saber os que são diocesanos, seculares e os que são religiosos dos institutos de vida consagrada), também esses nomes vinham misturados na listagem.

Mas não teme, que por tudo isto, alguns bispos se sintam intimidados e que suspendam pessoas inocentes.

Pode haver o perigo, esperemos que não aconteça. Porque para tomar uma decisão dessas tem de haver o mínimo de fundamento e de diálogo com o mesmo. Porque o diálogo sacramental não se quebra mesmo nestes momentos mais duros da vida. O bispo é pai e pastor, é irmão e amigo. Não pode ir na pressão mediática nem na pressão social mas na fidelidade. Nunca pode ser uma decisão solitária tem de ser uma decisão sidonal.

No entanto, essas afirmações da CI deixaram uma imagem negra sobre os bispos que ainda não se ultrapassou.

Por isso, apesar de a CI já não estar em funções, acho que alguém que os representasse devia, juntamente com a CEP, vir esclarecer algumas das perplexidades que se geraram, senão há o risco de se desvalorizar o próprio relatório.

Na sua diocese, em relação à lista que recebeu, os casos já constavam dos arquivos secretos?

Nos arquivos desta diocese – que comummente se chamam secretos, mas que têm muitas outras coisas, como os processos de ordenação, processos de canonização (como o nosso caso da Beata Alexandrina, do padre Abílio ou de Frei Bernardo Vasconcelos) –, os casos ligados a abusos sexuais de crianças já estão separados. Nós já tínhamos casos resolvidos e tratados, alguns que abandonaram o ministério, provavelmente em razão dessa mesma investigação, e outros que foram arquivados e estão resolvidos, a não ser que haja denúncias novas e aí são reabertos.

Mas em relação a dois dos sacerdotes implicados que surgem no relatório da CI, o senhor bispo já tinha tomado medidas antes ainda de ser conhecido o estudo: um foi denunciado à PJ e o outro já tinha sido afastado do ministério sacerdotal.

Sim. Mas o segundo caso, depois de pedirmos mais informações à CI, como havia matéria nova, foi reaberto.

Estamos a falar do cónego da vila de Joane, em Famalicão, que abusou durante décadas de crianças no confessionário da Igreja, um caso que o nosso jornal denunciou?

Desculpe, mas não vou falar de casos concretos.

No entanto, depois de sair o nosso trabalho, não esperou: deslocou-se a Joane, celebrou missa e pediu desculpa a todas as vítimas. Foi ainda aberto um espaço, onde todas as pessoas que tivessem sido alvo de abusos daquele sacerdote se pudessem dirigir para denunciar. Que sinal quis dar?

A Igreja é o corpo de Cristo, portanto, quando um sofre todos sofrem. E nós estávamos a sofrer com aquela situação dramática. Não se tratou de fazer um julgamento de alguém, mas de carregar o sofrimento das pessoas no seu todo e não apenas daquela comunidade paroquial. Eu sabia que as pessoas, naquele momento, não nos iam procurar. Ali, não. Até porque não queriam ser identificadas. Mas sentimos que a nossa presença, uma presença de compaixão, ternura e misericórdia, daria o sinal da nossa proximidade. E as pessoas, mais tarde, comunicaram connosco de outra maneira. Para mim, foi um momento de graça, de bênção.

Disse há pouco tempo, em entrevista à TVI, que ouviu pessoalmente uma dessas pessoas e chorou. É uma carga difícil de transportar…

Essa pessoa falou-me da sua situação com muito detalhe. Penso que fiquei a entender melhor o sofrimento de todas as pessoas que tenham passado por esta ou por outras experiências similares. Mas quando disse que chorei foi no sentido da espiritualidade cristã: lágrimas de sangue, aquelas em que é o coração que sangra. Como é possível isto ter acontecido? A nossa missão agora é acompanhar estas pessoas e reparar todo este sofrimento. Reparar em todas as dimensões, ou seja, em tudo aquilo que trouxer a paz aos seus corações. O perdão sabemos que é impossível obter porque estes crimes deixam marcas muito profundas, sobretudo em pessoas de idade mais avançada.

Em relação a este caso, tal como em relação ao outro sacerdote que o senhor comunicou às autoridades competentes, já havia denúncias ainda do tempo do seu antecessor, Jorge Ortiga, que foram encobertas. O que vai fazer a Igreja aos bispos que encobriram estes crimes?

Em relação a casos em concreto, e como o processo ainda decorre, não lhe posso falar. Mas a Igreja tem de retirar todas as consequências que daí advierem e de ser coerente, ou então não faria sentido. O que vai acontecer ainda é segredo de ofício. Mas na “Voz estis lux mundi” do Papa Francisco (versão atualizada das normas para prevenir e combater os abusos sexuais contra menores e adultos vulneráveis, que introduz mudanças, nomeadamente no que diz respeito à responsabilização dos bispos) fica tudo muito claro. E tudo isso entra em vigor já a partir de 30 de abril.

Tenho informação de que Jorge Ortiga lhe pediu para ficar a residir no Paço. No entanto, está no seminário de Santiago. Já é um aviso à navegação?

O seminário de Santiago tem condições muito dignas para receber um arcebispo. Tem de perceber que há situações de que não devo falar.

O que está a Igreja a mudar para evitar novos abusos?

A Comissão Diocesana de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis, agora presidida por uma advogada e que conta com psicólogos, psiquiatras e forças de segurança, já está a preparar o trabalho de prevenção e formação, de escuta e acompanhamento destas pessoas. Criámos uma bolsa de psicólogos e psiquiatras para acompanhar as vítimas.

Refere-se a médicos privados?

Sim. Estas pessoas não podem esperar.

A CI apostava numa colaboração com o SNS. Não lhe inspira confiança?

Tanto quanto apurámos, há uma demora muito grande no SNS e estas situações têm de ser acompanhadas no imediato. Alguns casos são no próprio dia ou no dia seguinte. Estas coisas não podem ser faladas por estratégia. Porque o sofrimento destas pessoas não pode esperar mais. Já se predisporem a falar é de uma grandeza de coração muito grande. E depois de ter saído o relatório da CI e agora depois de publicarmos a Carta ao Povo de Deus, em que alertamos para o problema, há cada vez mais pessoas a denunciar.

Novos casos?

Também. Por isso, temos um telefone com atendimento 24h, pela Comissão Diocesana de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis. Há muitas pessoas a pedirem ajuda, ainda por cima à própria Igreja. Aliás, como refere o relatório, estas pessoas não se afastaram da Igreja Católica e isso fez-me pensar muito, não só na nossa pequenez, mas também na grandeza do próprio ministério. Só no Centro de Escuta, constituído por dois sacerdotes e uma equipa interdisciplinar, já recebemos 646 pessoas.

E ao nível da formação, o que se está a fazer?

Estamos já a implementar planos de formação para o clero, mas também para os agentes pastorais de todas as nossas instituições, incluindo as IPSS.

A confissão continua a ser feita em locais isolados?

Ainda existe o primeiro modelo, que é a confissão individual e a comunitária. Mas a individual vai passar a ser num local visível. Os locais vão ser modificados na sua arquitetura, mas mantendo a privacidade para proporcionar o sigilo próprio da confissão. Porque há pessoas que ainda preferem o recato da confissão. Ainda neste domingo tive oportunidade de visitar uma paróquia e o padre mostrou-me a alteração do móvel com os vidros, de tal maneira que possa ser tudo bem visível. Aliás, este ambiente tem provocado muitas inquietações. Há sacerdotes a pedirem que seja reforçado o sistema de videovigilância, nomeadamente em sacristias onde há a celebração do sacramento da reconciliação. Isto de forma a que os elementos visíveis da segurança possam transmitir mais confiança às pessoas. E provavelmente teremos de integrar mais coisas.

A Páscoa é condenação, morte, ressurreição. O que pode a Igreja fazer para expiar os seus pecados e para ressuscitar depois do que se passou?

A Igreja carrega consigo os pecados de todos os seus membros, destes e doutros tipos de violência. A estes pecados estamos crucificados e são duros e muito dolorosos de carregar. Porque estas vítimas foram traídas pelas pessoas a quem, na sua inocência, depositaram confiança. É muito duro ouvir dizer a alguém “roubaram a minha inocência”. Que haja membros nossos que atraiçoem essa confiança é uma atrocidade. Como disse o Papa Francisco na “Evangeii Gaudium”, o seu itinerário na Alegria do Evangelho: “Não permitais que nos roubem a alegria!”. E isto é cuidarmos um dos outros, e olhar o outro como terra sagrada. Esta cultura tem de estar cada vez mais presente porque ela faz parte da matriz da Igreja Católica.

A Igreja Católica alemã aprovou o acesso das mulheres ao diaconado, o fim do celibato obrigatório para os ministérios ordenados e a instituição de bênção para casais homossexuais e para divorciados casados. O que pensa disso?

É corajoso o caminho sinodal que a Igreja alemã está a fazer, mas há certas situações e realidades que não podem ser decididas só por um bispo ou uma conferência episcopal, porque a Igreja, na sua catolicidade e conforme se afirma no credo, é una, santa, católica e apostólica. Acredito que nalgumas matérias só possam ser assumidas por toda a Igreja, num concílio. Mas, para isso, como aconteceu no anterior concílio Vaticano II, é preciso que nalguns lugares do mundo e nalguns setores da sociedade haja também uma movimentação. É preciso amadurecer todas estas questões, para que, depois, num dia que seja convocado um sínodo para essas matérias, haver já esse amadurecimento, para que possa ser votado e assumido por toda a Igreja.

Qual é a sua opinião em relação às medidas alemãs?

Em relação ao celibato, a minha posição é que ele é um dom, um compromisso e uma responsabilidade da Igreja. Nós, na Igreja Católica, já temos essa opção, sobretudo na Igreja Católica das várias famílias do oriente, onde já há a ordenação de homens casados. E eu vejo, talvez já não seja na nossa geração, que se possa criar esse caminho de debate para que possa existir a ordenação de homens casados. Aí, à volta dos 50 anos, aquilo que se estabelecer, depois de uma  estabilidade familiar, como acontece já com o diaconado permanente. Relativamente também à ordenação das mulheres é um caminho a fazer. Sempre houve uma certa incompreensão da parte dos fiéis em relação ao facto de alguém, sendo padre, poder casar, mas o contrário foi aceite, ou seja, alguém que já foi casado ser ordenado padre. A menos que tenha vindo, e em Portugal já aconteceu, entre os nossos irmãos cristãos anglicanos ou luteranos que pediram a integração na Igreja Católica e lhe tenha sido concedida, então vem o ‘pacote inteiro’: são casados e têm filhos e assim continuam a exercer o ministério sacerdotal na Igreja Católica. O cardeal Carlo Maria Martini dizia que a igreja estava atrasada em relação ao futuro 200 anos (risos).