Foram anunciadas restrições de água para o Algarve por causa da seca. Concorda?
Primeiro, seca é uma coisa, escassez é outra. Seca quer dizer que há falta de chuva. Foi criada em 2017 uma comissão interministerial de seca e desde aí até agora tem reunido, infelizmente, com muita frequência. No passado havia seca de dez em dez anos, desde 2017 temos seca todos os anos, o que nos revela que teremos de considerar esta nova normalidade e se calhar temos de tomar algumas medidas de fundo. Agora não é o momento para isso, porque estamos num momento de seca. Primeiro, para já, temos de impor algumas restrições, em determinadas zonas do país, uma vez que há medidas que são diferentes de região para região. Neste momento e, em particular, há alguma preocupação com o Algarve. E porquê? Porque há setores que precisariam de mais água para continuarem a sua atividade, mas como as reservas são insuficientes foram anunciadas algumas restrições. É habitual quando há estas situações em avançar com restrições que poderão ser agravadas ou reduzidas em função da quantidade de água que existe. Em Portugal há uma prioridade absoluta, que é o abastecimento público que tem de ser garantido e como no Algarve há o receio de que faltará água para este abastecimento público foram anunciadas algumas restrições para o uso da água na agricultura, por exemplo.
Estas medidas pecam por ser tardias?
Em condições normais isso seria normal. Ao longo do ano temos meses mais secos, outros em que chove mais, outros em que chove menos. Sempre foi assim no nosso país, como também há anos em que chove mais e outros que chove menos. Quando há um ano com muita falta de chuva, o que tem sido habitual – antigamente era de 10 em 10 anos – essa comissão reunia e definia o que iria fazer nesse ano, entretanto chove e isso passa. Não é anormal haver uma comissão de seca, como também não é anormal definirem-se restrições por um período limitado, o que neste momento começa a ser preocupante é que esta comissão reúne com demasiada frequência e as restrições estão a ser cada vez mais pesadas. Lembro-me de no ano passado terem sido introduzidas restrições para a exploração das albufeiras com produção hidroelétrica, de se ter sido estabelecido um volume mínimo nas albufeiras para, pelo menos, dois anos de abastecimento público. Este ano, o que me chamou mais a atenção foi a redução do consumo em percentagem para captações agrícolas e a criação de um grupo de trabalho para fiscalizar as captações. Acho que é positivo criar esse grupo de trabalho e ir fazendo uma verificação das captações. Se dissessem apenas que iram reduzir em 10% as captações seria ineficaz, porque muitas delas não estão licenciadas. Outras estão licenciadas, mas não têm um contador e muitas das que têm contador, esse contador não é verificado. Saúdo que, num momento de crise, num momento de falta de água, se faça o inventário das captações e se vá verificar realmente o que está a ser tirado, por uma razão ambiental, económica e até diria quase de salvaguarda dos aquíferos, neste caso do Algarve. Isto porquê? As águas subterrâneas vão variando de nível ao longo do ano, de ano para ano, junto ao mar quando se capta demasiada água e esse nível freático baixa muito. O que acontece? A água do mar invade o subsolo, entra água salgada para baixo dos sítios onde por cima há laranjeiras e outro tipo de coisas e os furos que vão captar a água depois passam a captar água salgada. Isso vai matar as plantas durante décadas. Seria totalmente irresponsável permitir a captação de água que pusesse em causa a salinização dos aquíferos. Isso como é que se consegue evitar? Primeiro, monitorizando os níveis que foi agora anunciado, e depois controlar as captações para evitar que esses níveis desçam abaixo de níveis preocupantes. Os níveis, de acordo com os dados, aparentemente ainda não são preocupantes, mas estão perigosamente perto. Por isso temos de reduzir as captações para evitar chegar a níveis que levem à salinização dos aquíferos.
As medidas preveem restrições nas barragens de Odeleite e de Beliche, mas também se quer reduzir em 20% a água utilizada nos campos de golfe…
Para mim, enquanto técnico do setor, o que me preocupa mais, e saúdo esta medida, é a salinização dos aquíferos que teria um impacto enorme durante décadas e mataria os aquíferos do Algarve. Não podemos permitir que se tire água em demasia, porque se assim acontecesse entraria água salgada, o que é quase irreversível durante décadas. Isso é o mais preocupante e essa medida é a que, talvez, me chama mais a atenção por ser diferente das outras e por ser diferente do que aconteceu no passado. Tenho ideia que nunca aconteceu uma situação dessas. Ou seja, vamos criar um grupo para ver exatamente o que é que estamos a retirar e vamos controlar o que está a ser retirado. No entanto, vai haver restrições de captação nas albufeiras e muitas das albufeiras são usadas essencialmente para uso agrícola e não havendo água ou quando os albufeiras descem abaixo de um certo nível impõem-se restrições para utilizar a água que ainda há, porque não se sabe quando é que vem mais. Isso é uma medida normal em situação de seca. E, de acordo com a lei, aquelas albufeiras têm como destino principal o abastecimento público e a regra é quando só tem para dois anos de abastecimento público pára tudo o resto que não seja isso. Falam também de campos de golfe, mas também podiam falar de piscinas.
Falam de jardins…
A água é uma questão política. O que é que está em causa? No Algarve temos população, turismo e agricultura só que não temos água que dê para tudo isto com os níveis de utilização que são feitos até agora. O que é que podemos fazer? Ou há restrições ou temos de mudar o que estamos a fazer. Claro que é discutível, lembro-me de umas declarações públicas do presidente da AMAL [Comunidade Intermunicipal do Algarve] ao referir que é preciso ter cuidado com as restrições, nomeadamente no golfe porque suporta um determinado tipo de turismo que é economicamente importante no Algarve. E fez a comparação entre o consumo da água num campo de golfe e o consumo da água na agricultura. É discutível se se deve privilegiar o campo de golfe ou a agricultura, mas o presidente da AMAL dizia que o campo de golfe, do ponto de vista de rentabilidade, seria o equivalente em termos de receitas à agricultura no Algarve e gasta muito menos água e dizia que temos de nos sentar para quando faltar água e quando há necessidade de restringir para ter também em conta o aspeto económico. O que é que pode ser dito relativamente a isso? Se pensarmos do ponto de vista de rentabilidade, sabemos quanto é que rende um campo de golfe. Por exemplo, os melhores campos do Algarve cobram por cada utilização 100 ou 200 euros e creio que alguns até mais. Essas pessoas vieram especialmente para jogar golfe, pagaram quartos, pagaram as refeições, logo dá uma certa rentabilidade para o Algarve. Da agricultura também é possível saber quanto é que rende. Este produto vende-se por x o quilo e é só multiplicar pelos quilos e vê-se o que é que dá. Há quem ache que se deva parar com o golfe porque é lúdico em detrimento de produzir alimentos, outros dizem que é preciso fazer contas e se não se produzir esses alimentos aqui, produz-se ali e não faz sentido estar a gastar uma certa quantidade de água em culturas de baixo valor acrescentado. Por exemplo, se não produzir laranjas aqui posso comprar ali.
O Governo há cerca de uma semana deixou de autorizar culturas permanentes de olival, frutos vermelhos e abacate…
Essa é uma questão de decisão. Lembro-me que há uns anos havia os chamados conselhos de bacia, em que num momento de crise, os utilizadores de uma determinada zona sentavam-se à mesa, literalmente, e negociavam entre si a partilha da água. Cada um defende a sua coisa. Agora foram anunciados pactos da água, que é uma coisa parecida, mas estamos a falar de conflitos, porque sabemos que não há agua para todos. Isso implica fazer restrições e cada um quer que sejam feitas restrições aos outros, no entanto, vai ser preciso chegar a um acordo, a um equilíbrio. Estes pactos da água que foram anunciados, creio que em conjunto, conseguirão, espero eu, encontrar equilíbrios possíveis. Se me pergunta a minha opinião, diria assim: os campos de golfe são rentáveis e sendo extremamente importantes para a economia da região e para o emprego, o que faria sentido é regar esses campos de golfe, até porque, estão mais perto das zonas urbanas e poderiam recorrer à água reutilizada das estações de tratamento. Por exemplo, em França já há outro tipo de restrições em que proibiram até a venda de piscinas. Isto para o Algarve seria quase fatal. Imagine que tem um potencial turista do norte da Europa que quer vir para o Algarve com crianças e se dizem que não há piscinas porque estão vazias, ele vai para a Grécia. O que se pode fazer relativamente às piscinas? Podem ser enchidas com água do mar. Se calhar não dá já para este ano, porque é preciso planear, mas é uma possibilidade. Quanto à água para a agricultura, quando se fala em proibição de abacates, frutos vermelhos, etc. também vejo com maus olhos que se demonize esta ou aquela cultura. Mas essencialmente o que é que se passa relativamente ao alimento? Os alimentos são produzidos em Portugal e também em outros lados e há uma globalização. E uma coisa é a segurança alimentar, outra coisa é o contributo para o PIB. Do ponto de vista de segurança alimentar, ela é garantida, sobretudo ao nível da União Europeia. Globalização quer dizer que no mundo todos compram, todos vendem e a Europa tem uma política agrícola comum que passa por subsidiar os agricultores para que tendencialmente haja comida mais barata e para que haja mais comida na Europa, favorecendo os agricultores face aos produtores agrícolas de outros sítios do mundo. Há quem critique esta política, porque vai impedir que os produtores dos países mais pobres consigam vender os seus produtos para outros países. Há quem diga que, do ponto de vista da economia, o subsídio a uma determinada atividade a torna menos eficiente. Mas a realidade é que Portugal não pode fazer nada em relação a isso, porque está inserido na Europa. E houve uma pandemia, depois uma guerra e ninguém teve falta de comida. Em Portugal, nunca faltou nada nas prateleiras dos supermercados, alguns produtos ficaram mais caros e até duplicaram de preço, o que aconteceu é que as pessoas com menos recursos económicos estão a ter dificuldade em comprar. Não há falta de comida, alguns têm falta de dinheiro para comprar, são coisas diferentes. Por isso, quando falamos de produzir aqui ou ali para o consumidor é irrelevante, porque compra o que está nos supermercados. Tenho procurado ver como é que gerem a água os países que são mais secos do que nós e tendencialmente seremos mais secos no futuro, haverá menos água, logo, mais secas. E a pergunta é: será que há países que estão piores do que nós estamos agora e não têm restrições? A resposta é há e um dos exemplos é Israel. O que fizeram? Depois de terem tido muitas secas decidiram que tinham de optar por medidas estruturais, então nacionalizaram a água e puseram preços que são completamente diferentes dos nossos.
Mais caros ou mais baratos?
Quem vai captar água em Israel paga um euro o metro cúbico só para abastecimento público. Para a agricultura paga menos: 60 cêntimos o metro cúbico se for tirar do furo. Se essa água for salobra, de má qualidade paga metade: 30 cêntimos. E se utilizar água reutilizada, a água de ETARS pagam 30 cêntimos. É o que acontece a sul de Telavive, em que a água para três milhões de habitantes é bombada para o deserto a 120 quilómetros e os agricultores no meio do deserto contam com uma área enorme cultivada e pagam 30 cêntimos, quando pagavam no passado zero. Na altura, houve uma grande contestação, porque os agricultores não pagavam a água, tal como acontece atualmente em Portugal e tiveram de começar a pagar. Demorou algum tempo, houve adaptação, formação e apoios. Hoje os agricultores em Israel, em vez de produzirem coisas baratas, produzem coisas caras, como tâmaras, framboesas, mirtilos, abacates. Ou seja, concentraram-se em culturas de alto valor acrescentado e depois compram ao exterior as coisas mais baratas, por exemplo, o arroz, o milho. Foi uma opção e é uma opção que pode ser avaliada em qualquer sítio, designadamente, em Portugal. Mas não se pode confundir com o que pode ser decidido em 2023 para vigorar dois ou três meses. A única certeza que temos é que não há seca que sempre dure e vai voltar a chover. No entanto, quando as coisas acalmarem se calhar é altura de pensar: ‘Será que queremos passar a vida em comissões de seca? Ou será que temos de tomar algumas medidas estruturantes?’ Há quem pense que em Portugal devemos resolver pelo lado da procura, ou seja, temos de viver com a água que temos. Isto é, sabemos que temos esta água e temos de a usar de forma diferente. No que diz respeito ao abastecimento público temos de ter menos perdas de água nos sistemas, mas não resolve tudo, porque só corresponde a 10% do consumo. Não nos podemos esquecer que 80% é para a agricultura. Então se queremos continuar e só temos esta água temos de cultivar diferente e cultivar outras coisas e em outros sítios. Mas nem todos pensam assim.
Isso passa por ter culturas adaptadas ao nosso clima?
Temos de ter culturas adaptadas ao nosso clima e temos de regar com mais eficiência, em vez de regar por inundação ou por expressão, deve-se regar gota a gota. Dizemos que a agricultura usa muita água, mas o que acontece é que os alimentos gastam muita água para serem produzidos. Por exemplo, um quilo de arroz precisa de dois a três mil litros de água para ser produzido, já um quilo de carne de vaca gasta 15 mil litros de água. No entanto, consigo produzir um determinado quilo de alimentos com dez ou com 100 litros. Posso produzir uma laranja com dez litros ou com 100 litros de água, dependendo se dou gota a gota ou se uso um sistema menos eficiente. Temos de perceber que quando há momentos de mudança há resistência e é preciso dizer que a atividade agrícola é de risco, muito sujeita às intempéries: chuva, sol e granizo e não tem seguro. Também é por isso que há subsídios, a agricultura em Portugal recebe por ano cerca de 1500 milhões de euros em subsídios, em linha com o que se recebe em toda a Europa. Portugal produz 3500 milhões por ano, correspondentes a 1,6% do PIB. É quanto a agricultura contribui para a riqueza do país, quando a média europeia é 1,3%. O país que tem o maior contributo é a Roménia, com 3,3% e o menor é o Luxemburgo com 0,2%. A agricultura não contribui muito para a riqueza do país e tem vindo a diminuir nos últimos anos e chegou a pesar 6%. E como há a globalização, o que é produzido aqui, é produzido ali. Além disso, os agricultores portugueses têm uma idade média muito elevada, cerca de 65 anos, e vão ter alguma dificuldade em se adaptarem a novas culturas. É completamente diferente produzir milho ou produzir mirtilos ou framboesas em estufa. Para ter estufas para produzir morangos que se vendem a vários euros o quilo é preciso investir e depois é preciso também ter em conta que podem vir ventos e dar cabo das estufas e as dificuldades em obter empréstimos bancários para as comprar. E é preciso ter em conta que estar no regadio do milho é diferente de estar a investir em mirtilos, abacates, amêndoas ou oliveiras. Tudo isso obriga a tecnologias diferentes, a investimentos diferentes e isso não se faz de um dia para o outro. Agora, o que é que acontece? Olhando para a sociedade portuguesa como espetador vemos que há quem diga que se está a gastar muita água e que a temos de restringir, por outro lado, os ambientalistas dizem não a mais uma barragem e transvases nem pensar. Já alguns representantes de agricultores dizem que querem mais barragens, porque dizem que a água que choveu no inverno se tivesse sido armazenado agora não faltava e há quem defenda que como há mais chuva no norte vamos ter de fazer barragens no norte, deslocando depois para sul. É legitimo que o faça, mas é preciso ter em conta que fazer barragens e, mesmo que se decida hoje só estará pronta daqui a 20 anos. Não é uma solução, nem para esta seca, nem para as próximas. É uma solução a prazo. Por outro lado, a União Europeia já não vai pagar barragens. A última grande obra que pagou foi o Alqueva, que custou 2500 milhões de euros e podemos ver o que é que está a acontecer com e qual é o seu contributo.
E quando não somos um país rico para fazer tantos Alqueva…
Sou favorável que tenha sido construído o Alqueva, até fiz parte do Governo que o viabilizou. A barragem foi paga 70% a fundos perdidos e foi uma decisão política que não foi fácil. Havia muitas pessoas contra e do ponto de vista económico é um projeto que está a dar prejuízo, já que vende água muito barata e apesar de ter havido tentativas para aumentar o preço da água, acabou por não o fazer. Basta ver as contas, o Alqueva está a dar prejuízo e não contribui muito para a segurança alimentar, porque 70% é para a oliveira e o azeite é para exportação, 20% é para a amêndoa que também é para exportação e só 10% é que é mais para consumo interno. O Alqueva não contribui muito para a segurança alimentar do país, porque está a trabalhar sobretudo para exportação e com água muito subsidiada. A água do Alqueva está a ser vendida a três cêntimos e tal o metro cúbico. Por exemplo, a água para rega na Califórnia chega a atingir os dois euros o metro cúbico e em Israel vale 30 cêntimos o metro cúbico se for reutilizada e 60 cêntimos se for água natural. Concretamente, a solução de fazer barragens e de fazer transvases é possível, mas demora 20 anos, no entanto, ambientalmente é muito controverso. Fazer barragens tem estudos de impacto ambiental e a diretiva europeia diz que só se pode fazer uma barragem se não houver alternativas e o transvase ainda é mais controverso. No entanto, há quem defenda que no Norte dever-se-ia apostar num cano muito grande do rio Douro para o Alentejo. Isso, do ponto de vista ambiental seria muito, muito controverso e teria certamente muita oposição e nem seria subsidiado por fundos comunitários. E, do ponto de vista social, alguém teria de decidir, por exemplo, num momento de crise como está agora o Algarve, se fazia isto ou aquilo. Isto é, se num momento de crise iria regar as amendoeiras ou as vinhas no Douro, ou se iria regar a cereja no Fundão ou no Alentejo. Não queria estar na pele da pessoa que iria tomar essa decisão. Seria extremamente controverso, mais, estar a fazer barragens no interior, caricaturando, era quase fazer uma barragem a meio do interior, encher tudo de água para inundar o interior norte, tirar de lá as pessoas e depois fazer um cano para o sul ou para o litoral.
No Alqueva isso foi feito…
Uma coisa é tirar a Aldeia da Luz, outra coisa é tirar uma população maior. É muito controverso e em nome de quê? Em nome de uma agricultura que para o PIB português vale 1,6%? É uma questão política, económica e social. E social é importante porquê? Quem tem hoje 65 anos já não se vai adaptar com facilidade às novas tecnologias, às novas culturas, etc. O que se tem de fazer é apoiar os novos agricultores para serem formados para as novas necessidades. Visitei em Israel o centro de agricultura do deserto, que tem um centro de investigação que apoiava os agricultores e que dizia o que iam produzir no próximo ano para serem mais rentáveis. Por exemplo, têm de produzir tomate, porque sabem que os concorrentes de Espanha e de Marrocos estão com dificuldade e, como tal, apostam numa variedade que aparece mais cedo do que os outros e que podem ser colocados nas prateleiras do supermercado e que duram três ou quatro semanas, enquanto os outros apodrecem ao fim de uns dias. Este é o nível de requinte e de sofisticação que estão a fazer. A agricultura hoje começa a ser em alguns sítios quase uma fábrica. Por exemplo, já dizem que conseguem a partir da Holanda alimentar o mundo todo, através das estufas.
É preciso então mudar a mentalidade?
Não é só mentalidade. Isso demora anos. Em Israel ainda não acabaram a mudança que começaram há 20 anos. Os grandes exemplos são Israel e a Holanda. Na Holanda têm estufas aquecidas, climatizadas, em que põem motores a diesel para as plantas crescerem mais rapidamente, têm robôs a fazer a manutenção, enquanto nós temos de chamar pessoas do Bangladeche e de outros lados.
Os agricultores portugueses também dizem que usam muita tecnologia…
Temos vários tipos de agricultura. Temos uma agricultura a norte, sobretudo de minifúndio resiliente, de agricultura de subsistência e de complementaridade. São pessoas que trabalham nas fábricas e depois têm uma horta e faça chova ou faça sol tiram sempre alguma coisa e até têm poucos subsídios. Depois há alguma agricultura sofisticadíssima ao nível da Holanda de estufas, onde põem as framboesas no avião e não precisam de subsídios. E depois há algumas agroindústrias, essencialmente no centro e no sul do país, que estão muito dentro da lógica da agricultura intensiva, com uma longa tradição de subsidiação, com rentabilidade e que não querem muito mudar o que estão a produzir. No entanto, é possível haver mudanças porque temos em Portugal o melhor da Holanda e o melhor de Israel. Como também temos municípios dos melhores do mundo – é o caso de Lisboa e Porto – como depois temos 200 que estão a perder água entre 30 a 80%. Temos situações que são diferentes e tem de haver decisões sobre esta matéria, mas não são decisões que se tomam em maio e em junho para aplicar em julho, agosto e setembro. São decisões que demoram anos. Tudo aponta para que qualquer Governo que esteja cá para o ano ou daqui a dois anos vai inevitavelmente ter de tomar medidas estruturantes. E quais são essas? Pode criar condições para haver reutilização da água. Temos 600 milhões de metros cúbicos que estão neste momento a ser desperdiçados no mar e que poderiam ser utilizados. Também podemos ir buscar a água ao mar a que quisermos, como podemos tomar decisões sobre os alimentos que queremos produzir cá ou comprar. Por exemplo, Singapura é muito mais rico do que nós e não tem agricultura nenhuma, compra tudo fora porque não tem espaço. Estas são grandes decisões políticas, mas que demoram tempo.
Fala-se muitas vezes da necessidade da reutilização da água e da dessalinização, mas porque é que Portugal continua a resistir a estas duas tendências?
Portugal e a Europa. Em relação à reutilização, usamos entre 100 a 150 litros de água por dia que é transformada em esgoto, ao fim de uns segundos. Não consumimos água, sujamos água. Ora, essa água em Portugal toda somada dá 600 milhões de metros cúbico e é o equivalente à água que sai do Alqueva para a rega de 120 hectares, o que é muito grande. O que estamos a fazer com essa água? Estamos a atirar para o mar, sem necessidade nenhuma. Quanto é que gastamos nisso? Em cada metro cúbico de água tratada, no tratamento dos esgotos, na sua conta da água estão 70 cêntimos por cada metro cúbico de água que é lançada no mar. No entanto, com mais uns cêntimos essa água servia para a agricultura e com mais alguns cêntimos se for devidamente tratada dá para beber outra vez. Quem é que já faz isso? A Namíbia e Singapura. Diria que daqui a alguns anos, não muitos, a regra será reutilizar, mas não só para a agricultura, mas mesmo para beber. Em Singapura tratam a água para um nível de água potável, em que a descarregam num lago e depois captam-na diretamente para abastecer. Já na Namíbia, cuja capital é Windhoek, estive nessa estação e nem sequer a atira para o lago, ou seja, a estação de tratamento de esgotos trata suficientemente bem, de maneira a que a água possa ser bebida logo a seguir. É o que se faz, por exemplo, nas naves espaciais. Não levam água para o tempo todo, a tecnologia está aí e já só custa mais para aí uns 30 cêntimos do nível já muito elevado, que é feito na generalidade das nossas estações de tratamento. Porque é que não fazemos a reutilização? Não fazemos para a água potável, porque ainda há restrições culturais, porque em termos técnicos não há esse problema. Já bebi água que foi esgoto não sei quantas vezes, o Bill Gates está farto de fazer programas a mostrar que essa é uma saída. Como é que isto pode ser feito? É pôr o Cristiano Ronaldo e a Madonna a fazerem isso para depois as pessoas copiarem. Mas isso não vai acontecer já, o que pode acontecer já é para a cultura. Então porque é que neste momento não se usa essa água para agricultura? Não se usa, porque o agricultor tem água no poço gratuita e tem água no rio quase gratuita. Como a água que sai das estações de tratamento de esgotos ainda precisa de ter algum tratamento complementar – custa talvez 10 cêntimos o metro cúbico – e como os campos estão longe das cidades é preciso bombar a água e levar os canos até lá. A água em Portugal é 10% doméstica, 80% agricultura e 10% indústria. E paga-se exatamente 36 milhões por ano. E quem é que a paga quase toda? É o setor doméstico, que gasta muito menos do que a agricultura. Quanto é que a agricultura em Portugal paga pela água? Pouco mais de um milhão por ano, quando gasta quase dez vezes mais. Em Espanha, em 1985, nacionalizaram a água, em Israel foi quase no ano 2000. Acho que não haverá razão para uma nacionalização, mas em alguns sítios terá que se fazer alguma coisa. O que acontece em Portugal é que há muitos furos que são ilegais, não foram licenciados como deveriam ter sido, nem têm os contadores como era obrigatório e, por isso, não são fiscalizados. Por causa disso é possível obter, principalmente por parte dos grandes utilizadores que são agrícolas, grandes quantidades da água natural, dos furos e dos rios praticamente sem pagar. E, como tal, não estão disponíveis para pagar o tratamento adicional e o transporte das águas residuais tratadas até aos campos. Sai mais barato para as empresas da água atirarem a água para o mar, tratarem ao nível que é obrigatório pela diretiva das águas residuais urbanas, que aliás, está a ser agora revista e vai obrigar a tratar mais ainda. Israel reutiliza a 100%, porque tem infraestruturas, teve uma política nacional nesse sentido e porque a alternativa era captar uma água natural que custasse o dobro. Neste contexto e com esta história que temos não compensa em Portugal as entidades gestoras tratar a mais e a decisão de pôr as pessoas das cidades a pagarem mais para os agricultores não pagarem é discutível. Alguém pode dizer que o agricultor já tem muitos subsídios e ter ainda mais é pouco razoável.
Corremos o risco de abrir a torneira e não ter água?
Creio que não, porque nos anos 90 foram feitas estações de tratamento muito modernas com uma leva de fundos comunitários, a qual tive o gosto particular de participar nisso, enquanto secretário de Estado. E levam a que as grandes últimas secas, designadamente a de 2005 e 2017, não tenham tido reflexo nas torneiras. Houve seca, mas nunca faltou água e quero acreditar que nas próximas secas isso irá continuar a acontecer ainda mais, principalmente naqueles sítios onde ainda houve problemas, como o Algarve, Bragança, Viseu e em algumas aldeias do Alentejo, em que há uma população muito dispersa, com quatro ou cinco pessoas cada vez mais velhas. A solução será servi-las com água de alta qualidade, mas com rodas, ou seja, levar camiões, porque não compensa estar a fazer canos de dez quilómetros para abastecer uma casa. No Algarve está prevista uma dessanilizadora, tal como foi feito, em 2017, na África do Sul e na Austrália. Houve situações de seca e víamos pessoas com carros caríssimos a parar ao pé de fontanários para encher os bidons. Não vai acontecer mais, porque construíram a dessanilizadora para um terço do consumo e isso quer dizer que se faltar água de todos os lados têm um terço do que gastamos habitualmente. Ou seja, em vez de gastarmos 150 litros podemos gastar 50 litros durante uns meses e, em vez de tomar um duche de cinco minutos toma um de um minuto. Logo, no Algarve, a solução já está prevista, vai ter problemas durante um ano ou dois, mas vai ficar resolvido. Em Bragança também está a ser resolvido e em Viseu, tendo em conta o que foi anunciado, está prevista uma extensão das águas do rio Paiva para o concelho. Isto revela que o problema do abastecimento da água em Portugal estará resolvido, porque temos bons sistemas, sistemas modernos que foram construídos a partir da década de 90 e que teve uma continuidade política nos últimos 30 anos. Os governos foram mudando de cor, mas, contrariamente ao que acontece às vezes em outros setores não andaram a olhar para trás e a dizerem que o que esteve antes de mim fez mal e que vai fazer diferente só para ser diferente. Neste caso, houve uma continuidade política, o que é louvável e é um exemplo para outros setores em Portugal. Quero acreditar que não vai haver restrições com o abastecimento público, exceto em situações muito pontuais e mesmo aqueles casos em que houve problemas em 2017, neste momento estão corrigidos ou em vias de correção.
Este ano assistimos a fortes inundações, principalmente em Lisboa, e há quem critique que não houve aproveitamento da água…
Percebo o discurso. Há muitas pessoas em Portugal com casa com jardim e daqueles que a têm quantos é que armazenaram essa água para usar mais tarde? Ninguém. E porquê? Porque o armazenamento fica caríssimo e ainda por cima, a água cai toda de chofre e muito concentrada. A solução seria fazer barragens muito grandes e como nos sítios onde chove não se usa essa água toda depois tinha de se fazer uns canos gigantes para trazer água, por exemplo, do norte para sul. Só que isso não é ambientalmente adequado e financeiramente não faz sentido. Trazer a água do norte para o sul gastava três quilowatts hora por cada metro cúbico e chegava ao Alentejo a custar quase um euro o metro cúbico. E era pago com quê? Com o dinheiro de impostos. Mas esse dinheiro de impostos faz falta na saúde, na educação, na justiça, nas Forças Armadas. O dinheiro dos subsídios é dinheiro nosso. É evidente que os agricultores querem mais subsídios, mas a agricultura é o único setor que segue um subsidiação corrente, mais ninguém tem isso. Não devemos antes subsidiar quem é pobre e não tem comida? Mas essa é uma questão política, como também a água é uma questão política.