Por Daniela Soares Ferreira e Sónia Peres Pinto
Como vê a situação da Saúde em Portugal?
Com grande apreensão. Para já, estou um pouco em linha com a avaliação do diretor executivo do Serviço Nacional de Saúde (SNS), em que ele próprio afirmou que estávamos a atravessar aquele que era o período mais delicado do SNS, desde a sua criação. E concordo com essa análise. Em primeiro lugar, por um motivo conjuntural, em que atravessámos uma década e meia muito difícil. Em 2008, Portugal sofreu uma crise económica e financeira que teve, infelizmente, um impacto muito negativo sobre a Saúde, em que foram feitos desinvestimentos e cortes muito profundos que prejudicaram o acesso dos doentes aos serviços de saúde, nomeadamente ao SNS. Depois tivemos uma crise sanitária, a mais importante que o mundo atravessou nestes últimos 100 anos, que foi a pandemia covid-19, mas que teve uma particularidade, focada numa patologia. Não estou a dizer que isso não tivesse de ser feito, mas todas as outras áreas, como sabemos, acabaram por ser colocadas de lado, nomeadamente no diagnóstico, tratamento e no seguimento. Temos hoje muitas pessoas, infelizmente, que não foram diagnosticadas atempadamente e sabemos como estão as listas de espera. A Entidade Reguladora da Saúde publicou recentemente um relatório e revela que a lista de espera para as cirurgias e para as consultas de ambulatório tinham aumentado nestes últimos anos. Neste momento, o SNS está com enormes dificuldades e precisa de uma reforma profunda. Não sabemos muito bem o que está a acontecer com o SNS, se está a ser reformulado ou não, porque há mudanças que são muito importantes, nomeadamente esta disseminação das ULS [Unidade Local de Saúde] ao longo do país. Não sabemos se são decisões pontuais ou se fazem parte de um plano desconhecido do Ministério da Saúde para a reforma do SNS. No entanto, o impacto tem sido muito grande e levou, do meu ponto de vista, a dois ou três aspetos que são muito preocupantes para o futuro do SNS. Em primeiro lugar, é a falta de condições de trabalho que existem nos hospitais e nos centros de saúde e isso reflete-se em vários aspetos, prejudicando a qualidade dos cuidados às pessoas. Por outro lado, assistimos a uma assimetria nacional muito importante e muito grave. Esta falta de condições também leva à desmotivação dos profissionais de saúde e muitos deles saem para o setor privado, para o setor social e outra parte sai para a emigração. E uma pequena parte, felizmente ainda pequena, mas que existe, abandona a profissão precisamente por esta grande desmotivação e pelas dificuldades que o SNS tem neste momento.
E há solução à vista para resolver o problema do SNS?
É necessário apelar à responsabilidade de todos. Em primeiro lugar, do Ministério da Saúde/direção executiva do SNS. Em segundo lugar, à responsabilidade dos médicos e da Ordem dos Médicos. Tenho plena consciência deste sentido de responsabilidade e o país precisa de uma Ordem forte, independente, com capacidade para construir e apresentar soluções. Esta nova direção, que tem pouco mais de um mês, já pegou um conjunto de dossiês, alguns deles relacionados com a atualidade, outros eram projetos de candidatura para levar a Ordem a um patamar diferente e à sua modernização.
Que dossiês são esses?
Um deles diz respeito a uma maior modernização e maior capacidade de intervenção por parte da Ordem dos Médicos e que passa por um projeto anunciado na apresentação da candidatura, que é uma espécie de estados gerais. A ideia é pormos todos os médicos a falar sobre saúde, a dizer quais são os seus problemas do dia-a-dia, o que é que dificulta a sua intervenção e a apresentarem soluções. Depois faremos uma grande reunião de convenção para analisar todos esses dados para apresentar um relatório ao Ministério da Saúde. Será o contributo da classe médica para a melhoria da saúde em Portugal, porque entendemos que, infelizmente, o poder político tem sido incapaz de tomar as decisões corretas para não deixar degradar o SNS. Depois, há um conjunto de outras medidas, como o Gabinete de Apoio ao Doente, por exemplo, onde vamos demonstrar essa abertura em várias áreas, nomeadamente à sociedade civil. Não me esqueço daquela que é a primeira missão da Ordem dos Médicos, que é estatutária e está inscrita nos seus estatutos, que é defender a qualidade da saúde, os doentes, os médicos. Obviamente, o nosso foco é a defesa da qualidade dos cuidados de saúde.
O presidente do SNS disse recentemente que o sistema está em rutura e está a ser posta em causa a sua própria sustentabilidade por estar a ser gerida há 50 anos da mesma forma. O que pode ser alterado?
Não sei se está a identificar propriamente os problemas do Serviço Nacional de Saúde. Em relação a essa análise confesso que esperaria que o Ministério da Saúde e a própria direção executiva do Serviço Nacional de Saúde contasse com todos os intervenientes e com todos os agentes do setor. Os médicos e a Ordem são uma parte importante, mas não foram chamados para essa discussão. Era importante o Ministério da Saúde ter a humildade de perceber que tem de falar, em primeiro lugar, com quem está todos os dias no sistema e está a ajudar à sobrevivência do sistema.
Com quem está no terreno…
Exatamente e isso não tem acontecido. Depois estamos também num processo de acumulação de problemas. Estes problemas têm ocorrido ao longo de décadas, sobretudo nos últimos 15 anos, devido, como já disse, a um desinvestimento financeiro no SNS. Sabemos que, pelo menos, nesses últimos anos tem havido um aumento do orçamento para a Saúde, mas ainda está abaixo das recomendações da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] para este setor, que é 6% do PIB. E 6% do PIB é importante, porque depende da riqueza do país. Se for mais rico tem um PIB mais elevado e esses 6% irão representar uma fatia muito maior. Se for menos rico, esses 6% representarão uma fatia menor. Neste momento penso que estará à volta dos 5,8%. Mas mesmo que contemplasse, estamos, nestes últimos anos, a acumular um défice orçamental do SNS e a um défice de competência de gestão, em que não houve previsão, por exemplo, dos recursos humanos. Não é compreensível que o Ministério da Saúde não saiba exatamente quais são as áreas de maior carência, em termos de recursos humanos médicos, quais são as especialidades, quais são os hospitais, quais são os centros de saúde para poder fazer uma previsão e um planeamento a médio e a longo prazo. O Ministério da Saúde não sabe ou se sabe não aproveita esse conhecimento, porque aquilo que temos ideia é que esta planificação que é feita há anos é uma espécie de navegação à vista.
E vamos assistindo a demissões atrás de demissões nas direções dos hospitais…
Por falta de condições para poderem exercer adequadamente e para respeitarem as boas práticas médicas. Por exemplo, já estamos a viver há praticamente um ano o problema das maternidades e das equipas de ginecologia/obstetrícia. Quando surgiu esse problema, apareceu como se fosse uma surpresa, como se não pudesse ter sido previsto. É óbvio que o Ministério da Saúde tem de fazer um levantamento e perceber que áreas tem problemas. E depois há outras áreas que estão também neste momento a atravessar imensas dificuldades e que, mais dia menos dia, vão dar sinais de rutura. É muito estranho que, ao fim de nove meses, o Ministério da Saúde, ou melhor, a direção executiva do SNS, nos venha dizer que vai manter exatamente a mesma fórmula e esta não é a forma ideal para gerir as maternidades. Tudo indica que, pelo menos até ao verão, irá continuar a manter essa forma.
O Ministério poderá alegar falta de profissionais e daí manter essa estratégia…
Obviamente que há falta de profissionais de ginecologia/obstetrícia no SNS, mas o que o Ministério da Saúde deveria ter feito atempadamente seria criar condições para fixar os médicos no Serviço Nacional de Saúde. E não é por falta de aviso. Há largos anos que a Ordem tem contactado o Ministério da Saúde para chamar a atenção para o grave problema que há em determinadas especialidades e para a importância de mudar um pouco o paradigma do SNS, tornando-o mais competitivo e mais atrativo. Eu próprio fiz uma intervenção que felizmente teve alguma consequência e fico muito satisfeito por isso, agora como bastonário, para alertar o Ministério da Saúde que tinha à sua disposição mais de 1 300 médicos de jovens especialistas. Na área de ginecologia e obstetrícia tinha 28 recém-especialistas e era muito importante dar um sinal de que os queria contratar. Não deu nenhum sinal, mas os hospitais privados e da área social, como as Misericórdias, deram imediatamente o sinal até antes de terem feito os exames finais de internato, a 31 de março.
Não foram contactados por inércia ou por falta de condições financeiras?
Por inércia total, por incapacidade de planear atempadamente e por incapacidade de tornar o SNS atrativo e competitivo. Os médicos – e é a experiência que tenho – querem trabalhar no Serviço Nacional de Saúde. Agora, se o SNS não dá um sinal que os quer e se as pessoas querem desenvolver o seu projeto de vida, querem ter uma carreira, querem um local para poderem trabalhar não podem esperar. Felizmente, o ministro da Saúde, e tenho de reconhecer isto, não são só críticas negativas, atendeu ao apelo da Ordem dos Médicos. Abriu 900 vagas nos cuidados de saúde primários e isso é muito importante. E para ver as suas carências basta ver onde é que há utentes sem médico de família. E onde isso acontece abre-se uma vaga. Sabemos que Lisboa tem 900 mil utentes sem médico de família, mas todas as pessoas são iguais, independentemente de estarem em Lisboa, no Alentejo ou no Algarve, ou seja, onde for.
Mas o Governo prometeu acabar com essas falhas e até deu prazos…
Esse prazo não só não é respeitado, como há cada vez mais utentes sem médicos de família. A estratégia do Ministério da Saúde falhou redondamente. Chegámos a ter, salvo erro, à volta de 700 a 800 mil utentes sem médico de família e, neste momento, temos mais do dobro. Temos 1,6 milhões de utentes sem médico de família. Lamento, não é uma surpresa, havia dados a dizer quantos médicos é que se iam reformar e quantos existiam com mais de 65 anos e, por isso, nos próximos dois ou três anos se vão reformar. No entanto, houve outro aspeto muito importante que foi o facto de o Ministério da Saúde dar um sinal de que quer estes 1 300 médicos especialistas, em que os hospitais podem-nos contratar de forma autónoma e de forma imediata. Isto é um sinal completamente inédito, completamente diferente daquilo que conhecíamos nos anos anteriores. Mas é preciso continuar a dar condições ao SNS para conseguir atrair médicos, que são necessários ao país e são necessários em várias áreas, em várias especialidades e em vários locais do país. Há uma outra questão que está a ser tratada com os sindicatos para tornar o SNS atrativo e valorizar a carreira médica que diz respeito à questão da grelha salarial. Esta é do âmbito da negociação sindical, não tem a ver com a Ordem dos Médicos, mas há um aspeto que está relacionado com a área dos médicos que é a dignificação da sua profissão médica e que também passa por vencimentos que sejam compatíveis com a elevada diferenciação e responsabilidade que os médicos têm no SNS. E depois há outros aspetos importantes, como a formação médica, isto é, a capacidade que o SNS tem de dar uma boa formação médica e dar condições para os médicos especialistas poderem ter tempo e condições adequadas para ensinarem os médicos mais jovens, assim como a capacidade que o SNS para permitir a investigação dos médicos. Isso é um aspeto muitíssimo relevante para os médicos, porque se interessam pelo desenvolvimento científico e tecnológico da Saúde. Mas é preciso ser feito tudo em conjunto.
Em termos remuneratórios, qual é a diferença entre quem está no SNS e no privado para a mesma especialidade?
Sou médico do serviço público. Apesar de ter tido convites frequentes para ir para o setor privado, esse apelo nunca me seduziu, apesar das condições que me foram oferecidas no privado terem sido muito mais favoráveis do que as que me foram oferecidas no setor público. O privado andará sempre um pouco à frente do público. Depende, obviamente, depois dos médicos que são contratados e da sua especialidade. Mas conheço relativamente bem o que é a realidade médica de todo no país e o primeiro motivo nunca é a questão remuneratória. O primeiro motivo diz sempre respeito à falta de condições para tratar os seus doentes e essa é que é a grande preocupação dos médicos. Obviamente que depois acaba por aparecer a questão remuneratória, mas nunca é o primeiro motivo. Os médicos querem trabalhar no SNS, disso não tenho dúvidas nenhumas, mas querem ter condições para o poder fazer.
Falou das maternidades, mas também disse que havia outras áreas onde pode existir rutura. Que áreas são essas?
A medicina interna está, neste momento, a atravessar um momento de enorme dificuldade. Estou muito preocupado. Todas elas são importantes. Longe de mim, como bastonário, dizer que algumas são mais importantes do que outras, mas é reconhecido que a medicina interna é um pilar dos hospitais. As pessoas vivem cada vez mais anos, temos muitas pessoas idosas e muitas delas são portadoras de várias patologias, em simultâneo. A medicina interna tem um papel muito importante na resolução desses problemas. Aí também aponto o dedo à direção executiva do SNS, não que seja responsável, mas porque não está a fazer nada para resolver, em que temos um sistema muito ‘urgênciocentrico’ – um neologismo -, muito baseado na urgência. A medicina interna, neste momento, é quem dá grande parte da resposta da urgência e estou a ver os internistas a não aderirem ao SNS, ou a acabarem a sua especialidade e irem-se embora. Muitos deles nem sequer querem entrar para essa especialidade. Por exemplo, as vagas de medicina interna, até em Lisboa, não foram ocupadas. Isso é uma coisa completamente impensável. É haver candidatos que preferem não escolher uma vaga do que escolher uma num local que não desejam. Isso não acontecia no passado. Isto é uma realidade que estamos a conhecer nestes últimos dois anos. Tive uma reunião com o Colégio da Medicina Interna e se já estava alertado para este problema, com essa reunião fiquei ainda mais preocupado, pois temos um conjunto de hospitais que têm cada vez menos internistas e, portanto, com cada vez menos capacidade de dar uma resposta adequada em termos de cuidados de saúde. E vamos enfrentar períodos difíceis. Não venha agora a política dizer que desconhecia que vamos ter um verão ou que tivemos um período de inverno onde há maior incidências de infeções respiratórias. O pico do verão é sempre um período difícil para assegurar os serviços. Vou falar nesta questão à direção executiva do Serviço Nacional de Saúde e sobre o que pode vir a acontecer nestes próximos meses se determinado tipo de especialidades – a medicina geral e familiar é uma delas -não tiver o problema resolvido ou atenuado para podermos fazer face àquilo que aí vem nos próximos meses.
O ideal é não ficar doente nos próximos meses…
Graça Freitas, na altura da pandemia, pediu às pessoas para não adoecerem. Não posso obviamente pedir isto, mas posso pedir ao Ministério da Saúde e à direção Executiva do SNS para olharem para este problema, que tem sido ignorado completamente. Se a direção executiva do SNS continuar a olhar somente para aqueles problemas que aparecem na comunicação social podemos vir a ter problemas muito graves e com impacto mais grave do que os que temos sentido na ginecologia/obstetrícia se a questão da medicina interna não for rapidamente resolvida.
Mas as urgências continuam a ser uma das situações mais críticas com muitas horas de espera…
Enquanto apostarmos na urgência como modelo de resolução dos problemas de saúde dos portugueses não iremos a lado nenhum. Mas há outras áreas que estão desprotegidas, nomeadamente, a questão da saúde pública, que está a ser completamente esquecida na criação das unidades locais de saúde. Não sabemos exatamente o que está a ser feito.
O diretor do SNS fala nisso como a solução para todos os problemas…
Só ouço falar de saúde pública quando acontece uma calamidade. Quando apareceu a legionella, a saúde pública é muito importante, quando se falou na iminência da entrada em Portugal de determinadas doenças inflamatórias, a saúde pública é muito importante. Mas depois quando temos de tomar decisões e temos de dar maior força e maior capacidade de resposta à saúde pública não acontece absolutamente nada. Uma das propostas que irei fazer a Fernando Araújo é de incluir nos conselhos de administração, além do médico hospitalar, do médico de medicina geral e familiar, um médico da saúde pública. E faz todo o sentido nas ULS, porque abrangem um determinado território, onde haverá uma integração dos cuidados de saúde nos seus vários níveis. Quando falamos de cuidados de saúde pomos no mesmo saco a saúde pública e a saúde geral e familiar e isso não pode acontecer. A saúde pública trata da saúde do ponto de vista comunitário, em que aposta muito na promoção, na prevenção da saúde na comunidade, enquanto a medicina geral e familiar atua também nestas vertentes, mas diretamente no utente. O problema é que a ideia que se tem é que há uma espécie de força centrípeta que vai absorver todos os cuidados para o hospital. E não digo que não tenha de haver cuidados hospitalares, mas não é na urgência que o vamos resolver.
Álvaro Beleza disse recentemente que os centros de saúde não podem continuar a funcionar com um horário de repartição de finanças…
Temos de perceber muito bem o que é medicina geral e familiar e temos de trabalhar à luz daquilo que é a evolução da medicina e das suas especialidades. O entendimento que temos hoje de medicina geral e familiar não é o mesmo entendimento que tínhamos há 20 ou 30 anos ou 40 anos, em que existia uma coisa diferente, que era clínica geral. Por exemplo, uma pessoa estava com uma dor de garganta, ia ao centro de saúde e estava à frente de um médico que não o conhecia e que lhe passava uma receita. A medicina geral e familiar hoje não é isso. É um médico que tem um ficheiro de utentes que, em muitos casos, ultrapassa os dois mil, em que conheço o meu médico, telefono-lhe, mando um email porque me dói a garganta. Ele sabe quais são os meus problemas, sabe o que posso e o que não posso tomar. Quando há uma urgência obviamente que a pessoa tem de ser encaminhada para o serviço de urgência. Mas a resolução deste problema é mais complexa do que isso. A solução milagrosa não é abrir os centros de saúde até à meia noite. É certo que, a nível nacional, cerca de 45, 46% – 48% em Lisboa – dos casos, segundo a triagem de Manchester são branco, azul ou verde. Isto significa que à partida, na avaliação inicial, não é um caso urgente. Portugal está em último no relatório da OCDE sobre esta matéria. Portugal é um dos países com mais episódios de urgência de todos da OCDE, muito à frente do segundo que é Espanha. Temos mais de seis milhões de episódios de urgência por ano e somos pouco mais de 10 milhões de habitantes. Não há nenhum país no mundo que aguente uma pressão destas. É impossível. Esta configuração foi-se criando e foi-se permitindo que toda a resposta em termos de saúde fosse feita na urgência. É completamente errado, quando só à volta de 8, 9% dos casos é que levam a internamento. Haverá outros casos urgentes que são logo trabalhados na urgência, mas acabam por ter alta. A esmagadora maioria não é urgente e deveria ser tratada noutros locais. Mas para isso temos de fortalecer os cuidados de saúde primários. Todos os portugueses têm de ter médico de família e capacidade, obviamente, para esse médico de família lhes dar resposta. As pessoas vão às urgências porque há atrasos nas cirurgias, nas consultas nos hospitais e como as situações das pessoas vão-se agravando têm de ir à urgência. Mas há um outro aspeto também muito importante que é desvalorizado. No Dia Mundial da Saúde fui a Abrantes ao hospital e à Santa Casa da Misericórdia e soubemos que o serviço de hospitalização domiciliária e a Santa Casa da Misericórdia de Abrantes estavam a estabelecer um protocolo para terem vagas para a hospitalização domiciliária. Falo nisto por causa da questão dos lares que é uma questão muito importante. Tem de haver formação nos lares. Quem lá trabalha são pessoas extraordinárias, mas infelizmente não têm formação, quando deviam saber tratar de pessoas que, muitas vezes, têm muitas doenças. Há 40 ou 50 anos quem ia para os lares ia pelo seu próprio pé. Hoje vão de maca. São pessoas que precisam de cuidados de saúde.
Casos de tensão alta, diabetes, etc…
Estive nos lares na altura da pandemia, vi como é que as coisas eram feitas e percebi que havia uma grande falta de formação. Portugal, felizmente, em termos de hospitalização e em termos das infeções hospitalares evoluiu muito, mas tivemos um conjunto de formações nos hospitais e nos centros de saúde para saber como é que se tratavam os doentes. Muitas situações são evitáveis, muitas situações podem ser tratadas nos lares tendo um médico. Devia ser obrigatório todos os lares terem um médico e não é.
Mas isso implicaria custos acrescidos…
Do ponto de vista da qualidade da saúde era importante os lares terem um médico. Sei que pode haver dificuldades financeiras, mas nem todos as têm. Para resolvermos o problema grave que o país tem em termos de cuidados de saúde temos de resolver o problema da urgência e do pós-urgência. São os tais internamentos sociais, em que as pessoas se mantêm num hospital quando deviam estar num lar ou no seu domicílio. A questão dos cuidadores informais é outra questão que o próprio sistema devia ser muito simplificado para podermos ter mais pessoas com esse estatuto. O Estado devia apostar nos cuidadores informais que prestam um serviço ao país absolutamente extraordinário. É um outro SNS que está a acontecer na casa das pessoas e estas deviam ser valorizadas porque isso tem um impacto muito grande sobre as suas vidas. Depois há a outra parte relacionada com a questão da urgência, que é a promoção e a prevenção em saúde. Temos de explicar às pessoas quando é que têm de se dirigir à urgência e quando é que se dirigem ao médico de família, ou quando têm de ficar em casa com medicação de fácil acesso, como um ben-u-ron, um paracetamol, um analgésico, um antipirético. O país tem de apostar na literacia, na responsabilização do cidadão e na cidadania para as pessoas não recorrerem à urgência quando têm um problema.
Mas Portugal é conhecido por muitos portugueses se automedicarem…
Estou a falar de coisas simples. Temos, neste momento, serviços de urgência maiores do que alguns hospitais. Temos serviços de urgência onde trabalham mais médicos do que em determinados hospitais deste país. Isto não pode ser. Não podemos centrar tudo no serviço de urgência. Sei que para quem toma as decisões é a coisa mais fácil que é remeter tudo para a urgência e para dizerem que há sempre um local que pode atender tudo. Não pode. Há um local que pode atender situações urgentes, situações hospitalares que merecem um atendimento urgente e há situações que têm de ser encaminhadas adequadamente para os serviços hospitalares e para os centros de saúde. Agora se o SNS não é atrativo, não consegue ter médicos de família, se o SNS centraliza tudo na urgência, retira os médicos das consultas e dos internamentos e se os doentes não têm consultas têm de recorrer ao serviço de urgência. E o que está errado na construção destas ULS é que se esquece que este não pode ser o modelo e que temos de partir este círculo vicioso de recorrer cada vez mais à urgência. Quando uma urgência tem um problema, o que é que se faz nesse país? Constrói-se uma urgência maior. E o que é que vai dar? Daqui a alguns anos essa urgência maior – porque há mais oferta – vai ter de ser ainda maior. E não pode ser. Temos de ter urgências adaptadas àquelas que são as necessidades do país, mas da urgência que merece ser atendida num hospital.
Já disse que o SNS não estava preparado para a crise pandémica e que o Ministério da Saúde não aprendeu nada com a pandemia. O que poderia ter sido feito de forma diferente?
Estive no terreno dentro e fora do hospital. Na altura, no Ébola e de outras infeções, o SNS definiu um conjunto de circuitos, mas quando apareceu a covid-19, esses circuitos já não existiam. Podiam ter sido aproveitados. Recordo-me perfeitamente de ter definido um conjunto dos circuitos no meu próprio hospital e de salas de contenção. E quando apareceu a covid-19 já nada disso existia. Estavam ocupadas com gabinetes, com salas de espera. O país tem de estar preparado para isso, mas não está neste momento, porque não se avaliou o que foi feito na pandemia. Uma coisa tão simples como tentar perceber o que é que fizemos e até podemos chegar à conclusão que fizemos tudo bem. O que tem de se fazer, sem nenhum receio, sem nenhum pudor é avaliar a resposta à pandemia e perceber o que pode ser melhorado e o que deve ser mantido.
Foi tudo decidido em cima da hora…
Durante a pandemia foram os hospitais que por si deram a resposta. Não houve uma voz de comando. Houve uma, duas ou três vozes que apareceram perante a comunicação social e ao país, mas de comando não houve. No início da pandemia, os hospitais tiveram de fazer um plano de contingência e o último que foi feito foi o da Direção Geral de Saúde, quando deveria ter sido o primeiro. Todos os hospitais começaram a dar resposta sem que houvesse voz de comando e andámos a flutuar nos vários surtos, em que houve hospitais que começaram a dar uma resposta à pandemia e outros mantinham uma resposta a todas as patologias. Houve comboios a várias velocidades. Talvez não se saiba, mas os hospitais não estavam ligados. Começaram a estar ligados quando alguém se lembrou de criar – e isto é responsabilidade do Ministério da Saúde que não coordenou – um WhatsApp e foi assim que conseguiram fazer a transferência de doentes.
A eutanásia vai voltar ao Parlamento. O que está à espera?
Como médico, não sou favorável à eutanásia. Sou contra por vários motivos. Isto tem a ver com uma reflexão muito ponderada que fiz ao longo da minha vida sobre este tema. Nem sempre foi esse o meu pensamento, mas depois de algumas décadas como médico, deixei de ser favorável à eutanásia. Mas quero que se respeitem as vontades das pessoas. Temos uma lei, que terá de ser aprovada e o papel da Ordem dos Médicos e do bastonário é de respeitar todos os médicos que representa. Há médicos que são favoráveis – respeito, obviamente, porque é uma lei do meu país – e há médicos que não são favoráveis. Nestas matérias, que são matérias de consciência individual deve haver o direito de objeção de consciência. É isto que irei sempre defender. Quem não quiser praticar ou ajudar a praticar a eutanásia tem de ter o direito de não entrar neste processo. Agora, como bastonário, tenho de respeitar todas as posições dos médicos e irei obviamente respeitá-las e respeitar a lei do meu país.
É novo na pasta. Foi ao encontro do que estava à espera ou está a ser mais exigente?
Tenho por hábito entregar-me muito aos desafios em tudo aquilo em que me meto. Este desafio é muito maior do que estava à espera. Há muitas oportunidades de melhorar o funcionamento da Ordem internamente e de contribuir para o país positivamente e de ajudar o país a desenvolver-se nesta área. A Ordem dos Médicos tem um horizonte muito alargado, precisamente para poder contribuir para a melhoria do Serviço Nacional de Saúde, para a melhoria da saúde na sua globalidade. Tenho muita consciência daquilo que é o meu papel como bastonário. Se tivermos uma visão da saúde exclusivamente focada nos hospitais e nos centros de saúde vamos cometer um erro gravíssimo.
As queixas contra os médicos dispararam no ano passado e deu uma média de cinco processos por dia. Como analisa estes números?
Estes números têm de ser muito bem analisados, mas há um primeiro aspeto, não desvalorizando as queixas, é que temos cada vez mais médicos. Todos os anos temos à volta de 2 500 médicos novos. É natural que havendo mais médicos haja mais queixas. Por outro lado, temos de perceber muito bem que queixas são estas e qual é a sua natureza. Falei há pouco da pressão que tem existido sobre o SNS, em que há um descontentamento, nos utentes, nos acompanhantes destes doentes que, perante a falta de condições, a falta de resposta do SNS – falamos do atraso, das consultas, dos atrasos nos diagnósticos – e, muitas vezes, estes acabam por transferir esta insatisfação e este descontentamento para quem lhes aparece à frente ou para quem acham que é o responsável máximo. E como os médicos lideram as equipas de saúde, acabam, muitas vezes, por serem vistos como responsáveis. Penso que esse aumento tem a ver com isso. Não encontro, muito sinceramente, outro motivo. Porque em relação à exigência da formação médica, Portugal nunca foi tão exigente com a formação dos seus médicos.
Mas surgem muitos casos de negligência médica…
Há mais casos. Mas a Ordem tem tido, nesse aspeto, também um trabalho exemplar. E o facto de os médicos terem tido sanções e de serem expulsos só prova que a Ordem está a fazer o seu trabalho. Provavelmente nunca a Ordem dos Médicos foi tão célere a responder a uma situação de denúncia pública como foi agora com a questão de Faro. Estamos a falar do fim de semana de Páscoa. Soube da situação e imediatamente na segunda-feira anunciámos a constituição de uma comissão independente. Estou perfeitamente consciente daquilo que está a acontecer. Estou em contacto com os médicos, com o hospital e nada foi deixado para trás. Tudo está a ser investigado e a Ordem dos Médicos depois, quando todos os factos estiverem apurados, será exemplar na sua atuação. Isto é, cumprirá integralmente com aquilo que é o seu parecer estatutário principal, que é a defesa da qualidade dos cuidados de saúde.
Criou um canal informativo para denúncias. Que canal é este?
Comecei logo a tratar disso porque é um dos aspetos que me preocupa. Queremos que os cuidados de saúde sejam feitos com segurança e com qualidade. Esse canal de queixa, de notificação é um canal importante. Está a ser criado. Não quero avançar com nenhuma data, mas vai ser muito rápido porque está praticamente concluído. Não é um canal para denúncias anónimas. É um canal que vai garantir a confidencialidade e o anonimato. É um canal de denúncia. A pessoa tem a opção de se querer identificar ou não. E é completamente seguro. Estamos a ver isso em termos informáticos para depois ser analisado por uma pessoa que há de ser um médico, um jurista, para percebemos a natureza da queixa, percebermos se é uma queixa à Ordem dos Médicos, se é só para a Ordem dos Médicos ou se tem que ser para a Ordem dos Médicos e para outras entidades que também têm responsabilidades na matéria. E depois vamos fazer outra coisa, que estamos a fazer com os nossos juristas, que é um guia para a denúncia, para a notificação para todas as pessoas, médicos e não médicos, saberem exatamente como é que têm de fazer essas queixas. Para quê? Para serem adequadamente colocadas e para serem tratadas o mais rapidamente possível para não se perder tempo.
Como classifica a sua relação com o Ministério da Saúde?
Sou de relações sempre muito fáceis e muito cordiais. Não tenho nenhum problema em relação a isso, mas disse uma frase na minha tomada de posse, que acho que pode resumir muito bem isto: ‘Não contem comigo para o conflito permanente, mas contem comigo para ser permanentemente exigente’. Vou querer colaborar com o Ministério da Saúde, não vou querer estar em conflito permanente com o Ministério. Quero ajudar no desenvolvimento da saúde no nosso país, mas nunca deixarei de ser exigente. Serei completamente impermeável a qualquer tipo de pressão que não tenha a ver com aspetos técnicos. Tudo o resto não me importa. Para mim, o importante são os aspetos técnicos e de qualidade da saúde. E aí o Ministério da Saúde, o Ministério da Justiça, o Ministério da Defesa Nacional, todos os outros que tenham relações com médicos podem contar perfeitamente com a Ordem dos Médicos.