Augusto Santos Silva é um veterano na política. Um “faz tudo” que convém ter sempre à mão. Talvez por isso os líderes socialistas tenham sempre gostado de o ter por perto. Quem o conhece reconhece-lhe a frieza, a capacidade de adaptação e o sentido de humor.
Mas há outra característica que se destaca de todas as outras e pode justificar a sua influência e o facto de se ter tornado ministeriável para pastas tão distintas como a Educação (2000-2001), Cultura (2001-2002), Assuntos Parlamentares (2005-2009), Defesa Nacional (2009-2011), ou os Negócios Estrangeiros (2015-2022): a sua preparação intelectual.
Esse é, aliás, um dos seus traços que faz questão de referir sem embaraço em todas as entrevistas que dá. “Sou um dos poucos intelectuais que não têm pejo em dizê-lo”, assumiu, em 2001, ao Diário de Notícias.
Licenciou-se em História na Universidade do Porto, doutorou-se em Sociologia no ISCTE e fez a agregação na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, onde é professor catedrático desde 2005. É também aí que pretende terminar a sua atividade profissional, quando atingir a idade limite de jubilação. Ou pelo menos esse foi o argumento que deu quando admitiu querer sair do Executivo de António Costa em julho de 2021.
Abandonou os Negócios Estrangeiros com o recorde de 15 anos como membro do Governo. Foi a pessoa que mais anos passou na governação desde o 25 de Abril, tendo a sua estreia acontecido pela mão de António Guterres, em 1999, como secretário de Estado da Administração Educativa, para depois ser escudeiro de José Sócrates, até se sentar à direita de António Costa, como seu número dois.
O malhador Há outra particularidade no seu perfil político: a sua combatividade, por vezes agressiva e dada à polémica. Algo que contrasta com a imagem pública que quis criar quando era chefe da diplomacia portuguesa, mas cuja natureza acabou por voltar a vir ao de cima quando foi elevado a segunda figura de Estado.
Foi em 2009, no primeiro Governo Sócrates, quando era ministro dos Assuntos Parlamentares, que uma das suas declarações menos diplomáticas lhe valeu o epíteto de “o malhador”.
“Eu cá gosto é de malhar na direita e gosto de malhar com especial prazer nesses sujeitos e sujeitas que se situam, de facto, à direita do PS e são das forças mais conservadoras e reacionárias que eu conheço e que gostam de se dizer de esquerda ou plebeia ou chique, estou a referir-me ao PCP e ao Bloco de Esquerda”, terá proferido numa reunião no Largo do Rato, onde estava em discussão a situação interna do PS em vésperas do congresso que reelegeu Sócrates como secretário-geral do partido. Longe estava de imaginar que havia de integrar um Governo suportado por esses dois mesmos partidos.
Numa entrevista recente à CNN Portugal, deixou transparecer alguma contrição pelas palavras que usou na altura: “Hoje, devo dizer que não usaria esse tipo de frases porque o ambiente mudou muito”. Mas essa contundência verbal sempre causou incómodo nos adversários. Francisco Louçã, que era líder do Bloco de Esquerda, viu nessa defesa acérrima do Governo Sócrates uma imagem daquilo que Santos Silva também foi no Parlamento: “O martelo de Sócrates” ou “o bulldozer” do Executivo, como apelidou em declarações ao Público.
Nesse testemunho, o antigo líder bloquista acrescentaria ainda que a frase descrevia o que era o PS na maioria absoluta. “[Santos Silva] fazia a defesa do Governo com convicção e grande competência e era extremamente agressivo do ponto de vista político.” Não é, por isso, de estranhar que tenha recuperado o mesmo estilo, agora que é presidente da Assembleia da República, quando se sentam 156 socialistas no Parlamento entre os 230 assentos destinados aos deputados.
Apesar de agora ter elegido o Chega como o seu principal alvo, mantendo o nível de fricção que marcou a troca de palavras de André Ventura com o seu antecessor, Ferro Rodrigues, será o seu apoio de sempre a José Sócrates que mais persistirá na memória. Em 2007, quando tutelava a Comunicação Social, com a proliferação de notícias sobre o caso Freeport, Santos Silva usou a expressão “jornalismo de sarjeta” para designar a comunicação social adversa ao então primeiro-ministro. Em 2009, numa entrevista ao Jornal de Notícias, denunciou “a tentativa de assassinato político e moral de José Sócrates”.
Numa metáfora sua, Santos Sil va era como que “a primeira trincheira da defesa do Governo, uma espécie de cão que guarda a casa”.
Como Jane Birkin o atirou para o trotskismo Acusado de “tiques autoritários dos tempos do trotskismo”, antes de vestir a pele de socialista, demorou anos a admitir que a esquerda revolucionária “não fazia sentido”.
Foi na década de 70, no velho Cinema Estúdio, no Porto (cidade onde nasceu em agosto de 1956), que despertou para a política. O motivo seria a má experiência que teve quando assistiu ao filme Blow Up, de Michelangelo Antonioni, quando se apercebe de um corte entre um fotograma em que Jane Birkin aparecia a desapertar um botão e outro onde já aparecia a apertá-lo. Foi essa frustração com a censura que levou à formação de “uma consciência política”, revelou num artigo no Público anos mais tarde.
Nos tempos de liceu, integrou os Comités de Ação Liceal da União Operária Revolucionária, organização da extrema-esquerda que mais tarde viria a fundir-se na Liga Comunista Internacionalista (LCI), onde militava Louçã, mas que Santos Silva não chegou a integrar.
O desencanto com o trotskismo surgiu já quando leu um livro no qual se provava a responsabilidade de Trotsky no massacre dos marinheiros na revolta de Kronstadt. Aproximou-se então do Movimento de Esquerda Socialista, ditando o seu caminho de aproximação do PS. Nesse percurso, as eleições presidenciais de 1985 são decisivas. Na primeira volta, Santos Silva apoia Maria de Lourdes Pintasilgo, que ainda hoje diz ser a sua “grande inspiração”, juntando-se depois à campanha de Mário Soares na segunda volta.
Só em 1987 é que pediu a adesão ao PS, que só foi aceite em 1990, uma vez que o seu processo teve de passar pela direção nacional, por ter sido membro do Movimento de Unidade Popular, que se formou para apoiar a candidatura presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho, em 1976.
As bicadas controversas Santos Silva está longe de ser uma figura consensual. Até mesmo dentro do PS. Quando ainda estava longe de pensar em ser número dois de António Costa, disse que o agora primeiro-ministro teria ainda “de comer muita broa para chegar ao Governo”.
Considerado um ativo político de primeira importância, é apontado como um dos nomes que poderá protagonizar uma candidatura agregadora de toda a esquerda a Belém, em 2026. Mas o seu vasto percurso político andou sempre de mãos dadas com episódios controversos.
O caso das filmagens no Parlamento e respetiva divulgação pela própria ARTV a propósito da sessão solene de boas-vindas ao Presidente do Brasil, foi apenas o exemplo mais recente.
As câmaras de filmar já tinham sido inconvenientes para Santos Silva em 2016. No jantar de Natal do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, a 22 de dezembro, o então ministro dos Negócios Estrangeiros dirigiu-se ao seu colega com a pasta do Trabalho e Segurança Social, Vieira da Silva, congratulando-o de forma irónica pelo acordo conseguido na Comissão Permanente de Concertação Social para o valor do salário mínimo: “Ali o Vieira da Silva conseguiu mais um acordo! Ó Zé António, és o maior! Grande negociante… Era como uma feira de gado! Foram todos menos a CGTP? Parabéns”.
Essa também não foi a única vez em que a linguagem o tramou. No final de junho de 2015, quando era comentador da TVI24, na rubrica Os Porquês da Política, recorreu às redes sociais para criticar as diversas alterações do horário do programa, acusando a estação televisiva de estar “farta de comentadores inscritos em partidos políticos, como já lá tem fartura que chegue de inscritos no PSD, não precisa de um inscrito no PS”.
O espaço de comentário acabaria por ser cancelado, tendo o então diretor de informação da TVI, Sérgio Figueiredo, num artigo de opinião, confirmado que Santos Silva já não era mais comentador, “mas por ser malcriado, não porque a sua voz é incómoda”.
Em resposta, Santos Silva, que era então deputado, escreveu um artigo apelidando Sérgio Figueiredo “o ayatollah de Barcarena”.
Não espanta que ainda hoje no Parlamento use da sua artilharia verbal para desferir ataques à “maturidade política” da oposição.