José António Almeida. “Saga tão antiga quanto o mundo”

Um dos nossos mais astuciosos erotistas, este poeta que viveu a melhor parte da sua vida numa vila da província alentejana, tem prosseguido num ciclo de obras em curso sob a designação geral de Metamorfoses aquela que é, entre nós, a obra poética mais implicada no retrato da vivência do desejo homossexual numa altura em…

O desejo é tão difícil de dizer, se não o embaratecermos com exageros ou lirismos desonestos, mas atendo-nos às suas candentes minúcias. Seduzidos por contágios de tramas cada vez mais ansiosas, nuns trânsitos absorvidos em referências inócuas, é raro sentir-se que os poemas ainda se compõem dessa palavra ajustada, a expressão que melhor se entretece e vibra na integração de todos os elementos, ao ponto de iluminar o que tem ao seu redor com um tom vago e caloroso e, ao mesmo tempo, exacto e firme. Nalguns versos ainda damos pela “grega lâmpada” acesa, e sem que todo o alcance desta noção se deixe apreender, sabemos a diferença desses enredos mínimos, pacientemente articulados, cheios de um vigor intimista que se transmite com o encanto de uma razão aberta a todos. Tem o gosto de uma língua mais experiente ler alto frases que não elaboram demais, mas que fiam e cosem elegantemente o seu fôlego, contando um desses tantos e ao mesmo tempo tão ansiados encontros fortuitos, desta vez com um operário de trinta e poucos anos e que viria a revelar a “arte de tão tranquilo ficar nu/ – e de fazer cantar osso de náufrago/ na garganta de mar brilhante e novo”. Inscrevendo um epitáfio na lápide do vento, segundo o título do poema, José António Almeida repete que nunca foi mais feliz com outro, e relembra a cena: “Com vigor – e compasso – foste mestre/ no mais íntimo círculo da luz:// homem depois dormido no meu braço/ – sob a grande lanterna do segredo./ Desatei – de joelhos – os sapatos/ no solo da montanha do teu corpo:// a música de sinos em redoma/ na tenda – sem janela – desse quarto./ E sempre que relembro nosso tempo,/ o coração sorri – senhor de nada.”

Irá notar-se uma vez mais a forma como estas são composições que não abrem mão de um rigor métrico e rítmico urdido com uma tal astúcia que, sem dar espaço ao beatério das rimas, tudo aqui ressoa e está tocado pela graça de sons que se combinam segundo esses ímpetos, anseios ou embalos que estruturam a nossa música interior. Ganhar o gosto por esta poesia é no fundo ceder a um avanço que é feito com a serena calamidade daquilo que é mais natural. A surpresa vem do seu apelo a esses aspectos tantas vezes descurados e que logo se revelam a nossa sensibilidade a elementos gramaticais ou de sintaxe como se fossem zonas erógenas. E que divertido pássaro sensual aqui temos, babado por recordações… Mas se a volúpia que deflagra nestas páginas não é propriamente a de um génio original, nem sendo difícil situar tantos destes processos noutros autores, deve, no entanto, reconhecer-se como esta voz na sua contenção soberba quase nos toca de leve com os lábios de tão perto que se coloca ao dizer esse segredo que não permite nunca que uma aventura se torne um hábito, e nisto traz-nos esse gosto mítico daqueles cenas que Kavafis fazia transbordar dos livros de História para a intimidade, aproveitando ainda a mestiçagem com aquele fulgurante encadeamento de imagens que nos sobressaltam nessa obra-prima prosódica que é o romanceiro cigano de García Lorca. Joaquim Manuel Magalhães havia já notado naquela que terá sido a primeira notícia crítica do aparecimento deste poeta como, naquilo que escreve, “além desse cruzamento metonímico de culturas, se interligam momentos óbvios da tradição literária em português: a saudade, o lirismo da epopeia camoniana, Bernardim e a fragilidade de um desejo apelativo, também Pessanha, esse cume do quase nada para dizer onde se enreda muito do que forte se subentendeu, se alquebrou, se musculou na língua que José António Almeida continua”.

Poetas como José António Almeida ou António Barahona são a prova de que uma tradição ancestral e mais vasta pode perseverar na sua discreta radiância mostrando-se impávida face às importunidades e aos desaforos dos modernismos. E a este respeito é importante ter em conta a lição de Octavio Paz, que nos lembra que “a ideia da imitação dos antigos é uma consequência da visão do suceder temporal como degeneração de um tempo primordial e perfeito. É o contrário da ideia do progresso: o presente surge como insubstancial e imperfeito face ao passado e o dia de amanhã será o fim do tempo. Esta concepção postula, por um lado, a virtude regeneradora do passado; por outro lado, contém a ideia do regresso a um tempo original – para recomeçar o ciclo da decadência, da extinção e do novo começo. O tempo gasta-se e, ao mesmo tempo, reengendra-se. De um e outro modo, o passado é o modelo do presente: imitar os antigos e a natureza, modelo universal que contém nas suas formas todos os tempos, é um remédio que atarda o processo da decadência. A ideia da modernidade é filha da noção do tempo rectilíneo, em que o presente não repete o passado, e cada instante é único, diferente e auto-suficiente.”

Há muito que sabemos como as tradições comportam ecos do mesmo modo que abrem caminho à renovação, e assim ao eleger uma devoção quase sanguínea por certos temas e modalidades do classicismo grego, José António Almeida sabe que o faz hoje de forma quase provocadora, num anacronismo que roça com gozo a altivez diante da decadência da época, e isto refazendo obliquamente e a partir de cacos essa substância antiga dos mitos. Entre a derrocada e a dissolução completa dos caracteres da ancestral cultura ocidental, com o seu esquema métrico quase inflexível, os seus versos genuinamente escandidos, este poeta não ressuscita propriamente a antiguidade, mas alimenta-se desta, elevando o erotismo a uma religião privada, numa relação com o mundo que se vai inscrevendo de forma sugestiva. Há nestes versos ao mesmo uma discrição fenomenal, uma candura tocante, um tom que nos envolve com o seu enlevo em que, de um pobre e repetido enredo, se guardam esses lugares afectivos, esses rastos retocados de um ser que esconde a intensidade dos seus ímpetos. Há uma indecência doce de flor silvestre assobiando num vaso com motivos clássicos, uma tessitura que se constrói num equilíbrio espantoso de sugestões tão subtis que banham quadros comuns de uma luz feérica que nos enche os sentidos da sua promessa de aventura.

Vemo-lo balouçar na gaiola, entre as grades observando toda a gente, atendendo às falhas comuns, a vícios e descaminhos, entre o tédio e a astenia para logo assumir aquela postura tensa de quem recompõe a sua melhor postura, para que se note o brilho ondulante nas cores das suas penas, isto quando na paisagem gasta, povoada apenas por corvos, lhe surge “um melro – ou livre fauno – de valor”. E então o olhar “fica acesa lâmpada”, e entregando-se à “febre de lançar um assobio”. São os milagres da atenção que pontuam de detalhes fulgurantes e subtilíssimos a rede destes versos, querendo cada um deles prolongar-se num eterno suspiro, enquanto trazem cores de fascínio à sombra de tantas horas brancas, nessa vigilância de quem atravessa a vida lendo os astros em busca de indicações sobre fortuitos encontros, antecipando alguma troca sexual.

O resgate é o que fica de tanto lançar o olhar sobre um mar que seria amargo para quem não soubesse fazer do desejo esta força capaz de trocar as voltas ao tempo, deleitar-se nos jogos de memória, diante do “fulgor desse céu de ilhas remotas/ – encobertas em mar velho de fábula”. Tantos destes quadros impõem-se-nos como sortilégios num lirismo que troca o desgosto de se passar longas temporadas à míngua de qualquer intriga mais calorosa, apurando detalhes desgarrados que vêm nalgum postal com a sua vista ancorada nalgum tugúrio de província entre esse som das vagas embatendo ao fim da tarde na falésia, enquanto, “sob a nuvem vermelha além baloiça/ encriptado num barco o nosso amor”. Uma dose suave de delírio é uma boa forma de educar a realidade, de molhar nos lábios a impressão que se colhe das coisas ao nosso redor, favorecendo desvios e enredos mais com uma cadência mais atreita a prender o ouvido humano. Repare-se nesta sucessão de gráceis impressões “mais além do arco-íris”: “Lázaro regressado dos infernos/ da prisão, da doença, morte certa// – com muletas e passo vacilante:/ ralo cabelo branco, negro olhar.// Enquanto eu, sem prever, na tarde quente/ um cigarro fumava ao pé de pássaros// – cantores ao amparo da frondosa/ árvore de pretéritos encontros.// A dama da memória lança ao vento/ acre e doce perfume do passado:// com a face velada por mantilha/ – serpente nessa sombra do pomar.// O braseiro de Julho, mais o canto/ de canários – e nós, ambos silentes:// assim verde fantasma ao sol brilhante/ – sob a morta folhagem do jardim.” Tudo tão medido nestes dísticos, num cuidado de quem tem aturado da vida os maiores destratos como o recorte mais perfeito de certos gestos tímidos, secretos, prenhes da intensidade absurda das paixões que sobrevivem “num país do tamanho de azeitonas”, e no qual alguns descobrem entre as horas, minutos ou segundos como “sol e lua são do mesmo sexo”. Um enredo íntimo e musical colhe-se entre sábias reversões, nesse adagietto alentejano em que o poeta nos diz como “as aves migradoras sobre o mar/ assombram o meu sono a noite inteira”, aves que entram por aquela “sonâmbula morada toda branca” com o enlace das “ondas sob as aves sobre as ondas” e que “avermelham a casa num enigma”, perfumando-lhe o sono. Colhe-se um sumptuoso êxtase aqui, e não demoramos a dar-nos conta desse exercício espantoso entre o corpo e os elementos e a memória, “com velas assoladas pelo vento/ moendo na garganta o grão do verso”, e como tudo procede “de saga tão antiga quanto o mundo/ – no secreto moinho do meu corpo”.

Há nestes versos aquele fervor sensualista de alguém que suporta os dias para retomar logo depois a mesma noite, “a noite: palimpsesto tão arcaico”, e nesta as repetições como a insistência são como um rumo, tentativas e perseguições, um cerco feito de forma obsessiva a um qualquer objecto de desejo, tantas vezes tão esquivo. Magalhães serviu a esta poesia uma síntese à qual, mesmo décadas depois, o seu autor não soube mais escapar, como se encadeado por esse efeito de reconhecimento que, sendo embora tão justo, pode sempre provocar um deslumbramento perante o próprio reflexo que conduz aquele rosto a uma disciplina de fazer corresponder as suas expressões ao traço que nalgum parágrafo esquecido, como num “sepulto mar de sonho”, viu afogar-se esse busto proposto à eternidade. Notava ele como esta poesia “vive da elipse, da sobriedade e contenção vocabulares, da harmonia prosódica e duma contínua metonímia memoriosa, na qual os episódios são evocados fora de qualquer imediatismo brutal, antes tecendo uma ternura afectiva, mesmo nos encontros casuais; e um ambiente descritivo de enredos doces e perdidos, que carregam de ‘canção’ estas – apetece chamar-lhes assim – ‘coplas’.”

Se tudo isto é inegável, há, por outro lado, uma dose de convenção que em tantos momentos chega a tornar-se quase insuportável, alturas em que o efeito hipnótico desta escrita, que faz da rasura a sua principal argúcia, se quebra, e então apenas ouvimos uma certa ladainha aferrada a esse tom tradicionalista, essa toada ou balbucio debaixo de água, quase em tom de súplica, roçando o patetismo, nessa cópia de amores que, se sobrevive, o fica a dever a um traço de rudeza e a um certo calão inamistoso desses que, ficando pintados, não sustiveram a pose mas, com os seus gestos bruscos ou desengonçados, acabaram por desfigurar o idílio e, desse modo, quase troçam destes desvelos de menina. E isto, ainda que nos deixe na língua um certo gosto a Kavafis, soa também a outra coisa, muito longe desses ardores clássicos, quase desdenhosamente estranhos a todo esse esforço estetizante, como figuras que nos quadros exibissem algum sinal de martírio ou até de revolta contra essa encenação culturalizante e que tresanda a afectação, pedanteria. Eis um dos melhores poemas dos dois livros, com o título “Recordação da Morte Noutra Praia”: “Tadzio em movimento no café:/ de tronco nu, vivaço, sem vergonhas./ A dizer palavrões com a pronúncia// cerrada do granito da montanha/ das eras afonsinas dos primórdios./ Passeia, vagabunda, a mão no sexo:// o pé bem desenhado pelo sol/ – um tufo de cabelo nas axilas./ E fala – rouca, a voz – da farra de ontem// na praia com piratas e corsários:/ assim jovem Homero sem gramática/ – entre fumos e copos de cerveja.” Martin Amis fez em tempos um comentário que hoje seria certamente condenado como homofóbico, dizendo-nos que o dinheiro tende muitas vezes a revelar-se um problema na medida em que o sexo homossexual é sempre pago, mais tarde ou mais cedo. E sem querer entrar em generalizações, lendo este poema e a forma como ao outro se impõe uma representação de todo em todo descabida, mesmo se cativante, fica claro que o desejo ali tem um preço e é um pretexto tão barato como outro qualquer.

E se esta constatação pode ser algo cruenta se for encarada à laia de balanço sobre um livro como “Mar Vermelho na Vila Toda Branca”, esse primeiro tomo do ciclo de obras em curso que assume o título geral de “Metamorfoses”, o segundo tomo – “O Minotauro e Outros Versos Assim”, dado à estampa no passado mês de abril, abre com uma “Arte Poética” que vem lançar mais longe a linha: “Alterar – só com três versos – a órbita/ terrestre, esse trabalho me reclama./ Preservar – assim vivo – um gafanhoto// é já uma grande tarefa para mim./ A perna, para salto desenhada/ – as asas em lembrança de outro voo.// A verde força de eros, tão da terra/ – um gafanhoto breve e sem abrigo./ Ao poisar, de repente, em minha carne/ – correndo em bicicleta na planície./ Grafitar – assim belo – o gafanhoto/ é um louco trabalho ou sonho de Hércules.”

O brilho destes versos tem algo de um suor lascivo, deixando às entrelinhas o gozo de quem se permite sublimar e degradar, num mesmo compasso, aquilo de que fala, explorando assim tanto o lado impetuoso como a vulnerabilidade que caracteriza as intrigas da carne. A intransigente dedicação deste poeta aos aspectos formais permite-lhe assediar as convenções como a moralidade, ir entre a copla popular e o decassílabo mais exigente e deixar uma mancha de sordícia que se ri. E isto reforça-se ainda na sobriedade e apuro gráfico destas edições – não (edições) –, com um papel de excelentíssima qualidade. O labirinto é a morada de alguém entregue a esses devaneios “de velho entorpecido pelo álcool/ que se sonha regressado a Creta”. Os mitos são um amparo, um modo de confiar que a desolação do corpo ao menos ainda prende nos gestos uma música antiga até à ternura, e pisa, assim, ainda que tropegamente, aquele “chão arcaico/ de rapazes – e o toiro – num mosaico.” E nisto, “o velho – ou marinheiro – assim se sonha/ a reviver marés – ao ler um verso.”

É esse o prodígio daquele que, com “educados modos”, se defende do ressentimento e da insipidez, através dessa elegância talvez excessiva de quem se encontra cativo de ritmos arcaicos. Vai divisando assim essa frágil morada “por cem olhos construída/  – mil pupilas de mortos acordados.// Três mil anjos, arcanjos, serafins/ para enquadrar a lua na vidraça.// Traças um verso – move-se a parede./ Há mais uma janela para a rua?// Assim outra varanda na varanda./ De todas as varandas, uma torre// – do sino solitário na matriz./ Um melro aquém do verso ou lá por dentro?// Nessa morada erguida por cem olhos/ – mil leopardos caçando uma só flor.”

E se isto pode ser encarado pela maioria como uma ninharia petulante, esse esforço de deixar ressoando concavamente na memória humana certas imagens de breve esplendor, esta carrega em si uma espécie de sonho que eleva esse desespero da carne a um céu cheio daquele temor mitológico, um sentido exuberante da existência.

Outros já falaram disto, desta espécie de júbilo íntimo de quem desce à sua memória, que chega assim a parecer interminável, e consegue tirar dessa vertigem alguma recordação espantosa que fica a reluzir como uma moeda sob a chuva. Para que o carinho que nos resta não se acobarde em tédios, é importante, mesmo sem grande ruído nem presunção, resgatar essas coisas mudas e perdidas, e reaver este disperso amor que, como nos diz Borges, é o nosso desanimado segredo.

Sempre o poeta busca distrair-se da miséria do mundo, levando o gosto que tomou por alguns saborosos pormenores, e refazendo-o num sonho sujeito a essa “gravitação do amor, que tanto nos justifica” (Borges). É através desse gosto que algum sedimento de eternidade ainda se propõe neste jogo. E assim vai ele a fazer de marinheiros, operários ou saltimbancos, mais ou menos jovens, Orfeus que o resgatem desse vazio sentido como um inferno, a vila tão pequena: “A vila assim de pobre e muito feia/ – manta rota de luzes e de sombras./ Ossos – em turbilhão – ou cinza assente?/ Que fornicam, trabalham, tudo olvidam./ A vida assim de breve e desolada. / Aqui – ou em qualquer outro lugar.”

Contra isto só resta a memória, não apenas esse heroísmo íntimo que cada um carrega consigo, mas já esse balanço clássico, esse imperioso consolo contra todos os momentos em que parece que a vida poderá até querer, não quer é connosco. “Talvez que eu fosse velho. Ele não quis/ concretizar encontro que seria/ de Lisboa um postal pleno de sol/ no álbum da memória do regresso/ a esse lugar onde outrora, dizem,/ Ulisses – navegando – pisou terra.//Não faz mal. Nós, os gregos, não prezamos/ de glórias um reflexo tão barato./ Ou, quem sabe, de mim mesmo eu só quero/ burlar a boca amarga do desejo./ Sim, talvez isso apenas eu pretenda/ – aqui sentado ao sol da bela Atenas.”