Como avalia a lei que o Governo aprovou para as Ordens?
É uma lei que visa satisfazer determinadas exigências da União Europeia. É uma lei que visa dizer para a União Europeia que em Portugal privatizam, que estão a ‘descorporativizar’, que o país está muito alinhado com o paradigma europeu. Na verdade, é uma lei que visa transformar determinadas profissões reguladas – que eram reguladas pelo seu elevado interesse público – no sentido de serem regidas pela lei da selva, ou seja, pela lei do mercado, pela lei do mais forte, pela lei do mais ‘videirinho’, sem nenhuma preocupação com a qualidade dos serviços prestados à sociedade. No caso da Ordem dos Advogados, não duvido que alguns professores de Direito possam dar consulta jurídica, mas a consulta jurídica não se refere só à teoria do Direito substantivo. Refere-se também à maneira de o executar num tribunal, de o tornar eficaz na esfera jurídica das pessoas. Assim como há advogados que podiam ser professores de Direito e muito melhores professores do que alguns que estão nas faculdades de Direito do país. No entanto, o Estado não liberaliza a criação de faculdades de Direito como quer fazer, generalizadamente, com as profissões independentes. A Ordem aceitaria esta lei se o Governo admitisse que a Ordem dos Advogados, por exemplo, pudesse criar uma faculdade de Direito ou que a Ordem dos Médicos pudesse constituir uma faculdade de Medicina. Assim, estava bem. O mercado depois diria quais eram os bons licenciados em Direito: se são os das escolas clássicas, escolásticas, algumas das quais funcionam segundo paradigmas medievais, ou aqueles que são preparados por pessoas que trabalham no terreno e sabem quais são as necessidades jurídicas da sociedade. Esta lei é uma lei oportunista, é uma lei espetáculo, é uma lei de um Governo que está à deriva. É própria de um país que está à deriva, sem nenhum sentido de orientação e de respeito pelas populações.
Entende então o descontentamento das ordens… todas…
Entendo. E claro que são todas. Umas por umas razões, outras por outras. No fundo, há um conjunto de razões específicas de cada uma delas. Umas terão mais razão e outras terão menos; umas estarão talvez mais preocupadas com determinadas prerrogativas profissionais do que com o verdadeiro serviço prestado aos cidadãos. Quero falar do que sei. Do lado da Ordem dos Advogados, há preocupações com a qualidade dos serviços jurídicos fornecidos aos cidadãos, porque é esta preocupação que dá sentido à profissão de advogado e lhe confere o lugar de destaque que tem no mercado português e até no mercado europeu.
E os advogados também acusam o Governo de lhes retirar competências. Concorda?
Sim, claro. Por exemplo, a consulta jurídica. Quando uma pessoa vai fazer uma consulta jurídica, não é para saber basicamente o direito, isso está na lei. Basta ler a lei, apesar de algumas serem muito confusas. É saber como conseguir a defesa prática desse direito. E isso só os advogados podem dar, porque são os únicos com essa preparação específica. Não são os revisores oficiais de contas, não são os licenciados em Direito que trabalham na Função Pública a fazer coisas completamente diferentes. Não são os professores de Direito. Os professores de Direito já fazem consulta escrita através dos pareceres fornecidos a pedido dos advogados ou de outros juristas. Querem prestar agora diretamente essas consultas aos clientes dos advogados, querem abrir escritórios de consultores jurídicos? É isso que querem os professores de Direito? É isso que querem os funcionários públicos? Dar consulta jurídica às pessoas? Porquê? Eles não são independentes, são hierarquizados. Podem dar más consultas, às vezes deliberadamente, para favorecer o serviço onde trabalham. Isto é criar o caos numa zona institucional que, apesar de tudo, funcionava e agora vai ser um caos. Sabe o que é isto? É a sul-americanização das profissões liberais. É isso que o Governo quer: é aproximar-nos mais daquilo que de pior existe na América Latina ou até em África do que daquilo que de melhor existe nos países mais desenvolvidos.
Tendo estado à frente da Ordem dos Advogados, pensa que isto é um ataque à classe?
É, obviamente. Mas não é só aos advogados. É aos médicos também. Já falam em pôr outros profissionais a praticar atos médicos. É um ataque generalizado às profissões liberais para agradar aos fisiocratas que dominam a União Europeia e de quem o nosso Governo parece um vassalo a seguir as orientações em desrespeito pela soberania nacional e pela independência nacional. É claramente um ataque às profissões liberais, mas é sobretudo um ataque aos cidadãos, às pessoas que são clientes dessas profissões. Feito com uma dose de cinismo inultrapassável. O mercado é capaz de selecionar os bons profissionais e afastar os maus. Sim, mas o mercado só seleciona um bom médico ou só afasta um mau médico depois de este matar algumas pessoas. O mercado só afasta um mau advogado depois de ele causar danos irreversíveis à esfera jurídica das pessoas que o procuraram como advogado. É preciso haver órgãos públicos que possam fazer previamente essa seleção e que garantam um mínimo de rendimento necessário para exercer a profissão com dignidade e com respeito. O que o Governo quer é o salve-se quem puder. Em primeiro lugar, facilitaram os cursos de Direito. Hoje, um curso de Direito não se tira a estudar, tira-se a pagar propinas durante um certo tempo. Os estudantes não são tratados como alunos, mas como clientes. Querem um diploma, tê-lo-ão ao fim de x tempo, pagando x de preço. Mas, depois, o Estado impõe numerus clausus nas profissões públicas. E faz isso sob o manto cínico da liberdade de escolha da profissão. Então que deixe ser magistrados ou notários ou conservadores dos registos ou professores de direito nas universidades públicas os juristas que escolherem essas profissões. Mas não deixa. Na esfera que o Estado controla, só entram os que o Governo deixa. Nas outras, então, entra tudo à molhada. Em Portugal, licenciam-se todos os anos cinco ou seis mil jovens. Algumas centenas entram nas profissões públicas e os restantes milhares vão para a advocacia. Nenhuma profissão sobrevive com o mínimo de qualidade a essa massificação, a esse abandalhamento. O que o Estado português quer, realmente, é acabar com a dignidade das profissões autorreguladas. E isto não é inédito na História. Já houve tentativas idênticas de atacar, de destruir a advocacia. Não o conseguiram e não o vão conseguir desta vez também. Tudo isto é feito para criar a ilusão de que há um poder político que está a fazer coisas, que está a fazer reformas, mas não. É um Governo agonizante. De facto, o Governo português, deixe-me dizer-lhe, é um Governo que envergonha o país, que envergonha Portugal. Em primeiro lugar, é constituído em grande parte por pessoas que não têm maturidade para ser membros de um governo de um Estado civilizado e moderno. São pessoas que não têm maturidade, como se vê à vista desarmada pelas palhaçadas que andam a fazer quase todos os dias. É um Governo que, de facto, não governa, não resolve os problemas dos portugueses. Pelo contrário, cria artificialmente situações para serem notícia nos jornais a dizer que resolve, que faz coisas. É nisto que este Governo é especialista: na autopropaganda, na mentira e na difusão de ilusões. E é isto que origina que cada vez mais portugueses se afastem da vida política e deixam de votar.
Esta decisão pode afastar pessoas destas profissões?
O que as vai afastar é a ausência de espaço de sobrevivência profissional com qualidade e dignidade, de espaço vital profissional, mas só ao fim de muito tempo, só depois de causarem enormes danos à qualidade e credibilidade da profissão. Porque, por exemplo, se para satisfazer as necessidades sociais do patrocínio forense bastariam 10 a 15 mil advogados, então quando existem 30 ou 40 mil no mercado a qualidade desse serviço vai degradar-se irreversivelmente, vai originar concorrência desleal, vai originar subterfúgios, golpes para conseguir clientes, para enganar os clientes, enfim, vai degradar a advocacia e a justiça. E, por outro lado, aqueles que sobrevivem a essa degradação e prestam bons serviços de advocacia, são inacessíveis aos cidadãos comuns. Os grandes escritórios que cobram milhões de honorários são para as grandes empresas, para os ricos e para o Estado, que este não tem limites nos seus gastos. O Governo gasta o que quer e o que lhe apetece, porque o dinheiro não é dele, não é ganho pelas pessoas que decidem gastá-lo. E é isso que vai acontecer: vai degradar os serviços prestados pelas profissões independentes. Insisto nisto: por que é que um professor de Direito há-de poder dar consultas jurídicas e cobrar dinheiro por isso? Ele deve ser professor em exclusividade. Como um advogado devia ser em exclusivo, pelo menos não ser, ao mesmo tempo, titular dos órgãos de soberania, como sucede com os advogados/deputados na Assembleia da República. Mas neste escândalo o Governo não toca. Tudo isto cheira a fim de ciclo; cheira a decadência. É claramente um sintoma da decadência generalizada que está a atravessar o mundo ocidental, nomeadamente a União Europeia e Portugal.
Foi eurodeputado. Notou uma grande diferença nas Ordens profissionais noutros países quando comparadas com as nossas?
Na altura, falava com muitos advogados. Há regimes jurídicos muito diferentes para o exercício das profissões em vários países. Há países de pendor mais acentuadamente liberal. Há países de pendor mais acentuadamente social. Há países que procuram garantir a qualidade do serviço, quer eles sejam prestados por entidades públicas ou por entidades privadas. Em Portugal, generalizou-se a ideia de que só privatizando é que há qualidade. Porquê? Porque o Estado não é capaz de disciplinar os organismos que tutela para prestarem serviços de qualidade, seja nas ordens, seja nos hospitais, seja nas escolas, seja nos tribunais, seja, enfim, em tudo aquilo que depende do Estado. O Estado não mostra capacidade para pôr os seus serviços a funcionar corretamente e tenta distrair as pessoas com medidas destas. Há países que têm uma advocacia muito semelhante à nossa, como Espanha, por exemplo, ou em certa medida a França. Mas também os países do sul. Há países com tradições completamente diferentes, como o Reino Unido, a própria Alemanha, os países nórdicos. Mas, no essencial, esforçam-se por preservar a qualidade dos serviços da advocacia.
Em tempos chegou a defender uma Ordem para os jornalistas. Ainda mantém essa opinião?
Sim, claro que sim.
E nada foi feito.
Não foi, mas continuo a concordar com uma Ordem dos Jornalistas. A recusa da sua criação foi um dos grandes erros na profissão. E é por isso que o jornalismo chegou à situação em que está. É por isso que, praticamente, acabou o jornalismo em Portugal. Por muito que alguns profissionais tentem lutar contra a maré, o jornalismo acabou. O jornalismo está reduzido a assalariados que fazem o que os patrões mandam. Seja diretamente por ordem do patrão, seja indiretamente, através dos hierarcas que os patrões nomeiam dentro das redações. Uma Ordem dos Jornalistas iria punir as violações da deontologia profissional, assim protegendo o prestígio e a credibilidade de todos os jornalistas e da informação em geral. Iria punir, por exemplo, os jornalistas que fazem pseudonotícias a troco de subornos de algumas agências de comunicação. E iria, por exemplo, punir os jornalistas que depois de terem feito um cruzeiro no iate de luxo de Ricardo Salgado foram a correr fazer notícias a dizer que o banco estava sólido – e isso pouco tempo antes de ele ruir como um castelo de cartas. Os jornalistas que assim atuam deviam ser punidos. Se calhar já é tarde para recuperar a dignidade desta profissão em Portugal.
Então uma Ordem seria importante.
Desculpe dizer-lhe, não quero falar de ninguém em particular, mas o jornalismo em Portugal transformou-se num exercício às vezes cínico de manipulação, de mentira, de ocultação de partes da realidade, tudo isso com a finalidade de levar os cidadãos a concluir o que os jornalistas pretendem e que é, em regra, o contrário daquilo que concluiriam se lhes fossem fornecidos todos os factos. Por aqui se vê a importância, a necessidade de uma ordem dos jornalistas.
Isso entristece-o? Já esteve ligado ao jornalismo.
Sim, claro que tudo aquilo a que assistimos hoje me entristece. Quem faz o alinhamento dos jornais televisivos são algumas agências de comunicação quando não alguns comissários políticos do Governo ou até os avençados de algumas empresas, de alguns partidos políticos, de alguns clubes de futebol. Isto é verdade. Há alguns anos, o Conselho de Redação da RTP disse isso publicamente e toda a gente se calou. Os jornalistas em Portugal são muito bons a noticiar as falhas dos outros, mas escondem as suas. E deixo um exemplo chocante, que só não é revoltante porque já não estou em idade de revoltas: morreram mais de 500 pessoas afogadas no Mediterrâneo, entre as quais crianças e mulheres, porque o barco com que pretendiam chegar à Europa se afundou. As notícias sobre essa tragédia foram quase escondidas, como se fosse um facto normal. Mas o naufrágio de um minissubmarino com cinco pessoas a bordo abre todos os noticiários porque eles eram milionários e iam ver um cemitério subaquático (até com algum espírito mórbido), ou seja, o local onde morreram 1500 pessoas há cento e tal anos. Qual é verdadeiramente importante? Para o jornalismo português são os cinco magnatas e não as 500 pessoas que morreram no Mediterrâneo afogadas. Porque essas eram pobres que fugiam da guerra e da miséria, eram negros, de outra raça. Os outros eram senhores importantes, magnatas, alguns até, se calhar, donos de órgãos de comunicação social. Se houvesse uma Ordem, o jornalismo por ela regulado não seria perfeito – nunca o seria -, mas não seria tão mau como é hoje, não teria as degenerescências éticas e deontológicas que hoje o atravessam.