A síndrome do celeiro

Cada livro que se adquire traz consigo uma promessa de felicidade.

De onde vem o desejo de acumulação, tão arraigado no ser humano? Segundo o historiador israelita Yuval Noah Harari, essa tendência – que pode assumir proporções épicas ou patológicas, consoante o ponto de vista – vem dos tempos recuados em que o Homem tinha de lutar dia após dia pela sua sobrevivência. Nesse mundo hostil, uma reserva de comida podia representar a diferença entre a vida e a morte, pelo que proporcionava um poderoso antídoto contra a angústia.

É por causa desse trauma primitivo, diz Harari, que continua a haver quem tenha uma sede inextinguível de riqueza. Mesmo se hoje, na sociedade da abundância, poucos correm o risco de não terem comida no prato à hora das próximas refeições, há quem prefira acumular sem limite, não vá o diabo tecê-las.

Esta será a explicação ‘psicológica’, ou ‘arqueológica’, se quisermos. Mas poderíamos encontrar outras. O dinheiro não confere apenas segurança. Confere também poder. Além disso, para quem se habituou a um certo conforto e a certos privilégios, não é fácil imaginar viver sem eles.

 

Mas deixemos o dinheiro de parte e vejamos o caso dos livros. Porquê acumular tantos livros se temos um tempo limitado de vida e de leituras?, pergunta muita gente.

Há dias recebi em casa um amigo com a sua namorada estrangeira, que olhou para a estante da minha sala e comentou com uma ingenuidade comovente: ‘Bela coleção de livros. Já os leste todos?’.

É sempre uma pergunta confrangedora para ambas as partes. Para quem pergunta, porque revela que não faz a mais pequena ideia do porquê e para quê de se constituir uma biblioteca. Para quem responde, porque se vê na necessidade de justificar uma compulsão que de racional tem muito pouco; ao mesmo tempo, obriga-o a confrontar-se com a imensidão da sua ignorância, uma vez que são sempre muito mais os livros que não leu do que os que leu.

 

Em todo o caso, podemos tentar uma explicação. Acima de tudo, um livro que se adquire traz sempre consigo uma promessa de momentos bem passados; se quisermos ir um pouco mais longe, uma promessa de felicidade. E não é preciso lê-lo efetivamente para sentir isso – essa promessa subjaz tanto ao momento da aquisição como a todos os outros momentos em que ele está ali à espera que o tiremos da estante.

Em segundo lugar, diria que o simples facto de termos um livro já acrescenta algo ao nosso conhecimento. Sabemos que ele existe, sabemos mais ou menos de que assunto trata, e ele ali está para no-lo lembrar – conquistou o seu espaço na estante, mas também, de certo modo, na nossa mente.

Depois, um livro é uma reserva de conhecimento. É uma espécie de memória externa ali à nossa disposição e a que podemos recorrer sempre que o desejarmos, sem precisarmos de atafulhar a nossa memória interna com uma imensidão de conhecimentos.

E, claro, os livros são como as cerejas. Um puxa o outro, e outro – de modo que à volta de um único volume pode formar-se um núcleo de dimensões variáveis. Quando começamos a pensar não nos livros que temos, mas nos que nos faltam, talvez seja sinal de que temos uma biblioteca – é sinal, pelo menos, de que aquele conjunto de livros ganhou uma vida e uma dinâmica próprias.

 

Por último, há que lembrar a dimensão decorativa. Não é verdade que a minha convidada comentou como era bela a minha coleção?

Como é evidente, ali à queima-roupa a minha resposta não foi tão elaborada. Limitei-me a agradecer a gentileza e a dizer-lhe, numa estimativa perfeitamente irrealista, que teria lido aproximadamente um livro em cada três. E até podia ter acrescentado: ‘Mas não te preocupes. Agora na primeira quinzena de julho vamos estar de férias e quero ver se consigo tratar do resto’.