Estamos na Costa da Caparica, na casa de Victor Bandeira, um apartamento repleto de recordações trazidas das suas viagens e com uma vista soberba para o Atlântico. «O mar era a minha paixão de criança. Estando em frente à água estou sempre feliz», diz-nos Victor, que tem carta de marinheiro e chegou a ser proprietário de uma traineira.
Na primeira parte da conversa, a propósito da segunda edição do livro Porque Não? (a primeira esgotou num ápice), falámos sobre a sua infância e juventude, em que foi trapezista, sobre como começou a vender antiguidades e sobre as suas primeiras viagens por África. Numa delas, por causa da sua longa barba, ele, que nunca teve religião, chegou a ser confundido com Jesus Cristo.
«Andava nos Bijagós [arquipélago na Guiné] de ilha em ilha, até que cheguei a uma, chamada Caravela, onde soube que estavam uns americanos que trabalhavam numa plataforma de petróleo», recorda. «Fui visitá-los, eram cinco ou seis e convidaram-me para almoçar. No meio do almoço perguntaram-me o que fazia, e eu lá lhes expliquei. E eles disseram: ‘Ah, então já percebemos o que a missionária nos contou’. Era uma missionária inglesa – mais tarde cheguei a conhecê-la – que andava a apregoar o regresso de Cristo à Terra. Quando chegou a essa ilha, depois de contar a história de que Cristo ia aparecer um dia destes e como ia ser bom, eles [os nativos] responderam-lhe: ‘Já veio. Esteve cá na semana passada e comprou uma data de velharias!’. ‘Manga de sacalatas’, como eles dizem».
Nesta segunda parte da entrevista, vamos saber o que Victor Bandeira viu e fez nas suas andanças pelo Brasil, Indonésia e Japão.
Como veio parar à Costa da Caparica?
Foi uma altura em que cheguei a Lisboa e não tinha logo para onde ir. Era muito amigo do Raul Solnado, que tinha esta casa e a outra aqui ao lado, e ele disse-me: ‘Fica na minha casa’. Não vinha à Caparica há não sei quantos anos. Quando cheguei ao prédio e o vi lá de fora achei isto horrível. Mas vim e achei curtido estar a morar em frente ao mar. Ele não gostava de estar aqui. Vinha de trabalhar no teatro e o som do mar irritava-o. Queria vender o apartamento e eu comprei-lho. Vim para aqui por acaso. Foi uma felicidade, adoro estar em frente ao mar, estava mesmo à minha espera. Já estou aqui há 40 anos.
Com muitas viagens pelo meio, imagino.
Com muitas viagens pelo meio.
Dizia-me, então, que foi o Jorge Dias, o fundador do Museu de Etnologia, que lhe pediu para ir ao Brasil.
Foi ele. Disse-me que gostava de ir ele, mas estava velho. E eu fui. Foi, aliás, a única viagem que fiz ao alvitre do museu, todas as outras sou sempre eu que invento.
Teve de fazer muitos preparativos?
Tinha aqui amigos muito simpáticos na embaixada brasileira. Um arranjou-me uma bolsa do Itamaraty [Ministério das Relações Exteriores brasileiro], para eu ir lá procurar objetos para o museu. Essa bolsa dava para pagar a viagem de avião. Depois cheguei ao Brasil e tinha que ir ao Itamaraty pedir umas cartas de apresentação, para os governadores das províncias, para o Serviço de Proteção aos Índios, para me darem um espaço de carga nos aviões do correio aéreo. Tinha que levar muita coisa, porque fazer trocas é uma loucura. Cheguei ao Itamaraty e encontrei lá uns diplomatas todos muito finos – tinha de levar casaco e gravata, e no Brasil quem usa casaco e gravata é logo ‘Senhor Doutor’. As primeiras cartas de apresentação que me fizeram diziam: ‘Exmo. Sr. Dr. Fulano Tal’. Depois viajei, voltei lá e pedi mais cartas. Já era: ‘O Ilustre Professor não sei quantos’. A última remessa das cartas já não tive coragem de mostrar a ninguém porque diziam: ‘O Ilustre Cientista’! [risos]
E foi para onde?
Não fazia ideia nenhuma do que levar, não há manuais sobre isso. De maneira que encontrei-me com aqueles velhos sertanejos. Em São Paulo havia uns armazéns com os machetes e as catanas. Noutro lado vendiam as missangas, e noutro o tabaco, e noutro os cachimbos de madeira e noutro os panos encarnados e os panos azuis, e as tesouras para eles poderem cortar a franja, anzóis, fio de nylon para pescar… De repente tinha ali 250 quilos de bagagem. O dinheiro realmente é uma invenção genial. Com uns papelinhos a gente faz tudo. Agora a troca… é horroroso.
Como é que levava isso tudo?
Nos aviões da Força Aérea. A primeira viagem foi para o Xingu. O serviço de proteção aos índios deu-me uma autorização para utilizar a quota deles, depois tinha de estar no aeroporto militar não sei de aonde, a umas horas indevidas da madrugada, para entrar num DC3 daqueles já muito antigos, mas que são ótimos. O avião tem bancos uns em frente uns dos outros. Vai levar correio aéreo para postos em casa do diabo e aproveita para levar alguns mantimentos para umas guarnições. Um dos mantimentos é uma vaca, que acabaram de matar e que vai ali no meio, esticada, com as patas para o ar, e a gente põe os pezinhos em cima… E depois quando chega ao sítio despejam-te e ficas com as tuas malas, um bocado desasado…
Sem saber muito bem o que fazer.
E depois é tudo um bocado diferente conforme o local. É a verdadeira aventura.
Uma dúvida que a gente tem é quão primitivas são essas tribos. Têm televisão ou rádio, por exemplo?
Quando eu lá estive, essas tribos viviam mesmo de uma maneira primitiva.
Caçavam, pescavam?
Estive dentro daquelas palhotas a que chamam ‘maloca’. Algumas têm uns 20 metros de comprido e vivem lá uma data de famílias. São lindas por dentro. Agora vi na televisão documentários em que mostram que eles já têm antenas e painéis solares. Acabou-se, é outro mundo.
Como se sente em relação a essas mudanças?
Esse mundo já se acabou. Outro dia li que um antropólogo foi não sei onde e encontrou dois rapazes e perguntou-lhes se estavam a par de algum festival, de alguma dança mágica. E disseram-lhe: ‘Você ainda está nesse tempo?’. Isso passa de um momento para o outro, de uma geração para a outra acabou. Quando eu lá estava, sentava-me à noite com os tipos no meio do mato, e eles: ‘Sputnik’ – alguém lhes tinha falado e pensavam que era uma estrela nova, a andar de um lado para o outro. Hoje se calhar já sabem física quântica. Tive a sorte de apanhar, acho eu, o fim de uma época. Hoje já não faria nada disso. Para já, em qualquer viagem é tudo tão complicado, tão estúpido, tão chato…
Mas nessas aventuras a pessoa também tem dissabores e contratempos.
Claro que tem dissabores e contratempos. Por exemplo, num barco na Nova Guiné, o motor estava sempre a ir abaixo. Tinha de se desatarraxar a vela para limpar, e numa altura em que desatarraxo a vela salta-me a chave da mão e cai para o rio. É chato…
E depois, como é que saíram dali?
O outro tipo que ia comigo, que era de lá, saltou para a água e andou ali com os pés até que apanhou o raio de chave. Estão sempre acontecer coisas dessas. Mas faz parte. Se a pessoa não quer, fica em casa.
E encontrou essas peças no Brasil de que ia à procura?
Encontrei. Algumas máscaras e especialmente plumária maravilhosa.
De pássaros exóticos?
As mais queridas são arara vermelha e arara azul, especialmente as penas-guia, as últimas da cauda, que são muito compridas. Uma pena dessas entre eles é valiosíssima. E as penas do tucano. Nem são as mais bonitas, são pretas e depois têm aqui um bocadinho de branco e encarnado e amarelo – um bocadinho de nada. É preciso apanhar milhares dessas penazinhas pequeninas para fazer um cocar. São coisas lindas, lindas.
E não se degradam com o tempo?
Se forem bem acondicionadas e guardadas em gavetas como deve ser, não. Aguentam muito tempo. Se forem deixadas ao abandono podem ser comidas pelos bichos e pelas traças. No museu estão impecáveis, a uma certa temperatura e uma certa humidade.
Essas também estão no Museu de Etnologia?
Sim, está tudo lá.
São quantas peças?
Umas centenas.
Lucrou com essa venda?
Lucrei eu e lucrou o museu. Da primeira coleção de arte africana que vendi ao museu, só meia dúzia de peças valem hoje tanto como custou na altura toda a coleção. Para te dar uma ideia, vendi ao museu por 80 contos, três mil dólares na altura, uma peça que aqui há uns anos foi aos Estados Unidos para uma exposição. O museu tinha posto um valor de seguro de 500 mil dólares e eles lá puseram 750 000. O Estado comigo não perdeu, ganhou. É dos melhores negócios que tem feito. Aquelas coisas valorizaram de uma maneira…
Porque deixou de haver?
Não só deixou de haver como o gosto por essas coisas também aumentou. Em Portugal não havia ninguém que colecionasse arte africana. Em Portugal à arte africana chamavam-lhe ‘os mamarrachos’, eram os mamarrachos. Agora há N colecionadores e com grandes objetos.
E trazia peças feitas naquela altura ou peças antigas?
Só trazia peças antigas, em princípio. Peças antigas que tivessem sido utilizadas, para mim as peças verdadeiras são essas. E que, além do mais, tivessem uma qualidade plástica que me interessasse. Caso contrário, também não me interessava só por ser velho… Não queria coisas velhas, queria coisas antigas, mas de qualidade.
E nunca pensou ficar com algumas dessas peças para si?
Tenho algumas – o que está aqui, não tenho nada guardado em caixas. Amanhã, se precisar de dinheiro, vendo, porque não sou rico.
E vendia só cá ou também para o estrangeiro?
Para mim era muito mais interessante vender ao museu e as peças continuarem a ser minhas. É genial: posso ir vê-las quando quero, em vez de as coisas se dispersarem. E depois deu acaso a umas cenas de que não estava à espera. O facto de eu ter trazido esses objetos modificou a vida de várias pessoas, especialmente raparigas que se formaram em Antropologia ou Sociologia, e estão a fazer teses aqui e ali.
Agora há um grande movimento para devolver estas peças.
Pois há. É uma cena estranha, porque na realidade em África não há um gosto por essas peças, quase não há colecionadores africanos na praça.
Voltando ao Brasil, muita gente diz que é um país perigoso.
Claro que é perigoso. A primeira vez que lá fui, tinha ido almoçar a casa de uns amigos em Copacabana e a senhora estava toda chorosa. Porquê? Um amigo dela estava a comprar o jornal na banca de jornais e passou um gajo com um carro, queria matar o jornaleiro, disparou uma rajada e matou o amigo dela.
Isso é o faroeste.
É mesmo o faroeste. Uma vez eu fui tirar a licença de porte de arma. Ia para o mato e levava dinheiro, precisava de um revólver. E um dia estava a falar com um amigo lá no Rio, e ele diz-me que tem um familiar nessa secção das licenças. Fui lá e ele deu-me a licença. Quando vou ver, era uma licença de uso e detenção da arma no apartamento onde eu morava.
Não lhe servia para nada, portanto.
‘Eu não vou usar a arma em casa. E se vou a qualquer lado e me pedem a licença?’. E o gajo diz-me: ‘Nenhum polícia vai fazer isso. A arma é a licença. Amigo, não pense nisso, ninguém lhe pede a licença’. [Pega numa caixinha e tira de lá um cigarro meio queimado] Fumas?
Não, mas fume à vontade que não me incomoda. Isso é um cigarro indiano?
Não. É tabaco com um bocadinho de haxe. Aqui há tempos fui fazer uma radiografia aos pulmões e o médico disse-me: ‘Sr. Bandeira, os seus pulmões estão destruídos’. Estão destruídos… [risos]
Mas fumava muito?
Não, nunca fumei sequer o equivalente a um maço por dia. Dez cigarros, no máximo doze. Agora canso-me muito, quando estou sentado ou deitado, ótimo, mas se faço algum esforço fico logo com falta de ar. De maneira que fumo três passas e guardo o resto aqui na minha caixinha. E a alegria que me dá… Só de histórias de haxixe podia escrever quase um livro.
Andou muito pelo Oriente. Alguma vez experimentou ópio?
Sim, mas não é a minha cena. O ópio é para quem trabalha muito, está muito cansado e chega à noite e quer dormir. Há malta que curte, mas para mim é uma droga de morte, não é uma droga de vida. O haxe, a erva, esse género de coisas, são ligeiramente excitantes. Se és, por exemplo, criativo, ajuda-te a criar. Enquanto as outras são drogas para te matar a pouco e pouco. Não gosto. Já experimentei heroína uma vez ou duas…
Dizem que é altamente viciante.
Depende se é para ti ou não. Se não experimentares nunca sabes. Sou um bocado curioso. Nunca piquei nada, nunca chutei nada, mas ácido tomei N vezes, cogumelos, todas essas cenas tenho experimentado. Com bastante prazer…
O Aldous Huxley conta n’As Portas da Percepção que depois de tomar LSD vai a uma livraria e começa a ver as coisas de uma maneira completamente diferente.
O encanto de uma droga desse género é ver e sentir as coisas como se fosse a primeira vez. Por exemplo, pegar numa laranja e pensar: ‘Que maravilha esta cor, este cheiro, este perfume, este gosto’. Isso para mim é que é o encanto, ver as coisas de outra maneira.
O problema é se a situação se descontrola, não?
Isso seja com o que for. Temos aqui a pior coisa em Portugal, que é o álcool, a malta bebe até cair para o lado. O próprio tabaco, que é uma coisa que se sabe que é péssima para a saúde, e o Estado vende todo contente porque está a ganhar um dinheirão. Isto é de um ridículo atroz. O ácido não faz mal a ninguém.
Mas há histórias que circulam. Um tipo que achava que se tinha transformado numa laranja e tinha medo que o espremessem para fazer sumo…
Normalmente, os alucinogénios não são aditivos. O que é mais aditivo na realidade são as coisas mesmo más, a heroína – que é o ópio – e a morfina, a coca, que é muito agradável, mas que não é nada boa para a cabeça à la longue, as pessoas ficam um bocado paranoicas. Quanto ao resto, tudo bem, são coisas da natureza, desde que a pessoa não exagere… Vi um amigo quase a morrer por beber demasiada água. Estava calor e ele bebia água, água, água, esteve quase a passar-se. É a água que é má? Não é.
E onde adquiriu esse hábito de fumar tabaco com haxixe? Foi cá em Portugal ou nas suas viagens?
Acho que foi na Indonésia que fumei haxe pela primeira vez.
Lembra-se do que sentiu?
Era uma erva muito boa. Lembro-me de estar deitado numa casinha de uns amigos. Eu era um melómano desde miúdo, estudei piano e sempre gostei de música. Mas naquela vez ouvi a música de uma maneira completamente diferente. Depois nunca mais volta a ser a mesma coisa. A primeira vez é mesmo a primeira vez.
É irrepetível. Continua a tocar piano?
Continuo. Até era suposto ir tocar ao Boom Festival agora. Tenho ido a todos. Toco com uma banda, os Tjak. Tenho um aparelho que é um teclado onde em vez de ter as notas de piano, cada tecla tem um som diferente. Pode ser um leão a rugir, uma pessoa a dizer ‘ai’, um toque de violino.
É um sintetizador?
É dessa família, mas não está a sintetizar nada, só memoriza aquele som naquela tecla. Isto começou porque uns amigos sabiam que eu tinha gravações dos índios e de África, e a partir dessas gravações pensámos fazer músicas com base naqueles motivos.
Falou dessa ocasião em que foi como se ouvisse música pela primeira vez. Essa sua sede de viajar também é um bocado a vontade de ver coisas pela primeira vez?
Exatamente. Mas não é só a novidade. No fim é viver uma outra vida. Isso é que eu gosto. Agora que estou mais velhinho, gosto muito desta vida que estou a viver aqui.
No seu livro conta como esteve com um mestre zazen em Quioto. O que levou a querer experimentar fazer meditação?
A curiosidade. Nunca fui crente, não fui batizado e nunca terei religião nenhuma. Não tem nada que ver comigo. Agora, o que é fazer jejum, por exemplo? Uma vez estava em Bali e durante 11 dias não comi. Para ver o que acontecia ao corpo.
E o que aconteceu, como se sentiu?
Estava muito bem disposto. Só me sentia um bocadinho…
Zonzo?
Um bocadinho aéreo, talvez me cansasse um bocadinho mais, mas andava de mota todos os dias, ia passear, estava com os meus amigos.
Não ficou parado, então.
Não fiquei nada parado, fazia a minha vida normal, ia para a praia curtir. Foi ótimo. A meditação era uma coisa assim. Gostava de saber o que é que isto faz, como é. E fui lá para Quioto.
Alguém lhe tinha falado nesse mestre?
Havia um amigo australiano que tinha estado no Japão e que tinha feito lá meditação, e foi por intermédio dele. Embora tenha estado mais tempo com outro mestre, porque fui a um templo, achei o sítio muito simpático e perguntei se podia lá ir às sessões de zazen. E com esse mestre é que eu me dei mais, era um japonês. O outro era mais clássico, aquele homem que não sai do templo. Este chamava-se Myoshinji, era um professor de história das religiões e de filosofia, tinha estado N anos nos Estados Unidos, depois tinha voltado para o Japão e dávamo-nos tão bem que no fim das sessões às vezes íamos jantar juntos ao restaurante… Era muita simpático. Mas hoje estou convencido de que isso tudo é aquilo que se chama em inglês ‘a mind game’.
Acha?
Acho. É bom, faz bem, mas no fundo é um jogo. A pessoa convence-se de qualquer coisa. É a tua mente a brincar contigo. O cérebro consegue-se enganar a ele próprio com a maior das facilidades. Tem todos os cordelinhos necessários.
E nunca sentiu ‘é por causa disto que as pessoas ficam aqui uma hora sentadas sem fazer nada’?
Sim, diversas vezes tive a sensação do prazer de fazer meditação.
Uma sensação de beatitude?
Tranquilidade. Beatitude talvez seja de mais. Nunca fui muito intranquilo, mas acho que faz muito bem.
E ainda pratica ou não?
Agora não. Porque posso sentir o mesmo só a olhar para uma coisa, ou a cheirar, ou a ouvir, ou a ler.
Há quanto tempo não viaja?
Fui ao Brasil antes da covid. Viemos de lá no último avião, às escondidas. Antes disso tínhamos ido a Cuba. Sempre tive o desejo de ir a Cuba e íamos por dois meses, mas passado um mês dissemos um ao outro: ‘Vamos embora? Vamos’. Foi a primeira vez me aconteceu ir a um sítio e ficar triste ao estar lá. Fui-me entristecendo com a vida deles, gente tão simpática, tão boa…
Era deprimente?
Aquela gente tinha passado a vida sempre com pessoas em casa. Quando falas com eles, vês que aquilo é triste.
Agora estava a pensar: as suas andanças lá por fora tiveram alguma coisa a ver com questões políticas?
Não. De cada vez que ia para fora tinha que ir à PIDE justificar e nhó-nhó-nhó, claro. Mas nunca tive problemas nenhuns.
Estava cá no 25 de Abril?
Não, estava em Bali. Recordo-me de ver uma capa da Time onde vinha uma fotografia que era o Mário Soares, acho eu, o Cunhal, o Otelo e mais outro malandro qualquer… o Spínola! ‘Olha, são estes gajos…’. O Otelo tinha-o conhecido na Guiné, muito simpático, despachado e tal. O Spínola também tinha sido governador na Guiné, usava o monóculo, um nazi. Foi assim que eu soube, ao ver a capa da revista.
Não se dava com portugueses, então.
Não, nunca me dou com portugueses. Para isso já basta Portugal.
Quando estava a viver na Indonésia, por exemplo, como é que se sustentava? Ia fazendo biscates?
Na Indonésia, em qualquer lado, na mais pequena aldeia, há um restaurante do chinês típico. Sempre com coisas maravilhosas, massinha com uns cogumelozinhos, uns camarõezinhos… Não há problema nenhum.
Ou seja, consegue-se viver quase sem dinheiro.
Isso.
Também andou pela Índia, certo?
Estive lá muitas vezes e bastante tempo. Cá nunca leio os jornais, mas na Índia sempre que posso compro os jornais. Vê-se as notícias mais inacreditáveis. Aparece com frequência uma rapariga que morre queimada na cozinha porque não tinha levado o dote do casamento. A sogra, que já estava chateada, manda-lhe petróleo para cima…
É curioso que nós associamos os indianos a um povo muito pacífico.
É pacífico, é… a Índia é um drama. Estão sempre a acontecer coisas estranhas. E continua a haver lá muita violência hoje.
Onde gostaria de ir e nunca foi?
Onde eu gostaria de ir? O sítio que esteve no primeiro lugar de todas as minhas viagens e onde nunca fui, o Egipto.
E porque é que não foi?
Por diversas razões. Uma vez estava para ir, mas não pude, houve um problema de diplomacia. Outra vez fui buscar o visto à Turquia, onde supostamente era mais fácil, e também não mo deram… Por uma razão ou por outra, acabei por nunca ir. E também nunca fui ver a aurora boreal. É um espetáculo único na natureza. E possivelmente já não irei.