Académica. Quando as pérolas negras do Caribe vestiram as capas negras

Criaram entusiasmo pelo seu exotismo os dois jogadores de Trindade e Tobago que chegaram à Académica em 1990. Mas o mundo do futebol profissional exigiu-lhes mais do que estavam dispostos a dar.

PORT-OF-SPAIN – Estávamos em 1990. Já lá vão 33 anos, portanto. A Académica ainda não caíra na miséria que, neste momento, lhe faz arrastar os parentes na lama. Estava na II Divisão a lutar pela I onde deveria ser sempre o seu lugar. A pouco e pouco, nós que vivemos profundamente a Académica de Mário Wilson e de Gervásio, dos manos Campos, do Augusto Rocha, do Zé Belo e do Brasfemes, do Manuel António e do Maló e por aí adiante antes que chegue, sem dar por ela, ao final deste texto escrito no aeroporto de Piarco, em Port-of-Spain, capital das ilhas gémeas Trindade e Tobago, habituámo-nos a ver surgir em Coimbra brasileiros em catadupa, um ou outro inglês, e de repente levámos com aquela bofetada de exotismos de assistirmos à chegada de dois caribenhos trazidos para Portugal por Tó-Zé Francisco, um homem que cedo foi viver para o Canadá e passou a controlar muitos dos prometedores jogadores do Caribe.

Russel Latapy e Leonson Lewis eram uma espécie de sorte grande e terminação, tão alto e espadaúdo era o segundo, tão baixinho o primeiro. Obviamente que toda a gente franziu o sobrolho e desdenhou a aquisição. Como se fosse uma espécie de promoção da mendicidade a Académica receber dois rapazes vindo lá das ilhas onde se planta tabaco e cana-de-açúcar. Lewis tinha 24 anos, jogou nas equipas do Connection e do Portmore United antes de atravessar o Atlântico. Latapy era dois anos mais novo e passara pelo Trintoc e pelo Port Moran United lá na ilha de Trindade. Quando os portugueses começaram a perceber a qualidade intrínseca que ambos possuíam, a esquisitice passou a espanto. Havia jogadores bons em lugares inesperados do globo. As duas pérolas negras dos estudantes das capas negras mostraram estilos muito diferentes e fizeram a diferença em muitos dos jogos da Académica. Lewis era rápido como uma flecha; Russel era um nº 10 com um toque de bola impressionante e uma precisão de passe notável. Ambos aguentaram-se e tornaram-se indispensáveis. Em quatro épocas na Académica, Leonson fez 120 jogos e marcou 42 golos antes de seguir para Felgueiras; Latapy ficou apenas dois anos antes de ser contratado pelo FC Porto depois de 127 jogos e 32 golos.

 

Malta da farra Como bons caribenhos, Latapy e Lewis gostavam da farra, de rum e de abanar a anca, de preferência em boa companhia feminina. A noite de Coimbra não era suficientemente atractiva para ambos, mas a noite do Porto deu cabo da carreira de Russel no FC Porto. Foram tantas as quebras de disciplina, sobretudo para um clube que costuma ser exemplar nesse aspecto, que no final da segunda época Latapy foi despachado para os vizinhos do lado, o Boavista. Ainda assim, tanto nas Antas como no Bessa, somou 40 jogos. Em cada qual.

A sensação que Russel Latapy para quem o viu jogar – e eu vi-o várias vezes, sobretudo numa eliminatória europeia que foi fatal para ele entre o FC Porto e a Sampdória a obrigar a desempate por grandes penalidades nas Antas com ele a falhar o penálti decisivo – era a de que desperdiçava talento. Talvez nunca tenha sido capaz de consciencializar-se verdadeiramente da sua condição e das suas obrigações profissionais. Foi, entre 1988 e 2009, uma das grandes estrelas da sua selecção (só ultrapassado por Dwight Yorke) e esteve presente no Mundial de 2006, na Alemanha, mas era um fantasma de si próprio: apenas 20 minutos em campo na derrota face ao Paraguai por 0-2.

A fase final da carreira de Russel Nigel Latapy foi-se fazendo (ou melhor, desfazendo) na Escócia, tendo passado pelo Hibernian e pelo Rangers até se arrastar em clubes como o Falkirk, o Caledonnia ou o Edinburgh. Desde de então procura a toda a força ser treinador e acabou há bem pouco uma má experiência como seleccionador de Barbados, já aqui ao lado, depois de saltar como um gafanhoto na esteira do seu grande amigo Yorke, funcionando como adjunto em diversos clubes menores e quase sem expressão. Leonson Edward Jeffrey Lewis teve preguiça de sair de Portugal e nunca evoluiu aquilo que se esperava dele. De Coimbra foi para o Felgueiras. Depois Boavista (onde não durou uma época inteira), Chaves, Estrela da Amadora e União de Lamas. Nitidamente gordo e já sem a velocidade que assustava adversários, voltou para o seu primeiro clube, o Connection. As pérolas negras da Académica que tinham feito furor, embora tão perene como um lançamento de fogo de artifício, perderam-se num universo que exigia muito mais do que aquilo que estavam dispostos a dar.