Ser ou não ser, eis a questão

Do lado de Putin, a classificação de Prigozhin como um «traidor» também não é compatível com uma combinação entre os dois, pois fez dele um inimigo público, transformando-o numa carta fora do baralho e eventualmente num homem a abater.

A rebelião de Prigozhin na Rússia – com o levantamento em armas dos homens da Wagner, a organização de uma coluna militar, a ocupação da cidade de Rostov, quartel-general da operação russa na Ucrânia, e a ameaça de avanço sobre Moscovo (com inversão da marcha a poucas centenas de quilómetros da capital) – foi objeto de dois tipos de interpretações.

A maior parte dos comentadores tomaram a ação pelo seu valor facial, isto é, como uma verdadeira rebelião. E consideraram que pôs a nu muitas debilidades do Kremlin e do próprio Putin.

Mostraram fissuras no interior do poder; falta de capacidade de resposta das forças de segurança; ausência de autoridade por parte da liderança.

O facto de Putin ser forçado a negociar com um homem que horas antes apelidara de «traidor à pátria» foi visto como um sinal de enorme fraqueza. 

Devo dizer que nunca percebi por que razão Prigozhin não era levado muito a sério pelos comentadores.

É certo que tinha ar de fanfarrão. Mas não deixava de ser o chefe de uma força de dezenas de milhares de homens que atuava na frente de combate.

Assim, os seus violentos ataques ao ministro da Defesa, Serguei Choigu, e ao chefe do estado-maior das Forças Armadas, Valery Gerasimov, eram factos relevantíssimos. Numa nação em guerra, é impensável os responsáveis militares atacarem-se em público.

Por isso, repito, nunca percebi a pouca importância que os comentadores atribuíam a Prigozhin.

Estavam errados, como se viu.

Mas voltando à rebelião, há – como sempre sucede nestas situações – outra teoria para explicar o que aconteceu.

Há quem diga que tudo não passou de uma encenação montada pelo próprio Putin, com objetivos que ainda não são claros mas a seu tempo virão a lume.

Isso explicaria a ausência de reação ao golpe. E a retirada de Prigozhin sem colocar condições.

Sucede que, neste puzzle, há muitas peças que não encaixam.

Como, por exemplo, o facto de terem sido abatidos pela Wagner dois aviões russos.

Ou as revelações de Prigozhin sobre as baixas russas na Ucrânia, que estarão muito acima dos números que o Ministério da Defesa divulga.

Ou o desmentido das justificações apresentadas por Putin para a invasão da Ucrânia.

Tudo isto enfraquece objetivamente a posição de Moscovo e contraria a ideia de uma encenação.

Do lado de Putin, a classificação de Prigozhin como um «traidor» também não é compatível com uma combinação entre os dois, pois fez dele um inimigo público, transformando-o numa carta fora do baralho e eventualmente num homem a abater.

Vamos, agora, à Wagner. Na mesma linha da teoria da encenação, há quem afirme que os seus mercenários estão a ser concentrados na Bielorrúsia para efetuarem no futuro um ataque à capital ucraniana.

Estando perto de Kiev, em meia dúzia de horas lá chegariam.

É uma hipótese interessante.

Eu próprio afirmei há algum tempo que a única hipótese que Putin ainda tem de salvar a face na Ucrânia é fazer um raide sobre Kiev, prender ou matar Zelensky, e colocar em seu lugar um fantoche.

Mas também aqui há peças que não encaixam no puzzle.

Putin apontou aos mercenários da Wagner três caminhos: integração nas Forças Armadas russas, regresso a casa ou ida para a Bielorússia.

O grupo vai, portanto, desagregar-se.

E sem Prigozhin, com a liderança decapitada, perde certamente boa parte da sua capacidade operacional.

Nunca mais será a mesma coisa.

Como força de elite, o grupo Wagner desaparece.

Os seus homens passam a ser um amontoado de soldados que não se imaginam a efetuar uma ação em grande estilo.

Tudo somado – e por mais que as explicações engenhosas e heterodoxas me atraiam –, as informações disponíveis apontam para uma rebelião que abortou por eventual falta de apoio de forças que se tinham comprometido com Prigozhin e à última hora falharam.

Em todas as rebeliões fracassadas há defeções.

Foi isso que terá levado a coluna da Wagner a inverter a marcha.

E Putin não quis matá-los, nem prendê-los, porque arranjaria um problema interno: Prigozhin e os seus homens são populares na Rússia e o seu julgamento e possível condenação à morte por traição criaria complicações graves.

Putin não se sentiu com força para isso – e preferiu arranjar guarida para Prighozin fora do país e dispersar o grupo Wagner.

Lukashenko diz que foi ele quem conseguiu o acordo, mas isso pouco importa: Putin aceitou-o e assumiu-o.

A ideia de que tudo isto foi um golpe genial de Putin cai, assim, pela base.

Há homens que (como acontece com alguns dos nossos generais-comentadores televisivos) veem Putin como um semideus, um ser infalível, um génio que nunca se engana nem se deixa enganar.

Sendo assim, têm sempre de encontrar uma lógica para as suas ações.

Mas a teoria da encenação, por mais rebuscadas explicações que se procurem, não tem aderência à realidade.

Foi uma rebelião abortada – cujos responsáveis o regime não se considerou com força para punir. Ponto final.

Às vezes, a verdade é simples.