por Raquel Abecasis
Está farto de quê?
O PS e o PSD têm que se entender. Escrevi esse artigo porque acho que nós andamos entretidos com umas coisas que envolvem casos, pessoas, coisinhas aqui, coisinhas, umas mais importantes, outras menos importantes. Não estou a tirar nota a nenhuma delas, mas eu tenho outras preocupações.
Devíamos estar a discutir o quê?
O país tem problemas muito complexos, de difícil solução e que requerem muito, muito debate e muita discussão e, sobretudo, muita reflexão. Eu tenho outras preocupações. Tenho uma grande preocupação com as desigualdades e uma grande preocupação porque o país está num processo de empobrecimento. Há crescimento económico, não estou a retirar o crescimento económico, que tem sido razoavelmente significativo. Muitas entidades previam o contrário. Mas eu acho que nós temos uma dificuldade grande em lidar com uma espécie de país dual. Precisamos de criar maior riqueza. Vivemos num país que vive no standard europeu médio. Mas depois temos uma classe média alta, uma classe alta que tem algum significado. E depois temos um outro país. Temos um país que tem imensas dificuldades, porque tem salários baixíssimos, porque tem dificuldades de acesso à saúde, porque não está minimamente motivado para se empenhar num trabalho. Não estamos a pensar no futuro, em modernizar o país, fazê-lo crescer e dar confiança às novas gerações. O problema da falta de confiança é muito grande. E muitos destes livretos que nós temos de variadíssimo estilo distraem-nos do essencial. Na minha opinião, o essencial, neste momento, é fazer crescer o país do ponto de vista económico. Saber distribuir a riqueza que temos. Combater as desigualdades e, sobretudo, ter uma atenção muito especial ao bem-estar das pessoas.
Que consequências acha que isso tem para o país?
Isto está a degradar a qualidade da democracia. Isto está muito errado. Está tudo muito errado.
E como é que isso se explica quando tivemos uma maioria absoluta há pouco mais de um ano?
A maioria absoluta resultou num Governo que, à partida, me pareceu relativamente fraco. É muito fechado sobre si próprio. Fechado dentro do partido. Quer dizer, uma maioria absoluta permite entrarem pessoas diferentes no Governo. Uma maioria absoluta permite um grande campo de recrutamento. O primeiro-ministro optou por uma solução diferente, portanto, fechou-se um bocadinho naquele núcleo mais próximo dele – pelo menos, na aparência. E depois eu não sei, mas tenho a sensação de que terá havido algum encantamento com a ideia da maioria absoluta. A ideia de que vamos ter muito tempo, temos aqui quatro anos e tal, temos financiamento, temos dinheiro e, portanto, vamos fazer isto com…
Mas acha que há projetos? Quer dizer, para além do objetivo das contas certas e de gastar o dinheiro do PRR, qual é o projeto?
Não sei se há projeto. Nós só podemos ter um projeto: fazer com que o país, como país integrado na Europa, atinja níveis de desenvolvimento na área da tecnologia, na área dos apoios sociais, na área da educação, na área da saúde, enfim, nos sectores fundamentais que se aproximem dos níveis médios da Europa. Porque esse é que tem de ser o nosso objetivo.
Mas acha que estamos nesse caminho?
Não. Quer dizer, eu não sei se estão a perder o tempo que têm, ainda não percebi bem. Ainda não percebi bem o que é que se está a fazer. Neste ano e meio, pelo menos um terço do tempo foi de remodelações e de discussões. E não sei se isso tem sido uma coisa boa, tem sido um espetáculo muito pouco dignificante.
E o que acha que isso faz à democracia?
Acho que, sobretudo, retira dignidade às instituições. Nós temos uma crise de instituições. É indiscutível que existe uma crise, mas esse não é um problema só português, é um problema global. Embora nós aqui, com a tal maioria absoluta, tivemos condições para fazer diferente. Maioria absoluta não significa que não haja problemas. Eu achei que esta maioria absoluta criou alguns problemas e deu alguns tiros no pé. Poderá eventualmente recuperá-los.
Acha que ainda é possível?
Eu acho é que é desejável. Isto que está a acontecer, esta teimosia do primeiro-ministro em não mexer no Governo… Os primeiros-ministros nunca gostam de mexer, quanto mais nos governos já em perda. Agora, o primeiro-ministro tem pela frente três anos, mais de três anos…
Vamos chegar lá?
Eu gostava que nós pudéssemos chegar. Agora, não chegamos lá com estes episódios loucos. Agora, se me pergunta, eu gostaria que isto fosse até ao fim; claro que gostaria que isto fosse.
Mas o professor Marçal Grilo, que já integrou um Governo, sabe como é que estas dinâmicas se passam internamente no ponto em que estamos. Como é que se vai sair daquela situação? Até porque o Presidente da República já deu mostras de que não vai deixar que isto passe sem consequências.
O primeiro-ministro cometeu um erro. Na minha opinião, cometeu um erro. Que na altura parecia que não tinha, mas que tem efetivamente uma repercussão muito grande. Foi ter mantido um ministro que nós todos percebemos que é indefensável. É muito difícil que um primeiro-ministro possa continuar a defender ou a proteger um membro do seu governo depois de tudo o que se passou. Este braço de ferro com o Presidente da República está a correr mal. Quer dizer, se queria mostrar que mandava no governo ou que, efetivamente, o primeiro-ministro é quem manda no Governo, se queria mostrar que não devia haver, que não podia ficar como que dependente da tutela do Presidente da República, este incidente que escolheu foi infeliz. Volto à sua pergunta e julgo que o primeiro-ministro pode perfeitamente fazer uma remodelação profunda do Governo. Pode. Não vejo que deitando este governo abaixo, ou melhor, acabando com esta maioria absoluta, uma dissolução do Parlamento resolva os nossos problemas, os problemas que eu colocava no início. Não é o partido A ou B. São problemas inerentes a nós todos. É preciso perceber quais são as soluções que podem aparecer e que podem ser feitas e equacionadas.