Amanhã… é outro dia

Em vez do socialismo liberal, inscrito na Constituição e que Mário Soares sempre protagonizou, criou-se uma espécie de ‘socialismo de miséria’ que afeta muitos cidadãos e, em especial, a tal classe média.

Por Manuel dos Santos

É conhecido que os números podem ser sempre ‘torturados’ até que nos apresentem a verdade que desejamos.

Quase todas as semanas o Governo apresenta estatísticas, gráficos, índices e evoluções de sinal positivo que o comum dos cidadãos não sente no seu quotidiano.

Confrontando o recuo, em cadeia, da economia alemã (-0,5% no 4.º trimestre de 2022 e -0,3% no 1.º trimestre de 2023) com o ‘robusto’ crescimento da economia portuguesa nos mesmos períodos (+0,3% e +1,6 %), a surpresa é que ainda não tenha aparecido um político a explicar que estamos num excelente caminho pois crescemos mais que a poderosa economia da União Europeia.

Será que os nossos ‘big brothers’ da informação estarão mais racionais ou trata-se apenas de uma preocupante perda de sentido de oportunidade?

Curiosamente a situação na Espanha é parecida. Também os números divulgados costumam ser excelentes e, apesar do maior decoro (ou medo de escrutínio?) também são utilizados na propaganda oficial.

Mas o problema não está nos números torturados ou descontextualizados; o problema está nas pessoas, nos cidadãos e nos eleitores que, agora, só acreditam no que sentem e não nas patranhas que lhes vendem.

Existem muitas teorias, algumas mesmo com base empírico-científica, para explicar o atraso (lag) que decorre até que uma melhoria estatística da economia chegue às pessoas.

Só que todas as teorias pressupõem uma economia ‘normal’ ou seja diversificada, com crescimento real sustentado e com o potencial de crescimento próximo de ser atingido.

Essa não é a situação da economia portuguesa que, apresenta índices de crescimento estatístico interessantes, mas que não escondem uma estrutura deficiente quase exclusivamente alavancada no crescimento do turismo.

Sabendo que esse setor pratica salários médios muito baixos e transfere para o exterior uma boa parte da cadeia de valor acrescentado, o prognóstico, a médio prazo, não é tranquilizante.

Este é um drama da nossa sociedade que impede o funcionamento do elevador social, e se traduz no aumento das bolsas de pobreza e na emigração de muitos dos jovens mais qualificados.

«Classe média desamparada cria terreno fértil para a extrema-direita» afirmou recentemente o primeiro-ministro(PM). O diagnóstico está bem feito.

Mas fica uma pergunta no ar: o que fez a governação de Costa, que já dura há sete anos, para impedir e contrariar esta situação?

É sempre oportuno lembrar que o atual secretário-geral do PS conquistou o poder partidário através de uma manobra desleal e seguidamente, transformou uma derrota eleitoral humilhante, numa vitória de secretaria (a ‘geringonça’) que, mesmo sendo constitucionalmente suportável, se transformou na via que pode conduzir o PS à irrelevância.

Ora é nestes dois factos que deve ser procurada a origem do impasse que o país vive.

O primeiro porque criou uma cultura de impunidade, onde o vale-tudo é a palavra de ordem, evidência que ficou bem clara com os acontecimentos recentes no Ministério das Infraestruturas.

O segundo porque conduziu o país ao imobilismo, obstaculizando as reformas estruturais que eram necessários e permitiu a ocupação do aparelho do Estado por clientelas partidárias mal preparadas.

Em vez do socialismo liberal, inscrito na Constituição e que Mário Soares sempre protagonizou, criou-se uma espécie de ‘socialismo de miséria’ que afeta muitos cidadãos e, em especial, a tal classe média.

Avisos, de resto, não faltaram e o mais recente surgiu com a oportuna intervenção do ex-Presidente da República (PR), Cavaco Silva.

O ex-PR disse o que devia ser dito, no tempo apropriado, de forma diferente e clara e num registo implacável. Não foi, de resto, o primeiro ex-PR a pronunciar-se, de forma muito crítica, sobre a situação política do momento.

Neste caso ninguém exerceu, como devia, o contraditório (convenhamos que era difícil!) tendo sido apenas verbalizados os dichotes e insultos habituais, uma prática recorrente quando Cavaco fala.

Grave e incompreensível foi a reação do líder parlamentar do Partido Socialista que, estranhamente, termina a sua declaração com uma insólita e preocupante ameaça «não esqueceremos»(?).

Parece que para alguns dos principais protagonistas da nossa vida pública, as mensagens não contam, o que importa são os mensageiros.

Mas ao entrar por essa opção o resultado negativo é certo como o destino e será, no fim, sempre penalizador para quem a pratica.

O Partido Socialista espanhol acaba de o compreender e o seu líder tomou a decisão política que se impunha e, assim, talvez ainda possa salvar o essencial do seu projeto.

Em Portugal com os ‘casos e casinhos, as horas e horinhas e as mentiras e mentirinhas’ vive-se já numa situação limite quase insustentável.

Eis o bom momento para o PM apresentar a sua demissão e, porque mantém uma maioria absoluta, se dispor a formar um novo Governo, mais competente, mais eficaz e mais adulto.

Será isto possível para ‘amanhã’? Dificilmente porque tal exigiria humildade, reconhecimento do erro, disponibilidade e sentido de estado, qualidades que, infelizmente, não abundam na personalidade do chefe do executivo.

Mas, como diz António Costa, quando quer fugir de responsabilidades, «amanhã é outro dia».