O ministro Manuel Pizarro é um dos suspeitos que o Ministério Público tem na mira no processo em que foi esta semana constituído arguido o presidente da Câmara de Gaia e líder da Federação do PS-Porto, Eduardo Vítor Rodrigues. Em causa estão suspeitas da prática de crimes económico-financeiros, relacionadas com questões de contratação pública e de pessoal naquela autarquia e que estão a ser investigadas no âmbito da Operação Babel, que desencadeou uma série de buscas domiciliárias e não domiciliárias na passada terça-feira, abrangendo três inquéritos diferentes.
Além do ministro da Saúde, há sete outros suspeitos neste inquérito. Jorge Botelho, antigo secretário de Estado da Descentralização e da Administração Local e ex-presidente da Câmara de Tavira; Susana Pina, chefe de gabinete de Eduardo Vítor na Câmara de Gaia; Manuela Garrido, diretora municipal de Finanças e Património também naquela autarquia; e Domingos Andrade, diretor da TSF e do Jornal de Notícias e administrador do Global Media Group (que detém ainda os jornais Diário de Notícias, O Jogo e o Açoriano Oriental), são apenas alguns dos visados.
O processo, com o número 399/23, foi aberto na sequência da extração de uma certidão processual do inquérito principal da Operação Babel e diz respeito a factos ocorridos entre os anos de 2019 a 2022 – e que vão desde contratações públicas suspeitas a alegados favorecimentos de militantes do PS na área de recursos humanos da autarquia, ou ainda a atropelos no caso PAEL, do qual Eduardo Vítor saiu absolvido.
É um desses episódios que atinge diretamente a atual governação socialista, mais concretamente a tutela da Saúde. Escutas telefónicas que constam dos autos revelam que Manuel Pizarro, então presidente da Federação do PS-Porto, terá ‘metido uma cunha’ (ou dado uma indicação expressa) a Eduardo Vítor para a contratação de um boy do PS pela Câmara de Gaia.
Segundo o despacho do inquérito coordenado pelo Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) Regional do Porto, a que o Nascer do SOL teve acesso, Eduardo Vítor terá determinado, «mediante solicitação de Manuel Pizarro», que o município de Gaia «alterasse o seu mapa de pessoal» e abrisse um concurso «de forma a satisfazer a pretensão de Manuel Pizarro de colocar António Fernando Silva Oliveira num posto de trabalho» naquela autarquia «com a categoria profissional de técnico superior», categoria essa que não detinha na Câmara Municipal de Gondomar onde exercia funções naquela altura.
«Tal atuação foi unicamente motivada por aquela solicitação externa [de Manuel Pizarro], desconexionada de qualquer avaliação das necessidades de recursos humanos da C.M. de Vila Nova de Gaia, sendo suscetível de integrar a prática dos crimes de prevaricação ou abuso de poderes», expõem os procuradores do DIAP Regional do Porto.
Manuel Pizarro era, àquela data, deputado no Parlamento Europeu, vereador na Câmara Municipal do Porto e presidente da Federação Distrital do Porto do PS, lugar este que legou a Eduardo Vítor quando assumiu as funções de ministro da Saúde em setembro do ano passado.
Às questões colocadas pelo Nascer do SOL, o gabinete do ministro da Saúde respondeu que «Manuel Pizarro não foi contactado no âmbito do inquérito em causa, desconhecendo as referidas imputações».
Este não é, contudo, o único caso em que são descritos favorecimentos a militantes e pessoas próximas do PS para integrarem os quadros da autarquia. Concertado com Manuela Garrido, que naquela altura era diretora municipal de Administração e Finanças, o autarca terá também determinado a abertura de um concurso «fictício» de modo a beneficiar Manuel Filipe Tavares Dias Sousa, que até aí era docente do Agrupamento de Escolas Diogo de Macedo (V.N. de Gaia), «mantendo-o com uma avença mensal (…), para além das possibilidades legais», que seria paga pelo município.
‘Conluio’ para evitar perda de mandato
No despacho, os procuradores do Ministério Público desmontam também o esquema que terá permitido ao presidente da Câmara de Gaia evitar a perda de mandato em 2021. O caso tem que ver com o Programa de Apoio à Economia Local (PAEL), um regime de concessão de crédito aos municípios, que possibilitou a regularização de dívidas em atraso há mais de 90 dias. De acordo com a legislação, uma das obrigações dos municípios que integram este programa é a fixação da taxa máxima do imposto municipal sobre imóveis (IMI). Antes das alterações à lei que foram introduzidas em 2021, o incumprimento desta obrigação podia resultar na perda de mandato para os membros dos órgãos autárquicos.
Ora, de acordo com os procuradores, o município de Gaia e Eduardo Vítor, enquanto líder daquele executivo camarário, «terão incumprido o contrato celebrado com o Estado», nomeadamente violando, em 2015, a obrigação de fixação da taxa máxima de IMI aos prédios urbanos, algo que foi identificado através de um processo de auditoria realizado pela Inspeção-Geral de Finanças (IGF), entidade à qual competia a monitorização do PAEL.
Na sequência desse relatório da IGF, foi intentada uma ação, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, para que Eduardo Vítor perdesse o mandato na Câmara de Gaia. No entanto, detalham os procuradores, o autarca terá agido «em conluio» com Jorge Botelho, que na altura exercia as funções de secretário de Estado da Descentralização e da Administração Local, quando a titular da pasta ministerial era Alexandra Leitão, para que não fosse homologado um despacho assinado pelo então ministro das Finanças, Mário Centeno (apenas três dias antes de sair do Governo) e no qual era ordenada a remessa do processo da IGF para o MP. Ora, para os investigadores, o objetivo seria «esvaziar juridicamente uma eventual sentença condenatória» do autarca de Gaia, uma vez que a inexistência de homologação por parte do secretário de Estado fazia cair por terra o despacho de Centeno, permitindo assim a absolvição de Eduardo Vítor. Isto porque o regime da tutela administrativa não permite a um membro do Governo determinar unilateralmente a remessa de um processo em substituição ou em dispensa da intervenção do membro do Governo responsável pela área da Administração Local, que neste caso era Jorge Botelho.
Essa ausência de pronunciamento do secretário de Estado foi, aliás, invocada por Eduardo Vítor como fundamento da nulidade do despacho do ministro das Finanças e, por sua vez, da invalidade da ação para perda de mandato no TAF do Porto.
Contactada pelo Nascer do SOL, Alexandra Leitão admitiu que a homologação do despacho cabia ao seu secretário de Estado, que era «quem tinha a competência delegada», mas disse desconhecer se isso de facto aconteceu. «Não sei se homologou ou não. Não posso precisar, eram vários processos. Lembro-me que Eduardo Vítor Rodrigues foi absolvido e devo ter conversado com o meu secretário de Estado sobre isso», começa por explicar a antiga ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, acrescentando depois que tem ideia de Jorge Botelho lhe ter referido que «tinha dúvidas se devia homologar, tendo em conta que já havia um processo em tribunal e que na pendência desse processo era um bocado estranho praticar um ato administrativo». Segundo a ex-ministra socialista, Jorge Botelho «não podia tomar decisões no quadro de um processo em tribunal já ativo». Contudo, o Nascer do SOL confrontou a jurista com o facto de ter sido essa inexistência de despacho homologatório que fundamentou a nulidade da ação para perda de mandato, ao que Alexandra Leitão apenas respondeu não ter presente que tenha sido essa a razão para a absolvição, uma vez que também não leu o acórdão do TAF do Porto.
O Nascer do SOLnão conseguiu falar com Jorge Botelho, mas tentou por intermediário da ex-ministra estabelecer esse contacto, sem sucesso.
No despacho, os procuradores do DIAP Regional do Porto referem ainda, que ao mesmo tempo que decorria este processo no TAF, o presidente da Câmara de Gaia «concertou esforços» com Pedro Mota e Costa, um consultor em contabilidade e finanças públicas, gestão autárquica e finanças locais, para que, antes de ser proferida a sentença, fosse promovida uma alteração à lei que afastasse a perda de mandato enquanto sanção em casos de violação das regras do PAEL.
E assim foi: o grupo parlamentar do PS apresentou um projeto de lei para flexibilizar as regras do PAEL, permitindo, entre outras medidas, que os municípios que integrassem o programa não estivessem obrigados a cobrar a taxa máxima de IMI que a adesão ao PAEL exigia. O diploma chegou a ser vetado e devolvido ao Parlamento pelo Presidente da República, mas acabou a ser novamente aprovado com os votos a favor do PS, PCP e PEV e posteriormente promulgado por Marcelo Rebelo de Sousa. Mas não sem a contestação da oposição, nomeadamente do PSD. Rui Rio, que à época era líder dos sociais-democratas, acusou o PS e o PCP de unirem esforços para ilibar autarcas com procedimentos sancionatórios pendentes por violação das regras do PAEL, denunciando que cinco autarcas socialistas (da Covilhã, de Aljustrel, de Vila Nova de Gaia, do Cartaxo e de Alfândega da Fé) e um autarca comunista (de Évora) estavam em risco de perderem o mandato em tribunal por terem violado essa mesma lei.
Do inquérito do DIAP Regional do Porto constam ainda suspeitas de crimes de corrupção ativa e passiva e recebimento indevido de vantagem que envolvem contratos públicos celebrados entre a Câmara de Gaia e o Global Media Group (GMG). Segundo o despacho, Eduardo Vítor terá solicitado a Domingos Andrade, administrador do GMG, que os meios de comunicação detidos pelo grupo de Marco Galinha, nomeadamente o JN e TSF, elaborassem notícias e cobrissem conferências promovendo a atuação da Câmara de Gaia e do seu presidente. Os contratos para esse efeito foram outorgados pelo autarca sem que tivesse havido qualquer requisição de despesa, manifestação de necessidades ou proposta de contratação de serviços.
O Nascer do SOL enviou um conjunto de questões ao gabinete do presidente da Câmara de Gaia, mas fonte oficial da autarquia indicou que neste momento não estão a ser feitos mais comentários.