Como vê o comportamento da economia? Ainda esta semana, o Fórum para a Competitividade apontou para um crescimento no 1.º trimestre entre 0,1 e 0,4%…
É isso que nos espera. Tivemos um solavanco brutal em 2020, 2021 e 2022, em que houve uma queda e depois uma subida. Agora estamos a voltar ao nosso normal, que é um crescimento baixinho de um e picos ao ano e não parece que vamos sair daí. Podemos dizer que, há quase 25 anos, a economia portuguesa está empatada neste crescimento mole.
Não sai deste rame-rame…
Às vezes, vai um bocadinho acima e chega aos dois, mas não passa disso, quando não nos podemos dar a esse luxo, ainda estamos muito longe dos países da frente da Europa e estamos a ser ultrapassados pelos que vêm de detrás. No entanto, neste momento, não há muitas alternativas pela forma como as coisas estão.
Os dados do Eurostat têm revelado que quase todos os países do Leste estão a ultrapassar-nos. É falta de vontade e de ambição?
É uma atitude geral do país. Não é do Governo, nem da oposição. O país está contentinho. A principal causa desta situação é falta de capital. Não poupamos, estamos virados para o consumo e todos os programas políticos e todos os discursos estão virados para o consumo, não estão virados para a acumulação de capital, nem para a novidade tecnológica, nem para o desenvolvimento. O próprio conceito de desenvolvimento económico, de transformação da economia e de vencer o desafio europeu desapareceu praticamente da retórica das elites. Não estou a falar das elites políticas é de todas as elites. É curioso que esse comportamento encaixou, mais ou menos, na altura, em que atingimos o nível de país rico, em que fomos classificados, como tal, pelo Banco Mundial desde 1996 e, desde então, acabou o desenvolvimento. Temos níveis suficientes para alimentar umas políticas de quem realmente domina e a questão é extrativa, de distribuição. Não é uma questão de avanço e de crescimento. Assim é muito fácil explicar como é que não há desenvolvimento, mas é mais difícil explicar como é que há desenvolvimento.
Não se fala de grandes investimentos e grande parte dos projetos estão muito assentes no turismo…
Mesmo no turismo estamos a falar de pequenos investimentos, não estamos a falar de coisas de fundo. Nem sequer temos uma estratégia geral para o turismo português. Houve tempos em que nos preocupámos com isso antes e depois da democracia, mas não é essa a situação atual. Portugal não está preocupado com isso. De vez em quando, lamenta-se o facto da Roménia nos ultrapassar, mas deixou de ser assunto e o resultado é evidente. De forma geral, os grandes grupos económicos, e que são poucos, estão apostados na internacionalização e é o que faz sentido. De resto são pequenas empresas que aproveitam as oportunidades. Depois lá vêm uns subsídios da Europa para fazer umas coisas que não vão ser essencialmente para investimento produtivo.
É o caso do PRR?
Do PRR e companhia. O Governo tem maioria e as pessoas andam contentes. Isso é uma boa notícia, no sentido em que a maior parte dos outros países estão apostados no desenvolvimento mas, ao mesmo tempo, estão estilhaçados por lutas terríveis. Vemos isso nos Estados Unidos e na Europa, em geral. Portugal não tem isso, é um país pacificado.
Mas temos vindo a assistir a algum descontentamento…
Sim. Há uma zanga com a inflação e a inflação é muito desagradável. Os choques são enormes, mas mesmo assim, o país está muito mais pacífico face a qualquer um dos países à volta. Portugal atingiu um certo nível e está confortável. E isso chega às pessoas. Não estamos a cair, continuamos a crescer, mesmo que seja poucochinho. Isso é suficiente e enquanto assim for continua tudo na mesma. Quem sou eu para dizer que está mal? Claro que depois estamos a ficar para trás e com esta dinâmica, os detrás estão todos a correr mais depressa.
Pode ser suficiente, mas a inflação continua alta, apesar de dar alguns sinais de abrandamento, e os juros vão voltara subir…
A inflação é um fenómeno temporário. Aliás, nem é bem inflação. Isto é um choque brutal dos preços causado por convulsões dramáticas com o fim da pandemia e depois com a guerra, estes dois choques justificam uma explosão de preços. É importante dizer que estamos a chegar a um ano depois do choque, o que quer dizer que, até aritmeticamente as taxas vão começar a mexer e as taxas vão baixar naturalmente. Ainda continuamos com uma dúvida muito importante, em termos globais, é se vamos voltar às taxas estáveis de zero, 2% ou 3% ou se vamos ficar acima. Essa é a dúvida, porque, como sabemos, as taxas de juro estão a subir, os bancos estão a começar a gemer e há neste momento uma ambiguidade muito forte, mas que se ultrapassa daqui a uns meses ou daqui um ano. A generalidade das previsões diz que em 2024/2025, as taxas de inflação voltarão ao normal. É uma perturbação que não é muito grave, mas precisamos de problemas, o que me assusta é este rame-rame, em que tudo parece estar bem e o Governo embandeira em arco com meia dúzia de coisinhas. O que me preocupa mais é a descapitalização que foi também a descapitalização pública e que começa a criar problemas de infraestruturas. Estas dificuldades que estamos a assistir na Saúde, na Educação, etc. tem a ver com o facto de como se reduziu o Orçamento do Governo. Ou seja, baixou-se o défice, foi-se cortando nas despesas de investimento e, sobretudo, nas despesas de manutenção. Então o país está-se a degradar. Vamos ter de começar a pôr a casa em ordem e começar a tratar disso: estradas, pontes, escolas, hospitais, etc.
Para as tais contas certas…
Para as tais contas certas e como nunca quisemos, até hoje, uma verdadeira reforma orçamental também não estou a ver que a vamos querer para pôr as coisas em bons caminhos. A única maneira de fazer é através desta fraudezinha de fingir que está tudo bem e, enquanto o equipamento funcionar, a coisa está bem. Mas vamos começar a ter dificuldades. Os setores começam a gemer e os protestos têm muito a ver com isso. Não há condições e o PRR poderia ajudar, mas também não é para aí que está a ser canalizado e até isso nem sequer se percebeu.
Não se sabe muito bem para onde vai essa verba…
Ainda não se sabe muito bem. Tenho a tese, segundo a qual o dinheiro vai ser distribuído e só depois é que vamos saber para onde. Uma coisa é o que diz a Europa, uma coisa é o programa que apresentámos na Europa, outra é realmente saber para onde é que se vai gastar o dinheiro e isso ainda não sabemos. Já temos experiências do passado, em que arranjamos maneira de começar as coisas de outra forma. A própria Europa está orientada para a descarbonização, para a digitalização, não é para tratar dessas outras coisas, quando o aparelho geral de infraestruturas, não apenas o aparelho empresarial, mas sobretudo o aparelho infraestrutural, está a ser degradado. E isso foi o truque, a maneira como se fingiu que se equilibrava as contas, mas à medida que o tempo passa começa a ser cada vez mais inevitável fazer qualquer coisa, porque não fizemos as reformas estruturais, nem alterámos o orçamento.
Disse recentemente que ‘fazer reformas significava partir a loiça’ e há quem prefira manter tudo como está…
Tem sido essa a atitude que temos há muito tempo. O sistema instalou-se. Tivemos a revolução do 25 de Abril e todos aqueles dez anos de instabilidade e quando acabaram esses dez anos entrámos na Europa e foram criados mais dez anos de instabilidade. Os primeiros 20 anos, a seguir a 1974 foram anos dramáticos de instabilidade. Em meados da década de 1990, 20 anos depois, o país estava estabilizado, já tínhamos democracia, que não estava em risco, estávamos na Europa e não estávamos em risco de sair e, a partir daí, o país instalou-se.
Cruzámos os braços e ficámos todos felizes e contentes…
Ficámos satisfeitos com o que temos. O sistema corporatizou-se, os vários interesses foram-se instalando, cada um ao seu nível, e o Orçamento inchou. Primeiro com o endividamento brutal que estoira em 2011, o que originou a vinda da troika. Aí acabou-se o endividamento. O Governo atual, depois da troika se ir embora prometeu estabilizar o défice. Como é que conseguimos manter os interesses satisfeitos sem haver grandes protestos e não aumentando a dívida que, aliás, continua esmagadora? Através da descapitalização. Estamos a comer capital e a vender as pratas da casa.
Mas quando o Governo começar a ceder, nomeadamente aos professores, a despesa vai começar a aumentar…
Estamos a vender o país às fatias. Já vendemos empresas, terrenos, casas para estrangeiros e depois não temos casa para nós. Portugal está a tentar manter um nível artificialmente elevado de consumo e não é o Governo, é Portugal todo, através da venda das pratas da casa. Isto tem limites. Não vamos continuar assim toda a vida. Deixámos de tratar do equipamento, estamos a deixar degradar o que tínhamos, porque não estamos a investir, nem sequer estamos a tratar da manutenção. Este nível artificial não dura sempre e já é um período longo, estamos a falar de quase 25 anos.
Já era altura de virar a página e de mudar de estratégia?
Era altura de mudar de estratégia, mas não estou a ver que seja possível.
O antigo ministro das Obras Públicas avançou com projetos na ferrovia e novo aeroporto…
Ouvimos falar disso há muito tempo e estão sucessivamente a aparecer ideias. São elefantes brancos que temos desde há muito tempo e que não tem nada a ver sequer com a democracia. Já antes da democracia tínhamos estes elefantes brancos. Essas coisas um bocadinho ridículas. A história do aeroporto já é uma saga e quem diz o aeroporto diz outras coisas. Estamos a brincar e é um bocadinho assustador, porque o aeroporto não é para brincar. É uma coisa importante, tem influência, mas não somos capazes de tomar a decisão. E quando há gente que dá um murro na mesa e toma uma decisão dura dois meses, porque ao fim de dois meses, o murro afinal foi tirado e não vai ser nesse sítio.
Mas não é a primeira vez que isso acontece na história de Portugal, até diria que, este período, é o menos estagnante.
Por uma razão simples: estamos na Europa, as empresas estão integradas e o mundo está a crescer. Não é parecido com os tempos da pimenta da Índia ou do ouro do Brasil ou de outras épocas em que vivemos de rendas e estragámos o desenvolvimento do país. Não penso que estejamos a esse nível, nem podemos exagerar, pois não estamos no Uganda. Portugal não é um país em que há um falhanço económico. Somos um país rico, somos um país desenvolvido, mas que também perdeu a chama, a ideia de risco e de desafio. Os primeiros 20 anos, até meados da década de 90, foram de medo, de susto, de desafio, mas também foram 20 anos de reformas e de estruturação, às vezes, negativas, porque eram resultado de nacionalizações e de destruição de muitos grupos económicos, etc. E depois assistimos à recuperação, à reintegração na Europa, até podemos dizer que o último grande desafio foi a entrada no euro. E aí estagnámos.
Já não vivemos desse tipo de rendas, mas vivemos de rendas diferentes, como as receitas fiscais…
Temos no Estado uma lógica extrativa e de esquartejar as empresas. As empresas são simplesmente carcaças para serem esquartejadas. E ainda temos algum endividamento e alguns subsídios que vêm da Europa. E é com isso que nos vamos alimentando e ficamos todos contentes. Não há uma atitude de nos confrontarmos com os outros países da Europa, de o desafio, do vamos vencer os riscos europeus. Tudo isso já desapareceu e estamos alegremente a ficar para trás sucessivamente.
E com uma carga fiscal elevada…
Com uma carga fiscal que não pára e sempre que dizemos que não pode subir mais acaba sempre por subir mais. Já desisti de dizer agora é que chegámos ao limite, porque consegue-se sempre esmifrar mais um bocadinho e, por isso, não temos sucesso económico, nem somos campeões de desenvolvimento. Até pode ser que nos safemos e porquê? Porque no mundo inteiro vivemos um momento de experimentação incrível, com tecnologias digitais, com mais inteligência artificial e ninguém sabe para onde é que isto vai. Se calhar ficar à espera para ver o que acontece não é necessariamente má ideia, porque pode ser que nos safemos. Já não é a primeira vez que nos acontece isso, fazemos tudo errado e depois no final conseguimos safar até as coisas estabilizarem. Mas é um bocadinho desanimante, sobretudo para os jovens que, ainda por cima, têm outro problema que é o país não estar pensado para eles, está pensado para velhos. Temos o país dominado por velhos. Porquê? Por razões democráticas, os velhos são muitos e votam, os jovens são poucos e não votam. E evidentemente que as políticas, os sistemas, os mecanismos estão todos pensados para os velhos e estamos também com uma queda de fertilidade brutal. Portugal está um bocadinho a estiolar em todos os aspetos, desde demográficos, até financeiros. São fases, não acho que seja o fim de Portugal, não é preciso dizer que é a desgraça e que vai ser a catástrofe. Infelizmente há quem esteja a dizer isso para capitalizar em termos políticos e extremar sem ter soluções, o que me assusta mais. Temos muita gente a dizer mal, muita gente a criticar, mas ninguém a apresentar alternativas. Agora é um período de décadas perdidas. Já vamos na segunda e estamos a caminho da terceira década perdida.
E tem sido intercaladas por diferentes governos de cores políticas diferentes…
Não altera muito.
O PSD com o nova liderança não deveria apresentar uma alternativa?
É muito difícil. O Governo conseguiu com a maioria absoluta satisfazer as pessoas. Teve azar, pois logo a seguir caiu-lhe a inflação em cima, que é uma das coisas mais desagradáveis. Não é das piores em termos económicos, mas é das mais degradantes em termos políticos. Danifica muito porque a subida de preços é uma coisa que irrita muitas pessoas. E Portugal, que tinha já sofrido bastante com a pandemia por causa do turismo, pois sendo um dos países mais ligados ao turismo também fomos um dos que mais perdemos. Logo a seguir levámos com este choque em duas áreas: alimentação e energia, que importamos e ficámos logo aflitos. E embora não estejamos de todo piores em termos de inflação na Europa levámos com uma inflação muito forte. E também houve ali uma grande incapacidade deste Governo. Há aqui um mistério, ao qual não sei a resposta, é que este Governo que tinha sido tão ágil na jogada política – não estou a dizer em termos de resultados do país, porque o país é a pasmaceira do costume – quando estava em minoria, com o o período da chamada geringonça, agora que ganhou a maioria absoluta embruteceu. Não sou capaz de explicar de outra maneira. Só faz asneira atrás de asneira, não apresenta uma ideia com pés e cabeça e, ainda por cima, desdiz-se sucessivamente. Faz disparates atrás de disparates desnecessários e são tiros no pé completamente desnecessários, desde a TAP até ao pacote da habitação, passando por várias coisas pelo meio. Não é normal. O Partido Socialista é um partido que está habituado a estar no Governo, tem bons técnicos e é para mim um mistério perceber o porquê desta aselhice num período que é curtinho. Estamos a falar de uns meses. As coisas estão a correr pessimamente mal ao Governo há um ano e a pergunta é porquê? Não há razão. Não tiveram um choque elétrico na cabeça. Não sei o que aconteceu, mas de repente, só fazem asneiras umas atrás das outras. Vão despedir a presidente da TAP que é uma coisa do outro mundo.
O caso da TAP é um desses casos gritantes…
Há vários elementos diferentes. A privatização foi uma decisão ideológica feita debaixo da troika, não foi bem feita, mas foi feita. A reversão da privatização é outra jogada ideológica, mas foi mal pensada porque, evidentemente, a Europa não quis. E este governo passa pela vergonha de tomar uma decisão muito corajosa de nacionalizar a TAP e logo a seguir toma uma decisão de privatizar a TAP, o que é completamente contraditório. Mas é porque foi obrigado, não foi aselhice do Governo e com isto tudo, o país vai perdendo cada vez mais dinheiro. E isto é ruinoso, não estamos a falar de feijões, estamos a falar de muito dinheiro à volta disto e no meio ainda aparece o escândalo de Alexandra Reis. O escândalo é uma vergonha, não há dúvida, mas era preciso existir só um escândalo, não era preciso existir uma sequência de escândalos, uns atrás dos outros. Uns não sabem, a seguir a senhora tem culpa, afinal não tem culpa. Tudo isto é uma palhaçada e é mesmo de má qualidade, o que não é normal. Pedro Nuno Santos era um bom ministro, diga-se o que quiser – há uns que gostam mais dele, outros nem tanto – mas é uma pessoa que tem experiência, é um tipo que esteve lá muito tempo, que lidou com muitos dossiês, não precisava de sair desta maneira e, ainda por cima, nem sequer saiu quando devia. Aguentou o primeiro embate, depois vai sair no segundo. Se era para sair saía no primeiro. Acho tudo muito estranho
Parece amadorismo?
Exatamente. Se fosse um acabadinho de chegar lá a fazer disparate percebia, mas é uma pessoa que tem uma longa carreira, um tipo combativo, com experiência e fez erros atrás de erros de palmatória. Não consigo perceber, então esta última decisão de despedir a presidente da TAP é de ir às lágrimas.
E que poderá contestar o despedimento…
Como é óbvio. Ainda por cima toda a gente sabia que a senhora estava coberta pelo secretário de Estado e pelo ministro. Não foi novidade posterior. Não foi uma descoberta jornalística depois de ter sido despedida.
E que sempre alegou estar a ser apoiada por um escritório de advogados…
Exatamente e um ministro também tinha de estar apoiado por um escritório de advogados. Agora a pergunta é: ou esses advogados do ministério, imagino eu, são completamente atrasados mentais ou nem sequer os ouviu. Mais uma vez, foi um disparate completamente desnecessário, a não ser e, nesse caso, estou a ser muito cínico, que haja coisas muito piores por detrás e estão a abanar com estas coisas para distrair a atenção. Nesse caso é uma jogada inteligente, pois conseguem concentrar as nossas atenções e tudo o resto desaparece. Estamos a falar da TAP há imenso tempo. Pode ser que seja isso, nesse caso é uma inteligência extraordinária e estão a esconder coisas graves que iremos descobrir, talvez mais tarde. Não sei, é especulação pura. Mas é a única maneira inteligente de poder entender que pessoas com uma experiência política muito significativa, como António Costa, Pedro Nuno Santos, etc. estarem a parecer novatos, acabadinhos de chegar com erros de palmatória que nunca cometeram quando eram novatos.
Marcelo Rebelo de Sousa não devia dar um puxão de orelhas?
Marcelo Rebelo de Sousa já definiu muito claramente como é que se vai apresentar politicamente. A primeira ideia dele é a estabilidade institucional, aliás, é a função do Presidente da República. O Presidente da República não está para fazer política, está para dar estabilidade. Esta era a posição dos seus antecessores. Podemos dizer que o último caso em que isso não aconteceu foi quando Jorge Sampaio demitiu Santana Lopes, em que ele próprio foi a causa da instabilidade, em que um Governo com maioria absoluta foi demitido pelo Presidente e em que as eleições seguintes confirmaram essa decisão. Não penso que podemos contar com Marcelo Rebelo de Sousa para atirar achas à fogueira. O período de Mário Soares e os seus ataques abertos à oposição vacinaram um bocadinho os seus sucessores e mais ninguém quer voltar a fazer aquelas figuras. Mário Soares era Mário Soares, era uma figura histórica e fez uma coisa que todos notaram que era a roçar o vergonhoso, em que ele próprio era a causa da instabilidade política do país. Não é fácil voltar a fazer uma coisa daquelas, nem Marcelo Rebelo de Sousa alguma vez faria isso.
Mas temos agora Cavaco Silva a criticar o pacote de habitação…
Cavaco Silva é um técnico, sabe do que está a falar e não perdoa, nem nunca perdoou. Este caso da habitação é evidente. Mas o Governo tem maioria absoluta, não há nada a fazer. O que é que pode fazer? Pode demitir António Costa? Dissolver o Parlamento? Não é uma coisa que seja razoável, nem parece que tenha lógica. E depois o quadro político está cada vez mais complicado, porque começa a haver alguma tentação de pulverização que não é nada agradável, ainda por cima, uma pulverização pelos extremos. Marcelo mostrou e de alguma maneira também vai servir para vacinar os seus sucessores. Um Presidente de redes sociais, de selfies não cai bem para quem quer estar dois mandatos. E conseguiu, ao princípio, surpreender. Nunca ninguém tinha visto um Presidente a fazer estas coisas, a tomar banho na praia e tirar selfies com os banhistas, mas ao fim de pouco tempo perde a piada e, de alguma maneira, desvaloriza o cargo. Penso que conseguiu provar isso e agora também já não pode voltar atrás. Não é possível. Vamos continuar com esta solução, mais uns tempos e vão-se dar os dois bem. Marcelo já não deve nada a ninguém, sai para uma reforma dourada. E Costa também.
Por ser um Governo de maioria absoluta, tudo indica que o pacote de habitação poderá passar facilmente, apesar de algumas medidas polémicas…
Há uma diferença grande entre a retórica e a realidade. António Costa começou a sua maioria absoluta impante e arrogante, a dizer agora aguentem-se quatro aninhos, mas rapidamente percebeu que funcionava mal e deu muito mau aspeto. Ainda por cima, com estes erros todos que são próprios e não têm a ver com acontecimentos externos. A humildade começou a tornar mais inteligente. A questão é saber até que ponto é que isso é verdadeiro, agora apresenta-se como uma maioria dialogante, mas não se tem visto muito isso. O pacote da habitação é um caso.
Outro exemplo é o cabaz alimentar, que foi anunciado com pompa e circunstância, mas afinal a poupança não é assim tão grande…
Quer o pacote habitação, quer o pacote contra a inflação é querer mostrar serviço sem querer fazer realmente nada. A habitação é um problema grave em Portugal e já é um problema grave há muito tempo. Vários Governos tentaram abordar e não conseguiram. É uma questão estrutural e é preciso ir às causas. O problema é que não querem ir às causas, porque significa afrontar vários interesses instalados que não são fáceis de afrontar e podem provocar zangas. Mas é para isso que serve a maioria absoluta, o Governo devia estar neste momento a tratar o problema da habitação nas causas.
E quais são essas causas?
Tem a ver com câmaras, com os licenciamentos, com os bancos e com o ganho enorme que têm no crédito à habitação. Tem a ver com as construtoras, que estão a ganhar muito com isso e tem a ver com os vistos gold, com o alojamento local, etc. Isto precisava de alguém que olhasse para este setor e a análise está feita, não é propriamente fazer uma descoberta de prémio Nobel, é só ver o que é preciso fazer. O problema da habitação é sempre complicado em todo o lado. É um setor difícil em qualquer lado, mas temos exemplos de sucesso lá fora. O nosso sistema de habitação é particularmente mau. Temos rendas ridículas, temos o mercado de arrendamento praticamente estrangulado. Está tudo na construção e depois as construtoras estão a ser dominadas por interesses que nada têm a ver connosco, porque estamos a vender o país às fatias. E depois não há casas para as pessoas que precisam delas, a não ser longe do centro da cidade. Era preciso mexer nestas coisas, no entanto, é preciso coragem, mas é para isso que serve uma maioria absoluta. Mas o Governo não está está minimamente interessado nisso.
E passa grande parte da responsabilidade para as câmaras, por exemplo, no caso do arrendamento coercivo…
O Governo é muito bom nisto já há muito tempo que é fingir que faz. Mostra serviço e não resolve o problema. Em ambos os casos aconteceu isto. A descida do IVA vai resolver o problema dos cabazes básicos? Não, mas diz-se que sim. Começaram por responder em termos honestos, em que baixar o IVA não resolveria o problema, mas como não tinham mais nada para fazer avançaram com essa medida. O problema da inflação não é grave para pessoas com um certo nível, mas é grave para os pobres. A inflação é essencialmente injusta. Então o que é que precisavam de fazer? Dar apoio aos mais pobres. Há muita gente muito aflita, não só por causa das taxas de juro, mas também por causa da alimentação. Era muito mais barato, até em termos orçamentais, dar um apoio às poucas famílias que necessitam, em que tudo somado é menos do que a totalidade toda, porque quando se baixa o IVA é para para toda a gente. A maior parte das pessoas não precisa da redução do IVA, mas faz grande diferença para os outros e para esses baixar o IVA de 6 para 0% não lhes dá grandes alívios. Mas o ponto não é esse. O ponto é mediático. O ponto é dizer que se fez, que é para as pessoas não acusarem o Governo de não estar a tomar atenção.
Defende então apoios direcionados?
Pensados e dirigidos para resolver o verdadeiro problema social que temos. E nem sequer era preciso inventar muitas coisas novas, porque já fizemos algumas delas na pandemia. A pandemia, sendo um choque completamente diferente da inflação, também foi muito regressivo e afetou sobretudo os mais pobres. Os ricos estavam num apartamento agradável, fechados a falar por zoom e não perderam muito com isso. Os pobres viviam em barracas e, ainda por cima, não tiveram apoios de ordenado porque não tinham acesso aos lay-off, porque eram vendedores ambulantes. Teve de haver apoios para essa gente e agora era montar coisas parecidas. Todos os países da Europa estão a montar coisas destas. Mexer no IVA não é tratar do assunto, é fingir que se trata do assunto.
E isso vai implicar o anúncio de novos apoios daqui a uns meses…
Claro, como é óbvio, tanto que os preços continuam a subir.
O Governo já veio revelar que vai contratar empresas para controlar os preços…
Depois atiram essas coisas, isso é jogada ideológica, em que passa a culpa para os supermercados e para as empresas que estão a encher os bolsos. Vão lá ver as contas. É capaz de haver alguém, mas não é toda a gente. Há muitas empresas que estão estranguladas porque não estão a conseguir refletir as subidas dos custos nos seus preços. Tratar isto simplisticamente, de forma mediática, com muitas medidas, etc. é o método deste Governo desde há muitos anos. Já o conhecemos. Não trata dos assuntos, finge que trata, faz uma coisa para encher o olho, normalmente com muitas medidas pequeninas. E isso não corre bem, porque depois o país fica mesmo com dificuldades.
Acha que há uma obsessão pelas contas certas?
Ter finalmente um Governo, ainda por cima de esquerda, preocupado com a questão do défice é um alívio espantoso. Esta questão do défice foi o fantasma da democracia portuguesa desde princípio do século XIX. Toda a lógica económica, tirando nas ditaduras do Salazar, na troika e no FMI, estivemos sempre com problemas orçamentais, uns atrás dos outros. Felizmente não é isso que acontece hoje. Hoje temos um Governo que está genuinamente preocupado com isto, parece que aprendeu.
E parece que esse discurso foi herdado…
Porque aprendeu da pior maneira. O descalabro de Sócrates que caiu num buraco terrível fez a esquerda aprender que tinha de tratar desse assunto ou então acontecia-lhe o mesmo. O que me assusta não é isso, é a fraude. Ou seja, o Centeno quis-nos convencer que conseguia aumentar as despesas, baixar os impostos e manter o défice, o que é aritmeticamente impossível. Ele era milagroso. Aliás, foi apresentado como tal, sucessivamente, quer cá dentro, quer lá fora. Era um milagre e isso é um disparate.
O Ronaldo das Finanças…
Exatamente o Ronaldo das Finanças. Foi assim chamado. Isso é um disparate, em que houve o mito de que a situação anterior era causada por uma coisa horrível chamada austeridade, causada pelo FMI e pelo Governo de Passos Coelho. Ninguém gosta de austeridade em lugar nenhum do mundo, mas a única maneira de reduzir o défice é com austeridade. E foi o que fizemos. Este Governo de António Costa, desde o princípio, foi muito mais austero do que qualquer outra coisa que tivesse acontecido, tirando o período da troika. É uma austeridade que acontece com a economia a crescer. Ao contrário da troika, que fez uma austeridade com a economia a descer. Isso foi muito mais horrível. E foi esse o truque político usado de dizer que isto é bom porque agora não dói tanto, como doía antes, mas é claro porque a economia estava a crescer. Mas é irrealista. Depois, o que fazia? Baixava-se uns impostozinhos e subiam-se os outros impostos, sobretudo os indiretos: IVA e companhia. E no final, a receita fiscal aumentava. Foi essencialmente à custa da receita fiscal que conseguimos baixar o défice porque a despesa não desceu. Ou seja, carregando mais sobre a economia. Foi esse o truque básico de Centeno.
Daí ter dito que este Governo era o mais austero deste Salazar?
Se tirarmos os períodos de escolta do FMI, que veio cá duas vezes e da troika, na terceira vez, se calhar é capaz de ser. Até se vê pelos resultados, conseguiram descer o défice e muito bem, como ninguém tinha conseguido. Isso só é possível com a austeridade.
Mas agora temos Mário Centeno como governador a dar recados e alertas…
Centeno conseguiu fugir quando devia. Centeno é um bom economista. Sabia perfeitamente que a coisa ia rebentar, saiu antes de rebentar e está a rebentar no colo do seguinte. E Mário Centeno está confortavelmente no Banco Portugal a dizer o que lhe apetece. É uma jogada em termos de carreira, não podia ser melhor. Sair a meio da pandemia foi uma cobardia um bocadinho exagerada, talvez até vergonhosa, mas em termos de carreira percebo perfeitamente a sua jogada. E dominou perfeitamente o processo, não há dúvida que conseguiu um enredo perfeito para se apresentar como mago das finanças. Em termos de culto pessoal foi a melhor jogada de todas. Mas como economista sabia perfeitamente o que estava a fazer e sabia que estava a enganar as pessoas. Primeiro, estava a ser muito austero. Segundo, estava a aumentar essencialmente uma carga sobre a economia, prejudicando o desenvolvimento e cortando nos investimentos, mais uma vez prejudicando o desenvolvimento. Centeno comprometeu o futuro do país para conseguir vender um mito aritmético de que era possível sem austeridade reduzir o défice. E é certo que conseguiu reduzir o défice, mas teve azar que saiu com o défice pior do que entrou devido à pandemia. Foi azar. O que é mau é ter conseguido enganar as populações com o aumento da receita, com o aumento da carga sobre a economia e com os cortes nos investimentos e nas despesas de manutenção que, evidentemente, degradam a qualidade de serviço. O Estado degradou-se, descapitalizou-se durante esse mandato e continuou até hoje. Ao mesmo tempo, do lado privado, a banca e as empresas estão a fazer uma coisa parecida à sua maneira, porque estão a tentar manter artificialmente níveis de consumo, vendendo as empresas ao estrangeiro, reduzindo a poupança e reduzindo o investimento. Estes 25 anos estão a comprometer a situação do futuro e isto foi feito com os olhos abertos. Não foi feito por engano. Foi uma opção e essa opção foi abençoada por uma maioria absoluta. Quem sou eu para dizer que está errado? O país está contentinho, as consequências virão a seguir.