António Saraiva: “Sou um cidadão inquieto e não me vou demitir da minha militância cívica”

De saída da CIP após 19 anos, 13 dos quais como presidente, lembra que viveu crises atrás de crises e conviveu com sucessivos governos. Admite que o período da covid foi o que mais o angustiou e defende que Portugal tem de ‘definir um desígnio’.

O patrão dos patrões abandonou a CIP ao fim de 13 anos de liderança. Passou por várias crises, por vários governos, mas afirma que sai feliz e com a sensação de dever cumprido. António Saraiva assume-se como um cidadão inquieto e diz que a «sociedade civil tem de se indignar com algumas coisas que se estão a passar». Afasta a hipótese de entrar na vida política, mas promete estar atento. E não hesita: «Não estou a gostar da falta de qualidade que estou a pressentir no mundo, na Europa e em Portugal».

António Saraiva afirma que foi a Lisnave e a CIP que lhe deram a espessura enquanto ser humano e garante não trazer mágoas, nem rancor. Quanto à possibilidade de escrever um livro de memórias diz apenas: «Estou hesitante».

Esteve 13 anos à frente da CIP. Que balanço faz?

Se a esses 13 anos juntarmos os seis em que estive como vice-presidente do meu antecessor, Francisco van Zeller, estive 19 anos na CIP e o balanço é forçosamente positivo. E porquê? Porque a sociedade portuguesa e também o mundo sofreram crises e venceram-nas, como vamos vencer esta última, em que nos encontramos: a guerra e os seus efeitos. Quando fui eleito presidente, em 2010, tínhamos a crise das dívidas soberanas, o colapso do Lehman Brothers e todos os efeitos que provocaram, quer económico, primeiro, quer social, depois. O resgate, a vinda a troika, a austeridade, os efeitos sociais e económicos que tiveram na sociedade portuguesa. Depois já estávamos de alguma maneira recuperados e veio a covid-19 com todos os efeitos disruptivos que também trouxe e que, mais uma vez, quer económica quer socialmente, nos afetou. Já estávamos numa lenta e assimétrica recuperação e vem a guerra com todos os seus efeitos. Efeitos que, num primeiro momento, exponenciaram muito alguns custos, como os energéticos e de repente a União Europeia percebeu que estava muito dependente do gás natural russo. O exponencial aumento do custo da energia, do gás natural, dos combustíveis, provocou a perturbação e a interrupção das cadeias de valor ou de abastecimento, assistimos à ausência de matérias-primas e ao seu custo aumentado. Ainda hoje estamos a sofrer de todos esses efeitos. Vivi tudo isto.

Foram crises atrás de crises…

Vivi crise atrás de crise. Vivi com sucessivos governos, desde José Sócrates a António Costa nas duas encarnações, passando por Pedro Passos Coelho. Tive um período que diria riquíssimo sob o ponto de vista pessoal que me deu espessura e ensinamentos, mas foi um tempo desafiante, que fomos vencendo. E a CIP sempre esteve à altura desses momentos, a dar as melhores propostas de solução para esses problemas. Sempre dissemos presente, quer enquanto parceiro social, quer nas várias interações que fomos fazendo com o Governo através dos primeiros-ministros ou dos ministros com quem mais nos relacionamos. Saio com a satisfação do dever cumprido.

Então sai de consciência tranquila?

Estou tranquilo, sereno e com a sensação de dever cumprido, o que nos dá a nós, seres humanos, sempre uma tranquilidade. Até – por que não dizê-lo – com orgulho do trabalho desenvolvido. Não escondo que, como em tudo na vida, nem sempre concluímos os nossos projetos, até porque é uma característica do ser humano estar permanentemente a sonhar, a criar, a projetar e, por isso, há sempre qualquer coisa por cumprir. O lema desta última conferência que realizámos no passado dia 12, com a tomada de posse, era precisamente esse: ‘Cumprir Portugal’. Mas tenho a certeza que estes órgãos sociais, com a liderança de Armindo Monteiro, continuarão a responder eficazmente e a dar as melhores respostas. O que posso dar como insatisfação foi o não ter concretizado uma maior coesão do movimento associativo empresarial. Contribuí muito para a criação deste Conselho Nacional das Confederações Patronais de Portugal e à semelhança de outros países deveria haver uma confederação e não seis ou sete. Não estou a arrogar-me de qualquer direito de que deveria ser A ou B ou a CIP para liderar esse projeto. Era um projeto das empresas portuguesas e de amadurecimento dos empresários.

Para falarem numa só voz?

Ao contrário de algumas vozes dentro do movimento associativo que dizem que não seria desejável, o desafio que deixo, com a experiência com que parto, é que se faça um inquérito aos empresários portugueses, colocando-lhes essa pergunta: se querem manter o estado atual de coisas ou se preferiam uma maior coesão, concentração e força daí decorrente. Se calhar, aqueles que se opõem à ideia encontram aí a resposta.

Sente que foi um trabalho que ficou por fazer?

Lamentavelmente e, da mesma maneira que temos muitas micro e pequenas empresas quando deveríamos ter mais médias e grandes, temos também muitas associações. E isso só nos fragiliza. Portugal tem a dimensão que tem, quer geográfica, quer empresarial, e deveríamos ter a maturidade e a lucidez de perceber que se reduzíssemos em número e se aumentássemos em força só nos beneficiaria. Quando digo diminuir em número não quero dizer diminuir em competências ou em força, antes pelo contrário. Mesmo em competências, trago isso da experiência da Concertação Social, em que temos de dar constantes pareceres sobre as matérias do Governo, o Orçamento de Estado, as contas do Estado, se otimizássemos ou, se no mínimo tivéssemos serviços partilhados, respeitando a especificidade dos setores de atividade – porque o que aflige a indústria pode não afligir outras atividades e o que é bom para o turismo pode não ser bom para a indústria e vice-versa – teria mais força. Por vezes, há algum conflito de interesses, mas à semelhança do que outros países fazem, desde logo por Espanha, esses conflitos são dirimidos dentro das estruturas. Seria diferente discutirmos e chegarmos a um ponto do melhor denominador comum do que estarmos a dar a ideia, como muitas vezes, lamentavelmente, às vezes acontece, em que há posições contraditórias. Tínhamos mais força, os governos respeitávamo-nos mais, assim há a velha máxima de dividir para reinar. E assim nos mantemos.

Recentemente os parceiros sociais abandonaram as negociações com o Governo. Acabou por ser um momento emblemático, ao ponto de o Executivo ter sido obrigado a recuar…

O aspeto que está a referir é igualmente importante que se altere na sociedade portuguesa e nos dirigentes governativos, que é o valor da Concertação Social e o papel do diálogo social. O episódio que recorda foi um desrespeito pela Concertação Social. Porquê? Porque na apresentação da Agenda do Trabalho Digno, o Governo, através da Ministra do Trabalho e da Segurança Social, apresentou-nos 74 medidas que nenhum parceiro, nem patronal, nem sindical, aprovou. Muitas vezes, diz-se que o que é bom com os patrões não é para os trabalhadores e o que é bom para os trabalhadores não é para os patrões, mas nenhuma das entidades, nem sindicais, nem patronais, aprovaram aquelas medidas. O Governo ficou isolado, mas aprovou no dia seguinte 78 medidas no Conselho de Ministros, ou seja, mais quatro do que nos tinha apresentado, mostrando um enorme desrespeito pela Concertação e pelos parceiros que estão representados. Isso levou-nos a essa posição de abandonar temporariamente a Concertação Social, até que o Governo, entendendo o erro, tomasse posições. O primeiro-ministro reconheceu o erro, pediu desculpas e depois de uma audiência que tivemos e dos esclarecimentos necessários voltámos à situação de sempre. Mas foi um episódio lamentável de desrespeito, como outras vezes tem acontecido em relação ao papel da Concertação Social e do diálogo social. O Governo – não apenas este – sabendo que, por vezes, os interesses não são completamente convergentes joga em variável composição do seu interesse com as confederações, cedendo mais a uma e dando mais a outra. E isso fragiliza porque quando uma estrutura confederativa empresarial obtém parte daquilo que reivindica é natural que esmoreça o seu papel reivindicativo. Isto é igual a todos. Não estou a dizer que isso não se passou também na CIP, mas fragiliza-nos e os governos dividem-nos. Costumo usar uma expressão que seguramente já ouviu, que não é minha, mas que repito porque lhe encontro muita valia, que é muitas vezes pensarmos que sozinhos vamos mais rápidos. Esquecemo-nos que juntos vamos sempre mais longe. E é este o objetivo, é irmos mais longe. Parto com pena de não se ter conseguido mais. Sei que a culpa não é só minha, fiz o que pude e soube nesse sentido. Mas é preciso que no mínimo cinco delas concordem e basta uma que não concorde para o objetivo não ser cumprido.

Disse que passou por várias crises, desde financeiras a sanitárias e agora uma guerra. Qual é que achou mais difícil?

A covid-19, porque em relação à crise das dívidas soberanas sabíamos que depois da arrumação do sistema financeiro e das medidas que foram tomadas – testes de stress aos bancos, novas regras de regulação e supervisão – o sistema financeiro ficou mais forte, mais robusto e ultrapassou-se, como se antevia que iria acontecer com mais ou menos dor – e no nosso caso com muita dor, atendendo ao resgate e às medidas da troika. No entanto, era previsível e havia um horizonte temporal de expectativa. A covid-19 foi completamente disruptiva. Era uma coisa completamente nova, nunca tinha acontecido e não sabíamos com o que estávamos a lidar. Primeiro, era preciso máscaras e não tínhamos. Os ventiladores não existiam porque, numa excessiva deslocalização para a Ásia e, desde logo, para a China, ficámos demasiado dependentes. Acordámos abruptamente para essa realidade estratégica de dependência. Depois todas as atividades empresariais foram interrompidas, ficámos fechados em casa, com medo do dia seguinte, com medo da morte, porque a doença inicialmente era fatal, e à espera do milagre das vacinas. A ausência de receitas, a manutenção de custos, as ajudas de Estado e os montantes que eram necessários responder nada disso foi fácil. Isso criou angústia e desespero, em alguns casos. Dir-me-á: e a guerra? A guerra causou estes efeitos sobre a energia, as dependências energéticas, o aumento de custos, a subida da taxa de juro etc., não digo que já tenhamos absorvido, mas já houve um efeito de amortecimento dos seus efeitos com as dolorosas experiências que estamos a viver.

Com faturas elevadas a pagar…

Com faturas elevadas a pagar, não podemos deixar de referir, mas a covid foi a que mais medo trouxe. Hoje podemos pensar que vamos entrar numa terceira guerra mundial, não acredito, muito honestamente, porque o bom senso e a diplomacia se encarregarão que isso não aconteça. Com a covid não sabíamos se íamos contrair o vírus, não sabíamos se sobreviveríamos a este vírus. E o medo, o pânico, que se instalou num determinado momento foi o o que me provocou e penso que à sociedade em geral o maior receio.

Também disse que lidou com vários governos. Com qual foi mais fácil de lidar?

Sem querer ser politicamente correto, mas porque esta é de facto a verdade e o resumo da minha experiência deste exercício de funções é que sempre foi fácil o relacionamento com os sucessivos governos, porque as relações institucionais têm um objetivo que é o de melhorar as condições do país. E esse objetivo foi sempre comum. Se me perguntar pela leitura política e económica de um Governo, de uma determinada cor política, as características pessoais deste ou daquele primeiro-ministro é claro que são diferentes. Há uma matriz diferente, quer do comportamento pessoal e humano, quer do coletivo de um partido ou de uma coligação, como foi o caso de Pedro Passos Coelho com Paulo Portas. Claro que podemos, na perspetiva da melhoria das condições do país, estar mais próximo da visão de uns do que de outros, nem vou esconder isso, mas sempre houve uma facilidade de relacionamento. Agora em função do objetivo, que é o bem do país e para o crescimento económico há visões de atingirmos esse crescimento económico de uma maneira diferente face à de outras. E obviamente que não deixei de constatar naquilo que vejo o que é o mundo, o projeto europeu e o necessário crescimento económico do meu país, que as medidas que foram tomadas no tempo de Governo de coligação PSD-CDS trouxeram melhores condições, numa envolvente diferente, num tempo difícil, do que a geringonça, por exemplo, trouxe. Este foi um Governo muito condicionado, muito refém por questões de ideologia. Ideologia que o mundo já provou estar ultrapassada, com projetos antagónicos dentro do próprio Governo, porque o Partido Socialista, um partido europeísta, com uma visão da segurança através da NATO, que é aquela que em Portugal se insere teve de lidar com partidos que não têm a mesma visão e a mesma estratégia.

Foi no Governo de Passos Coelho que foi aprovada a redução do IRC que depois sofreu um recuo…

Foi aprovada uma redução gradual até os 17%. Saímos dos 23% e ficámos no 21% e lamentavelmente não saímos daí, porque, entretanto, essa reforma foi interrompida pelo Partido Socialista e que tinha sido aprovada por António José Seguro e, numa alteração de visão estratégica, resolveu abandonar o acordo. Ainda hoje está por se fazer uma reforma do sistema fiscal, não apenas do IRC. É o país que está em causa e é a melhoria das condições do país, da sua atratividade e do seu desenvolvimento. Temos de ter uma carga fiscal mais benéfica para as famílias e para as empresas do que a que temos, porque da mesma maneira que é verdade que a carga fiscal sobre as empresas é brutal – temos das maiores cargas fiscais da União Europeia, em termos de IRC e das derramas –, também as famílias estão com uma carga fiscal brutal, que tem de ser revista. Mas é a política fiscal como um todo, não podemos centrar a discussão apenas no IRC, como também é necessário dar a previsibilidade que hoje não existe, porque cada Orçamento de Estado vem alterar o que o anterior definiu e ano após ano temos alterações.

Falou na ideologia assente no Governo da gerigonça. A ideia de avançar com o imposto sobre lucros extraordinários vai nesse caminho?

Um dos combates que a humanidade, no tempo civilizacional que nos encontramos, tem de travar é o das desigualdades sociais. Falamos na transição climática, na digital, mas também temos de travar o combate das desigualdades sociais, porque é nas desigualdades sociais que reside o vírus, o perigo das democracias. As desigualdades sociais alimentam populismos, extremismos e isso é muito mau para as democracias. A questão é como é que as devemos combater corretamente? Não chega demagogicamente ou ideologicamente ou porque é moda ou é o mais fácil. E não é apenas o Governo português também a União Europeia vai atrás desta ou daquela moda, desta ou daquela tendência, desta ou daquela composição do Parlamento Europeu, que num tempo tem uma composição, noutro tem outra. O que quero dizer com isto é que, mais do que medidas avulsas, é olhar para o problema das desigualdades sociais e seus efeitos e encontrar soluções globais, porque se resolvemos o problema dentro do espaço europeu, não o resolvemos em África, nem na Ásia. E depois não nos admiremos dos fluxos migratórios que se vivem, porque quando aqueles que não têm as nossas condições sociais, ambientais, etc. e veem que há algum céu, quando vivem no inferno, também querem vir para o céu. É um combate global que tem de ser travado, com corretas terapias, não é encontrar pensos rápidos.

O cabaz alimentar com IVA a 0% é o tal penso rápido?

É um minorar do problema, porque hoje com a brutal carga que temos sobre nós, em termos de aumento de custos, quer as famílias, quer as empresas têm hoje uma dificuldade acrescida no seu dia-a-dia. E, obviamente, as famílias com estes aumentos de custos têm de ter ajudas e é nesse objetivo que nós, parceiros sociais – aqueles que o subscreveram -– celebrámos o acordo social, em outubro do ano passado. Foi para dar alguma previsibilidade, definindo algumas regras. Desde logo, a melhoria das condições salariais, definindo que, com base nos indicadores que tínhamos, na altura, os 5,1%, os 4,7% e os 4,6%, ano após ano até 2026. Já com esta perspetiva de darmos um horizonte e de combatermos essas dificuldades que os juros e que o aumento de custo de vida estavam a trazer. Mas as coisas têm de ser pensadas em termos globais. As medidas avulsas, como esta do IVA, são uma ajuda, minoram o problema, mas não resolvem.

No seu discurso de despedida reconheceu que saía numa altura em que tem inquietações em relação ao futuro do país. São estas as inquietações?

São estas inquietações de que temos estado a falar e, por isso, a conferência que fizemos teve como lema ‘Cumprir Portugal’ com três definições: dimensão, inovação e internacionalização. São três grandes objetivos que o país tem por cumprir e para que se cumpra, Portugal tem de definir um desígnio. Tem de se perceber o papel de Portugal na Europa e no mundo que hoje é disruptivo, no mundo que hoje nos traz tensões, surpresas, conflitos, numa Europa que ainda não cumpriu o sonho dos seus pais fundadores, porque crescemos em território, mas reduzimos a política, com alguns sinais de desagregação. O Brexit é desde logo o maior exemplo, sem harmonização de algumas matérias, desde logo a fiscal, bancária, etc. Portugal tem de definir o que quer ser, que caminhos quer trilhar e que setores quer apostar. Apostar na economia do mar, melhorar a floresta e rentabilizar estes setores? Sermos um país de serviço ou voltarmos a ser um país com alguma indústria? Se queremos ser um país com alguma indústria, que medidas, que apoios e que canalização de verbas corretamente através do PRR e do PT 2030 se quer dar? Temos que cumprir Portugal neste sentido, de dar uma estratégia de desenvolvimento e, para isso, tem de se fazer reformas que constantemente, ano após ano, Orçamento após Orçamento temos solicitado. E além de solicitarmos temos entregue propostas. E isso exige que as reformas sejam feitas. Quais? As que já falámos, a reforma fiscal, reduzindo-lhe a carga e dando-lhe previsibilidade, a reforma da administração pública – e não é reduzir funcionários como alguns que vêm criticar quando pedimos a reforma da administração – para lhe dar uma maior eficiência. Estamos num tempo digital, há alguns procedimentos redundantes que a tecnologia já ultrapassa para termos uma administração mais amiga do cidadão e das empresas. Uma administração mais ágil, mais funcional, com menor burocracia e menor redundância. E depois a reforma da Justiça, porque continuamos com uma justiça, desde logo económica, com prazos incomportáveis. Feitas estas três reformas, e no desígnio que temos de dar a Portugal, cumprir os três objetivos: dimensão, temos de promover fusões e concentrações das empresas, porque, tal como defendo fusões no associativismo também o país precisa disso. Cerca de 97% das nossas empresas são micro e pequenas empresas. Temos de ter escala, temos de ter dimensão, que esteja melhor em termos de equipamentos, de eficiência, formação e requalificação dos funcionários e gestores. Há um mundo para fazer em termos deste objetivo de dimensão empresarial, dando dimensão, com fusões e concentrações, dando-lhe dimensão nas competências que devem ter. O segundo objetivo é a inovação. Temos de diferenciar os nossos produtos e serviços. Temos de os tornar atrativos numa economia global, hoje todo mundo faz para todo mundo e, por isso, os nossos produtos têm de ser apelativos, têm de ter valor acrescentado e têm de ter inovação. Temos de nos diferenciar de alguma forma e é isso que nos permite o terceiro objetivo, que é a internacionalização. Com uma dimensão mais robusta, com produtos e serviços inovadores temos melhor capacidade de inserção nos mercados. Claro que cada um deles exige terapias objetivas. A inovação exige investimento, o investimento exige capital e as empresas ou têm capital próprio ou têm de recorrer a capital alheio. Daí a necessidade de encontrar novas formas de aquisição de capital, não ficarmos focados só na banca, até porque a banca convencional hoje tem critérios de regulação e de supervisão diferente, por isso, temos de encontrar novas formas de capitalização. O Banco de Fomento, que tem sido um parto difícil, tem de funcionar. Ou seja, há toda uma estrutura, há todo um edifício que tem de ser iniciado e este Governo, usufruindo de uma maioria absoluta no Parlamento, devia fazer essas reformas, que não vão ser feitas numa legislatura. Se calhar vão ser necessárias duas ou três. No entanto, com a maioria parlamentar que Governo goza, com os acordos com os outros partidos que têm assento porque se lá estão é porque merecem o respeito e o apoio de uma camada da população portuguesa, mas no mínimo, os dois maiores partidos PS-PSD, mas repito, não excluo nenhum dos outros para chegar a acordos parlamentares para se iniciarem estas reformas.

Marcelo Rebelo de Sousa atribuiu-lhe a Ordem do Mérito Industrial, a quem expressou gratidão pelos seus 13 anos à frente da instituição…

Senti-me duplamente honrado e emocionado. Quando nos distinguem, quando reconhecem o trabalho que fizemos até aquele momento é sinal de que foi bem feito. Senti-me orgulhoso e emocionado, porque não esperava. No entanto, já tinha passado por essa emoção, o Presidente Cavaco Silva já me tinha dado uma comenda, não sei qual é a hierarquia das comendas, nem isso me importa muito. Sem falsa modéstia, sou mesmo assim, penso que uma das características que me reconhecerá é o ser genuíno, ser legítimo. Cavaco Silva já me tinha dado a Grã-Cruz da Ordem do Infante e agora Marcelo Rebelo de Sousa deu-me esta de mérito industrial. Há uma constância do reconhecimento. Itália também me deu uma comenda e a Universidade deu-me o título de Doutor Honoris Causa. Quando a comunidade académica, quando os Presidentes da República, representando a sociedade portuguesa, me dão este reconhecimento só tenho de estar grato e depois orgulhoso. E sim, com uma lágrima no canto do olho, como diz a canção, não deixo de me emocionar nestas alturas.

Os portugueses habituaram-se a vê-lo na televisão e tem sido conhecido por ser o patrão dos patrões. Acha que vão estranhar a sua ausência?

Gostaria que isso não acontecesse. Armindo Monteiro está na CIP há 19 anos, entrou comigo, acompanhou-me na minha presidência. Liderou a ANJE [Associação Nacional de Jovens Empresários], tem um conhecimento do mundo empresarial e do mundo científico, um conhecimento de vida, um caráter que todos nós, aqueles que apostámos em fazer este desafio que felizmente aceitou, conhecemos-lhe essas características e sabemos o que contamos. A CIP teve até hoje sempre a pessoa certa no momento certo. A CIP vai continuar a ter a pessoa certa neste tempo que hoje, sendo incerto no final.

Que memórias vai guardar?

Não vou esconder que tive episódios que gostaria de não os ter vivido, porque me desiludiram, desagradaram-me e fizeram-me infletir a minha relação com essas pessoas. Mas desenvolvi ao longo da minha vida, que já vai longa, estou com 69 anos, uma metodologia mental. Na Lisnave, onde iniciei como sabe a minha vida, depois de ter andado a bordo nos barcos, baseei toda a minha vida no planeamento. Isto deu-me uma estrutura mental muito exigente em termos de método, de rigor, mas também gavetas. Tenho uma cabeça muito bem compartimentada. Aprendi ao longo da vida a fechar e a isolar até as coisas menos boas. E como já não tenho tanto tempo de vida como aquilo que já vivi, quero que o tempo que me falta seja de felicidade e depois de ter passado por um episódio difícil em 2012, que quase me levou a vida, isso veio reforçar esta minha filosofia de vida. A felicidade é qualquer coisa que persigo. Sou um homem feliz. Estou feliz com a minha família, com os meus amigos, com a vida que levei e com a vida que tenho. E por isso anulei esses maus episódios. Fiz tudo com gosto, com felicidade, às vezes, com sacrifício pessoal. Saio feliz, tranquilo e sereno e essa felicidade advém de não ter rancores, de não ter ódios desta ou daquela natureza.

Daí ter dito que tem a grande máxima de que devemos sair quando os outros querem que fiquemos. …

Foi o que fiz. Estou a sair num tempo em que os outros queriam que ficasse. Quando aceitei este mandato, o último que fiz e que já foi extraordinário, os meus pares tiveram de alterar os estatutos para que isso acontecesse. E alguma maledicência acusou-me que teria sido eu a fazê-lo para me perpetuar, espero que agora mordam a língua. Logo, nessa altura, disse que só faria três dos nove anos que seriam possíveis. Foi que fiz.

Vai sentir falta desta vida ativa?

Sou um cidadão inquieto e não me vou demitir da minha militância cívica. Sou um cidadão inquieto e defendo que nós cidadãos temos de ser ativos e participativos. A sociedade civil tem de se indignar com algumas coisas que se estão a passar. E não chega indignarem-se, têm de participar. Já que estamos a falar de frases, gosto também muito de uma que também conhece seguramente, que é a que diz que quando os governantes perdem a vergonha, os governados perdem o respeito. Não quero que a sociedade portuguesa chegue à falta de respeito. É tempo de atalhar caminho. É tempo de nós cidadãos, na nossa cidadania ativa, participativa exigirmos e participarmos. E por isso, estarei como cidadão inquieto, a participar naquilo que puder, mas não na base, nem na maneira como o fiz até agora. Sob esse aspeto quero ter mais tranquilidade. Não vou ter muito mais tempo livre, porque ser presidente da CIP não é um projeto de vida, fui desenvolvendo as minhas atividades profissionais paralelamente e agora terei mais tempo para elas.

Diz que, como cidadãos, devemos estar atentos. Como vê esta instabilidade em torno do Governo e das polémicas atrás de polémicas?

Inquieta-me e não é apenas uma questão da sociedade portuguesa e da realidade política portuguesa. O mundo tem hoje um défice de liderança e esse défice leva aos episódios mundiais que estamos a assistir e a tudo aquilo que é hoje o perigo que isso provoca, como o aumento dos populismos e dos extremismos. E isso é generalizado. Na própria União Europeia, onde é que estão aquelas figuras que, independentemente de gostarmos mais de umas do que de outras, como os Helmut Kohls ou os Mitterrands? E mesmo na sociedade portuguesa, onde é que estão os Sá Carneiros e os Mário Soares? É evidente que os tempos são outros, as pessoas são outras, cada pessoa no seu tempo, mas a verdade é que sou desse tempo. O que é verdade é que me habituei a essa qualidade. E quando nos habituamos à qualidade, quando perdemos alguma – não estou com isto a acusar ninguém em especial – depois sentimos a falta dela e não gostamos. Não estou a gostar da falta de qualidade que estou a pressentir no mundo, na Europa e em Portugal.

Um desses exemplos é o caso da TAP?

É paradigmático, desde logo aqueles que os cometem não terem o bom senso, o caráter de não cometerem, deveriam ter consciência de que aquilo não pode ser feito. Depois, quem tenta tapar o erro que os seus pares fizeram da maneira como se tenta tapar, como se estivessem a tirar a poeira para os olhos dos portugueses, como se fôssemos todos idiotas. Há que assumir responsabilidades e tirar daí conclusões. E é isso que, lamentavelmente não vejo, porque errar é humano. Aprender com o erro é inteligente.

Chegou a ser convidado para a política. Essa inquietação não poderia ter levado a aceitar esses convites?

Gosto muito de política e o cargo de presidente da CIP não deixa de ser um cargo político, queiramos adjetivá-lo assim ou não, mas é assim é, mas o exercício político, quer associativo empresarial, quer partidário, quer autárquico não. Quero no tempo que me falta, seja ele qual for, a vivê-lo de outra forma.

Então não se arrepende da sua decisão?

Não e não quero parecer contraditório. Não posso, por um lado, dizer que temos de participar e de ser exigentes e depois demitirmo-nos dessa participação. O que digo é que enquadrado naquilo que conheço hoje e naquilo em que os partidos se tornaram – muito reféns de determinados jogos de interesse, muito fechados sobre si próprios, com lógicas por vezes estranhas, no sentido de que não se percebe qual é o efeito desejado – não faria sentido. Tenho um espírito demasiado livre para ser arregimentado, tentarei ter essa atitude cívica, onde estou neste momento, em associações cívicas, a participar, a propor soluções, a entregar documentos e a exigir reformas nesse sentido cívico de participação, mas não no exercício político da ação.

Também já admitiu que o lhe deu espessura enquanto ser humano foi a Lisnave e a CIP…

Sem dúvida. Obviamente que tenho os meus projetos profissionais, quando comprei a minha empresa ao grupo José de Mello, depois de ter sido diretor e administrador da mesma, fi-lo em condições difíceis, porque não tinha capital suficiente para o valor que foi negociado e a única vantagem que agradeço foi o tempo que me deram para o pagamento, em que fui pagando em suaves prestações. Foi um risco, mas também foi uma conquista pessoal. Arrisquei, ousei, concretizei e isso tem obviamente muita satisfação pessoal. Mas, em termos de dimensão humana, em termos de um conjunto de valores, de aspetos, de leituras ganhei espessura nesses dois momentos e, por isso, estou grato à vida por me ter criado essas duas oportunidades que aceitei, podia ter passado ao lado. Por um lado, a liderança da comissão de trabalhadores e por ter salvo aquela empresa, porque o que me levou à comissão de trabalhadores da Lisnave é que caminhava inexoravelmente, por questões partidárias e sindicais, para a falência, pondo em causa oito mil postos de trabalho diretos, além dos indiretos. Contribuí para o primeiro acordo social que se fez neste país para salvar aquela empresa da falência e tenho muito orgulho em o ter feito. Houve negociações que se fizeram com o Governo, trabalhadores e administração, horas e horas, até chegar a um acordo e ser aprovado. Foi de facto um curso universitário. Tirei uma licenciatura, que nunca tive. Depois estes 13 anos de liderança, com todo o conhecimento, com todos os dossiês, com todas as conversas, fóruns em que participei quer cá dentro, quer lá fora, todo este mundo de conhecimento e de interações. Sou um animal social, gosto muito de pessoas. Todas as pessoas que conheci e tudo aquilo que aprendi com cada uma delas deram-me esta espessura que sinto hoje como ser humano que tenho, que me dá suporte, pilares para o resto dos meus tempos. Quando lhe dizia lá atrás e repito que hoje sou uma pessoa resolvida e feliz, tem a ver com todas essas dimensões, com estas minhas experiências e, sobretudo, com esses dois grandes pilares que me deram consistência.

Como parceiro social, esteve presente com duas estruturas sindicais. Alguma vez lhe reconheceram esse mérito de ter feito o primeiro acordo social numa empresa?

Sim, uma delas: a UGT, que foi parte ativa já nessa altura. Sempre me reconheceu através dos seus líderes, Torres Couto, na altura, João Proença e agora os mais recentes. A CGTP, que terá as suas razões e justificações, tem sido sempre muito mais crítica. Às vezes, por desconhecimento da realidade dos factos, recebi algumas críticas injustas e até maldosas. Mas como disse não alimento ódios, mas isso não impede, curiosamente, que tenha criado com os seus líderes uma relação pessoal muito bem conseguida. Mantenho com Manuel Carvalho da Silva uma excelente relação pessoal. Sempre tive com Arménio Carlos uma relação pessoal de respeito e consideração. E com Isabel Camarinha, independentemente das posições em que nos encontramos, há um respeito pessoal, embora haja diferenças institucionais. Mas não guardo rancores. Há um episódio curioso, no ano passado, fui a um congresso da AHRESP que se realizou em Coimbra e estacionei o carro numa ruazinha e quando vinha a pé para o local do Congresso estava uma manifestação da CGTP à porta. Vejo uma das pessoas, que me pareceu ser o líder, a afastar-se da manifestação e percebi perfeitamente que vinha ao meu encontro. Pensei ‘Bom, lá vou ter um debate de ideias’. Abordou-me com muita educação e perguntou-me: ‘O António Saraiva é de Ervidão’?. Disse que era alentejano de Ervidão e ele disse-me que também era e que me queria dizer cumprimentar. Foi um aperto de mão de patrícios. Achei curioso.

Está a pensar em escrever, por exemplo, um livro de memórias?

Estou hesitante. Talvez o faça, mas não sei.