Pablo Neruda. O túmulo mais ruidoso da América Latina

Meio século depois, o túmulo de Pablo Neruda é ainda um túnel negro, “como se no coração nos afogássemos,/ como irmos caindo da pele até à alma”. Depois de várias perícias continuam as dúvidas sobre se morreu ou não envenenado, depois do golpe militar que derrubou Allende, e nos últimos anos, na sequência do MeToo,…

O que se segreda hoje entre os portos onde tem lugar o tráfico da consciência? O que se dizem quando se cruzam esses raros homens que atravessam as distâncias solitárias deste “planeta carnívoro”, cujos mares guardam a memória daquilo que acontecia aos navios e às suas tripulações noutros tempos, quando se podia falar na sede insaciável do mar, ou nos olhos alcoólicos de uma selva? Quando nos atemorizavam e, ao mesmo tempo, nos acicatava o espírito a narração dessas desgraças que davam sabor à vida, à aventura humana? Muita coisa mudou em pouco mais de um século e, como anotou Kavafis, para os homens que são dados a reter um sentimento profundo das coisas, “a vida como que é hoje um suicídio”, provando-o a forma como tantas vezes acedemos a torná-la supérflua. Vivemos perdidos para um labirinto morto, incapazes de um pacto que depusesse esta relação mesquinha da nossa sociedade com o mundo. Um sinal claro desta decadência generalizada da vida reconhece-se na forma como mesmo os poetas contemporâneos se mostram perfeitamente satisfeitos por se realizarem no campo das atitudes civis e nos modos mais conformados do quotidiano, ao mesmo tempo que produzem esses poemas que parecem como facturas falsificadas para dar uma ênfase e uma profundidade ilusórias à sua experiência. Caberia a uma geração realmente nova e perturbadora de poetas a exigência de que a conversação fosse elevada ao ponto de cada homem ser capaz de traduzir num encadeamento encantador os acontecimentos que o fizeram a ele, como se penetrasse numa região onde o próprio ar fosse música, resgatando um sentido de poderosa proporção das coisas, e exigindo “a distribuição desse mel nu guardado nas trevas”. Pablo Neruda correspondia a essa elevada noção que tinha Emerson do poeta como aquele que se mostra capaz de “pôr olhos e dar voz a cada estúpido e inanimado objecto”, nessa multiplicação que não se dá apenas ao nível da interioridade, mas que se metamorfoseia transformando o mundo como se este fosse de vidro e tudo se reflectisse sendo o mais importante dilucidar essa ordem e o processo pelo qual as coisas chegam a parecer-nos devotadas à sua constituição imutável.

“Quem diz poeta, diz ao mesmo tempo e necessariamente historiador e filósofo”, escreveu Victor Hugo, e Neruda corresponde a esta noção, com aquele seu canto capaz de deter quem o ouve e, mesmo um século mais tarde, de nos fazer corar. Ele apela para a visão do homem não alienado, e isto faz dele um dos grandes poetas públicos desses que sabem dar substância às suas profecias indo em busca da chave para a decifração do universo. Não é difícil perceber o que escreve se considerarmos como a sua sensibilidade se formou enquanto uma criança que cresceu numa dessas regiões remotas e de fronteira que tanto exigem aos sentidos e à imaginação, sendo territórios ainda tensos na sua virgindade desafiante. Nascido Neftalí Reyes em 1904 em Parral, e levado com dois anos para o povoado de Temuco nos confins da fronteira sul do Chile, um território onde chegavam então os seus primeiros colonizadores em resultado de um pacto com os índios Mapuche. O seu pai estava envolvido nos esforços para trazer a civilização a um espaço dominado pela floresta e o seu trabalho – a construção de novos caminhos-de-ferro – assumiu um evidente peso simbólico na mitologia pessoal de Neruda em que, mesmo muito mais tarde, essa marcha do progresso se pode ouvir, tanto como representação do conflito e do dinamismo na forma como o homem transcende os processos cíclicos da natureza como nas imagens de devastação. A mãe de Neruda morreu era ele ainda muito novo, e alguns dos primeiros livros a que teve acesso eram da madrasta, que viu naquela região virgem, amiúde sacudida por fortes ciclones e onde fazia um frio terrível, os primeiros vegetais a vingarem do cultivo do homem, as primeiras cabeças de gado e o primeiro comboio. Foi num desses invernos prolongados e chuvosos, por volta de 1914, que Neruda escreveu os seus primeiros poemas, e num deles lê-se: “e algo despontou na minha intimidade,/ fosse febre ou umas asas precárias,/ e iniciei o meu próprio caminho,/ decifrando/ aquele fogo,/ e escrevi a primeira ténue linha,/ ténue, ainda sem substância, ainda/ sem nenhum sentido,/ só a sabedoria/ de quem não conhece ainda nada”… Estão ali os antecedentes daquele seu estilo sonante, nervoso e retorcido, entregando-se a arroubos, febres cheias de um vigor demencial, a essas selvajarias espicaçadas por um desejo de opulência expressiva que dava depois lugar a abatimentos de ordem quase mística ou contemplativa. Em suma, o verbo indispensável a um período conturbado e tenso no plano social e político, e que foi nutrido, no caso de Neruda por aquela região onde cresceu sem o ampara típico das convenções fossem elas de ordem social ou religiosa, ou sequer de escolas literárias ou artísticas. No fundo, Neruda não teve que idealizar a sua relação com uma realidade impetuosa na qual ele parecia ser o primeiro explorador, esse que dá o nome a plantas e insectos que só ali se encontram, e a viver, como mais tarde diria, num perpétuo estado de deslumbramento.

Foi com 16 anos que deixou Temuco e partiu para Santiago, tendo demorado a deixar a sua carapaça solitária, e tendo já então adoptado o pseudónimo Pablo Neruda. Este arrastava os ecos do evangelista e de um escritor checo que à altura era bastante popular, Jan Neruda, num baptismo que assinalava não apenas o desejo de quebrar com a relação filial, mas também de não se ver limitado pelas suas origens no fim do mundo. Depois de publicar o primeiro livro, Crepusculario, em 1923, no ano seguinte dava um passo que não deixaria de escancarar tantas portas, tendo feito dele, com pouco mais de vinte anos, uma pequena celebridade nacional, e tornando-se um dos livros de poesia mais vendidos até hoje, Veinte poemas de amor y una canción desesperada. Traduzidos para muitíssimos idiomas, estes poemas entraram na corrente sanguínea cultural na América Latina com alguns dos seus versos a adquirir a força de provérbios, e, no entanto, se há nas primícias deste poeta esse ensejo de capturar fórmulas memoráveis, se o seu encanto perdura é porque conseguem ao mesmo reservar um elemento de frescura e de uma energia rara, que lhes vem de serem poemas inebriados pela fantasia de viver e descobrir algo pela primeira vez.

Na década que se seguiu, entre a publicação desse livro e a nomeação de cônsul em Barcelona, o percurso de Neruda foi marcado por uma série de infortúnios e ocorrências bizarras, com o poeta a passar grandes dificuldades económicas depois de ter abandonado os estudos, e por este motivo entrado em conflito com o pai, iniciando a carreira diplomática com um cargo que lhe fora prometido em Rangun (Birmânia), mas cuja nomeação só foi para a frente em 1927. Nesses anos, a sua escrita era o fruto do isolamento e das dificuldades que passou, antes e depois de partir para Rangun, onde esteve ao serviço nos cinco anos seguintes, também em Colombo (na ilha de Ceilão), Batávia (nome de Jacarta no tempo do domínio holandês e Singapura, e isto num período em que se sentiu de tal modo afastado do mundo hispânico e entregue a uma solidão que roçava demasiadas vezes o desespero ao ponto de, como declarava numa carta um amigo, se ter visto reduzido a apanhar cães vadios apenas para ter alguma companhia. E além desse isolamento, relata também na sua correspondência os rocambolescos episódios por que passou no esforço para sobreviver, estando sujeito ao tipo de indignidades de quem ocupa uma posição respeitável, mas com um salário que está dependente dos processos que conseguia despachar. É nesses anos, nesses cus de Judas, suportando climas extremos em terras submetidas aos temporais aumentados pela proximidade do mar, e em regimes onde a presença europeia era de domínio colonial, que vai escrevendo os poemas que viriam a figurar no primeiro conjunto daquele que viria a ser um livro central não apenas na sua obra, mas na poesia que se escrevia em língua espanhola, Residencia en la tierra.

Não poderíamos dar conta de todas as peripécias numa vida que imensamente preenchida, mas importava aqui caracterizar as condições que levaram Neruda a sentir a necessidade de uma libertação verbal que colheu elementos nas vanguardas e no surrealismo, não apenas para expressar estados de alma, mas para ter como se confrontar com esses territórios no Oriente que foi calcorreando e de que, ao longo da vida, iria deixar testemunho no balanço entre as lembranças e o sonhos, como num poema escrito décadas mais tarde sobre a viagem que fez ao Vietname nestes anos, recordando-se de ter dado por si perdido numa selva, “pouco mais de vinte anos, à espera da morte, a encolher até me restar apenas a minha linguagem”. Porque as palavras são ainda uma última defesa, e é esta a confiança que viria a fazer dele um dos grandes poetas do Novo Mundo, assumindo a linhagem iniciada por Whitman, esforçando-se por agradar à sua gigantesca sombra, mas também preenchê-la, e nalguns aspectos superá-la. Não se pode disputar a Neruda, como assinalou o crítico uruguaio Ángel Rama, “o inalienável direito de inventar um homem novo, um ideal de vida a partir do qual os homens possam reger-se”. A visão destes poetas sobre o homem é adâmica, e entendem que a sua exuberância está próxima das nascentes sendo, por isso, capaz de um imenso espanto diante dos prodígios do mundo. Se estes poetas não deixaram de pagar os seus tributos à antiguidade clássica, como assinalou Derek Walcott, não caminham por aí tropeçando em monumentos e ruínas. Há algo que os compele a uma certa repulsa diante do magnetismo das antigas civilizações. O sentido da história está lá, mas de forma mais crua, sem diminuir o ímpeto desse numinoso e elementar privilégio de nomear esse Novo Mundo que lhes permite romper com a resignação e um os excessos fatalistas. Num texto em que assume a influência de Whitman, Neruda explica a diferença que caracteriza a poesia na América do Sul: “Nos nossos países podemos ver rios que não têm nome, árvores que ninguém conhece e pássaros que ninguém descreveu. Para nós é mais fácil sermos surrealistas porque tudo o que conhecemos é novo. O nosso dever, então, tal como o entendemos, é exprimir o desconhecido. Na Europa tudo foi pintado, tudo foi cantado. Mas não na América. Nesse sentido, Whitman foi um grande mestre. Porque o que fez Whitman? Não só estava profundamente consciente de tudo, como tinha os olhos bem abertos! Tinha uns olhos tremendos para ver tudo… ensinou-nos a ver as coisas.” Mas tanto nos frutos que ali se colhem como no sabor que eles deixam, e no esforço de recreação de toda a ordem, conseguimos perceber uma mistura de acidez e doçura nas maçãs deste segundo Éden, isto porque estas contêm um travo de amargura próprio da experiência. Encontramos, por isso, nesta poesia a sombra dolorosa da memória, esse amargo de boca que fica da História e que mais tempo demora a ser esquecido. Mas também é certo que esta acidez se traduz numa energia vibrante: “Através do confuso esplendor,/ através da noite de pedra, deixa-me esconder a mão/ e deixa que em mim palpite, como uma ave por mil anos prisioneira,/ o velho e há muito esquecido coração humano!”

Leitor obsessivo dos aspectos mais crus da existência, Neruda encarava a natureza e a História como oráculos que obrigam a um esforço constante de interpretação, e foi aceitando esse desafio que aprendeu desde cedo o alfabeto do relâmpago, arriscando tantas vezes o excesso, as fórmulas algo patéticas, mas sempre empenhado em esticar-se o mais possível nos efeitos metafóricos para conquistar qualquer centímetro a mais para o seu intelecto e no intuito de ir onde outros nunca foram a nível expressivo. Fosse nas suas paixões amorosas ou no confronto com a ordem cósmica, tudo se aproveita de tudo, e há um gozo orgiástico na sua escrita, ressoando de matérias e de destinos humanos, que procuram impor-se como a voz desse novo continente. Ele pode assim contar-nos sem o menor embaraço “como nas profundezas/ de mim cresce a flor perdida das tuas aldeias,/ enrugadas, imóveis no tempo”, ou dirigir-se à amada e recordar como “a luz de junho afogava flores na tua boca”. Era um poeta assumindo a plenitude desavergonhada dos seus poderes, iniciando-se na revelação do tempo emocional, que vai sedimentando esses lugares onde germina a intimidade de cada um, cabendo depois a uns poucos esse processo de ascensão em que conseguem cultivar esses signos e transportá-los para um reconhecimento do tempo histórico e social, deixando um rastro firme na cultura: “Assim, na luz da abside marinha/ a fábula de pedra condecora/ a imensidade com as suas medalhas mortas,/ e os pequenos reis que erguem/ toda esta solitária monarquia/ em nome da eternidade das espumas,/ regressam ao mar na noite invisível,/ regressam aos seus sarcófagos de sal.”

Neruda soube cometer erros cheios de vitalidade, e isso começa na leitura que faz de Whitman, poeta que chegou a traduzir para a sua língua, nessa capacidade de tomar ali balanço e ir ao encontro do que não lá está, deturpá-lo para os seus fins, balançar-se na admiração que lhe deve de forma a construir um  antepassado que lhe faltava, um astro espinhoso na proposta de linhagem que cada poeta faz, fazendo tremer tudo o que tinha atrás de si, como se os elementos que o guiam fossem eles mesmos sendo sobressaltados pelos destinos e as descobertas que veio a fazer. Doris Sommer assinalou esse esforço de Neruda ao procurar "destruir o seu mestre, ressuscitando modelos anteriores que nunca tentaram o leitor com qualquer promessa de igualdade, e cuja descendência Whitman rejeitou no prefácio dos seus poemas". Leiam-se, sujeitos à luz do que acabámos de dizer, estes seus versos amorosos: “Recordo um só dia/ que talvez nem me tenha sido destinado,/ era um dia incessante,/ sem origens. Quinta-feira./ Eu era um homem ali levado pelo acaso/ ao encontro de uma mulher por um motivo vago,/ despimo-nos/ como para morrer ou nadar ou envelhecer/ e metemo-nos um dentro do outro,/ ela rodeando-me como um buraco,/ eu quebrando-a como quem/ faz dobrar um sino,/ pois era ela o som que me feria/ e a cúpula rígida decidida a vibrar.”

Uma vez mais sem sombra de um receio de causar irritação nos seus pares, Harold Bloom vincou como, em Neruda, “parecem mais claras as fontes nutritivas da poesia espanhola do século XIX e do início do século XX que tanto pesa nos seus primeiros livros”. E se é a segunda parte de Residencia en la tierra, o mais fulgurante dos livros deste poeta, conta com vários poemas escritos em Espanha, e beneficiando já do contacto com o fluxo da poesia espanhola de então, tendo ficado a dever ao convívio com Lorca, Aleixandre, Alberti e Cernuda o conhecimento da poesia do Siglo de Oro (Garcilaso, Góngora, Lope, Quevedo, Villamediana), como assinala José Bento no excelente prefácio a sua tradução desta obra capital, também a este entorno terá ficado a dever os benefícios que recebeu da lição do surrealismo. Mas Bloom entende que estas influências, não se voltando para as suas origens, viriam a ser alimentadas pelo material que trazia da sua adolescência e juventude no continente americano, ao qual regressaria depois desse período no Oriente e na Europa.

Se em Whitman encontramos um monólogo que ressoa como a voz de um imenso coro, neste seu descendente há uma capacidade absurda de proceder a uma mestiçagem de elementos muito estranhos entre si, desde o Alto Barroco espanhol, ao surrealismo e aos elementos do realismo mágico, magnetizando a linguagem e reagindo uns aos outros para dar origem a “um pathos credível, intenso e vigoroso, mas menos convincente do que a autoridade suave do verso extraordinariamente paciente e reactivo de Whitman”, diz-nos Bloom. E num livro como “Residência na Terra”, que só encontra outro do mesmo período à sua altura no “Poeta em Nova Iorque”, de García Lorca, havendo entre os dois afinidades tremendas, há ainda que ter em contas um forte sentido de responsabilidade social e política. E mesmo se muitos nunca lhe perdoaram a sua indefectível admiração por Estaline, que o levaram a dedicar-lhe embaraçosos versos de louvor, o certo é que, se por diversas vezes Neruda deu provas de alguma falta de carácter, nunca se conciliou inteiramente com a ideologia oficial comunista. No entender de Bloom, tudo isso não passa de uma excrescência na sua obra, “uma espécie de verruga na textura dos seus poemas, ainda que só num par de ocasiões estrague o seu Canto geral”. Mais importante é compreender o génio da insinuante e estupenda revisão a que submete o canto whitmaniano através, nomeadamente, desses processos de “enumeração caótica” a que se dedica em tantos poemas, sempre com uma certa ênfase musical, e que conquistam o leitor que segue menos com o dedo frio da razão justaposto à linha do que com ouvido, sendo arrebatado pelas sugestões sensoriais. Assim, vamo-nos deixando seduzir e inspirar, levados a um estado de transe pelas hipóteses vagas e as imagens fabulosas que não deixam de soar a referências concretas e descrições verosímeis de mundos que se distanciaram deixando em nós uma secreta nostalgia melodiosa. E há em tudo esse ímpeto expressivo de quem exalta colecções impossíveis: “Desnecessário, vendo-me nos espelhos,/ com um gosto a semanas, biógrafos, papéis,/ do coração arranco o capitão do inferno,/ estabeleço cláusulas indefinidamente tristes”, “É o vento que agita os meses, o silvo de um comboio,/ a passagem da febre sobre a cama,/ um opaco som de sombra/ que como um trapo cai no interminável,/ uma repetição de distâncias, um vinho de cor confusa”, “A recordar noites, navios, sementeiras,/ amigos falecidos, circunstâncias,/ amargos hospitais e meninas entreabertas:/ a recordar um bater de onda em certa rocha/ com um enfeite de farinha e de espuma”… Isto são exemplos, apanhados aqui e ali, prenhes de imagens inesperadas, insólitas, pinturas que se cospe com o ardor de um momento cujo eco é impossível de ser guardado na memória. Há sempre algo de selvagem, que faz com que a superfície dos seus poemas, em vez de idealmente composta, equilibrada, parece antes revolta, transtornada. Não é uma poesia para nos impressionar ao ponto de nos deixar petrificados, mas precisamente pelas “cicatrizes de excesso”, esta obra ali à sua magnificência uma sensação de imperfeição que descompõe essa austeridade de museu, das formas cheias de elegância e solenidade, impondo em seu lugar um clamor destemperado, uma espécie de uivo interior à própria matéria das coisas.

Neruda demorou dez anos para escrever os 56 poemas que compõem essa obra que, não se comparando na ambição a um livro como “Canto geral”, que se propôs ser uma enciclopédia épica do Novo Mundo, consegue ser uma obra bem mais pregnante, sendo que tudo quanto publicou depois surge de algum modo fragilizado por essa prolixidade tantas vezes infecundo, numa poesia que se contentava em chegar a muitos, dando origem a poemas redundantes, tantas vezes num registo balofo que agrada mais a quem exige sempre da poesia uma linguagem chã e que se fique pelo regime da obviedade. Eram quase só ecos do passado aqueles versos capazes de captar algo que excede esse juízo comum de quem se deixa consumir e degradar pelo quotidiano. Isto não impediu o poeta de levantar contra o seu próprio livro (residência en la tierra) uma denúncia que tem algo de grotesco e de canalha face ao jovem poeta, numa espécie de auto-recriminação que só se explica como um voluntário acto de sacrifício de um poeta que, mais velho, passou a ver a sua monstruosa popularidade decorrendo do próprio elemento da propaganda comunista, sendo esta uma carta dirigida a Alfredo Cadona Peña , um marxista sem o menor instinto para intuir as tensões de um espírito muito além do regime literal, gozando as vertigens do verbo ao ponto de se lançar no abismo: “Contemplando-os agora, considero nocivos os poemas de Residencia en la tierra. Estes poemas não devem ser lidos pela juventude dos nossos países. São poemas que estão empapados de um pessimismo e angústia atrozes. Não ajudam a viver, ajudam a morrer. Se examinamos a angústia – não a angústia pedante dos snobismos, mas a outra, a autêntica, a humana –, vemos que é a eliminação que faz o capitalismo das mentalidades que podem ser-lhe hostis na luta de classes. A uma onda muito grande de pessimismo literário que enche uma geração inteira, corresponde a uma actividade menor do capitalismo. No seu tempo, as forças destrutoras não precisavam de mostrar ainda o caminho do aniquilamento. Mas anos depois as forças reaccionárias do continente vêem um perigo no despertar intelectual e daqui a tendência niilista e desesperada da minha anterior poesia e de todos os poetas da minha geração. Tenho a certeza que não de maneira sistemática, mas tão-pouco menos forte, a reacção quis inutilizar estas forças do verbo.”

A verdade é que, apesar das imagens de destruição, desolação e abandono, estas desenvencilham-se de qualquer tentação pessimista, e estão na verdade cobertas desse optimismo de quem enfrenta a realidade indo além dos limites habituais e que tornam vulgar a expressão sempre que pretende fazer-se entender e convencer a todos, tornando-se cretina, obstinando-se em exercer uma espécie de coacção sobre o juízo e as percepções do outro, em vez de instigá-lo e favorecer essa necessidade de gozo e exaltação, mesmo entre as matérias mais densas e pesadas, nessa forma de calibrar o ânimo para atravessar as paisagens infernais. Nada pior do que um conteúdo de esperança e uma alegria controladoras para gerar essa sensação de angústia que é sentir-se manobrado e forçado a assumir uma postura “corrigida”, que expõe afinal essa expectativa horrorosa que se tem dos homens, supondo que se não doutrinados no sentido de exprimir apenas sentimentos de conformidade com determinados valores ou convicções, exercendo a sua liberdade e o gozo de ir e vir entre o paraíso e o inferno, numa prática sacrílega, numa rebelião moral, incitante para os próprios sentidos, revigorante do ponto de vista do alcance das percepções e, à boleia destas, do encadeamento dos juízos, admitindo uma certa devassidão moral, comprazendo-se nos excessos, não apenas ao nível da carne, mas do espírito, sem que este deixe de ser temperado por um certo temor, sem cair nesse gozo estéril de provocar e causar choque só por isso mesmo, recaindo em cenas imundas e num registo blasfemo, mas, em última análise impotente.

Ora, basta comparar o estilo nervoso e variado deste livro com o estilo linfático e preso de tantos dos livros que se seguiram para se ter em conta um certo desvario a que o poeta se entregou devido às solicitações e ao ruído de que passou a estar cercada a mesa onde se sentava para escrever. Nunca mais teríamos dele versos como estes: “Há cemitérios solitários,/ túmulos cheios de ossos sem rumor,/ o coração atravessando um túnel/ negro, negro, negro,/ como um naufrágio para dentro agonizamos,/ como se no coração nos afogássemos,/ como irmos caindo da pele até à alma. (…) À zona do som a morte chega/ qual sapato sem pé, como um fato sem homem,/ chega a bater com um anel sem pedra e sem dedo,/ chega a gritar sem boca, sem língua, sem garganta./ Porém seus passos soam/ e o seu vestido soa, silente, como uma árvore. (…) A morte está nos catres:/ nos colchões lentos, nos negros cobertores/ vive deitada, e de repente sopra:/ sopra um rumor escuro que faz inchar os lençóis,/ e há camas navegando para um porto/ onde ela espera, vestida de almirante.”

Assim, vemos em confronto aqui dois elementos de entre os tantos que evidenciam o lado idiossincrático desta personalidade bastante complexa, e nota-se uma certa degradação a partir do momento em que a poesia passa a estar ao serviço de um determinado programa social e político, uma forma de corrupção, ainda que a tentativa de libertação aqui se guiasse por uma busca árdua de certos princípios de virtude, o que permitiu, no entanto, a Neruda desculpar o terror imposto pelo regime soviético. E não deixa de ser significativo o quanto a sua obra e também a sua figura pagaram um preço com essas cedências, sendo fácil demonstrar através da sua evolução como uma grande poesia não se deixa subjugar, e mesmo a sua fronteira moral deve ser porosa, deve estar exposta e ter em si um elemento de perigo, implicando uma atitude de desafio permanente às convenções, e até uma coragem para se ser fiel a si mesmo e aos seus instintos, contra essas formas de adesão que definem um percurso antes deste ser percorrido. Os grandes poetas tornam-se cruciais nos momentos em que os deuses se escondem ou assumem uma expressão imprecisa, é então que os apontam a dedo, mergulham no sonho agitado da História, mas reservam uma certa distância, chegam a parecer frívolos, parecem trocar as questões sociais por caprichos, frivolidades, preferem escutar uma mulher ao fundo do corredor a urinar a participar das grandes cerimónias, integrar o coro junto de políticos fugazes. No fundo, sabem atraiçoar os protocolos e as expectativas, e reconhecem como são frágeis os heróis verdadeiros, e como o que os distingue acima de tudo é a coragem de agir de acordo com os seus valores, sem pedir caução à sua época. Sempre que Neruda cedeu ao enfadonho relambório da ditadura do povo, a sua poesia deixou de ser humana, tornou-se inchada, grandiloquente e pífia. Mas Neruda não deixou de saber dar voz também a um encanto expressivo que pertence a esses que agem precipitadamente e sem cálculo, seguindo essa água veloz tão difícil de conter, esse fluxo imprevisível da torrente, ao mesmo tempo trivial e portentoso. Se Neruda se deixou capturar pelo seu próprio mito, e cortou com aquela agitação radiante que caracterizou a sua juventude, isso não apaga o génio desses versos que persistirão, muito depois da carcaça histórica ter esfriado e de todos os detalhes embaraçosos e irrelevantes serem esquecidos, num uivo que enfebrecerá pelos séculos fora os leitores que preferem o ânimo insubmisso dos que não seguiam por mapas, mas persistem do lado de um “conhecimento sem precedentes”. Aquele poeta que alcançou o auge com Residência na Terra e que depois foi fazendo aparições de forma irregular nos momentos mais cativantes dos títulos que se seguiriam, conserva a promessa de uma inteligência jubilante e mordente, e quando está dominado por esse ímpeto aquilo que diz, quer esteja sob o efeito de um deslumbramento ou a resvalar para um registo desesperante ou trágico, está sempre do lado da vida, que se impõe até ao limite do assédio, uma vida petulante, enérgica, transmitindo-nos o orgulho da sua canção perturbadora e inesquecível, que não deixa atrás de si qualquer rastro e, de cada vez, só se deixa descobrir se formos por um caminho diferente.

Voltando àquele poema (“Só a morte”) de que acima citámos três estrofes, talvez para assinalar os 50 anos volvidos da morte envolvida em tanta polémica e suspeitas que levou o poeta valha a pena citar mais outra das suas estrofes: “Há cadáveres,/ há pés de pegajosa lousa fria,/ há a morte nos ossos,/ como um puro rumor,/ como um latir sem cão,/ saindo de certos sinos, certos túmulos,/ crescendo na humidade como o pranto ou a chuva.”

Ora, meio século depois, persistem as dúvidas quanto à causa da morte de Pablo Neruda, poucas semanas depois do golpe de Estado de 1973. Dois anos antes, tinha-lhe sido atribuído o Nobel da Literatura, e sendo um dos intelectuais mais empenhados na denúncia da ingerência norte-americana nos países que compunham “o seu quintal”, e tendo desistido da corrida às presidenciais a favor do seu amigo e aliado político Salvador Allende, e tendo integrado o executivo que este liderou entre 1970-73, era uma das vozes mais incómodas, e, naturalmente, a sua morte numa clínica privada, na capital do Chile, onde estava a receber tratamento para um cancro da próstata, aconteceu em circunstâncias que suscitaram sempre desconfianças. Neruda tinha 69 anos, e morreu pouco depois de Allende se ter suicidado para não se entregar aos militares após a queda do seu governo em setembro de 1973. Foi um dos golpes mais violentos que ocorreram naqueles anos na América Latina, e tal como aconteceu a outros membros do governo, viu as tropas invadirem as suas propriedades. De imediato, foi convidado pelo governo mexicano para que ele e a mulher, Matilde Urrutia, recebessem asilo político, mas foi internado na clínica de Santa María, na capital do Chile, e na noite de 23 de setembro, a clínica informava que Neruda havia morrido de insuficiência cardíaca. Horas antes, tinha telefonado à mulher para lhe dizer que tinham ministrado algum tipo de medicação que o deixou a sentir-se muito pior. Já em 2011, Manuel Araya, o motorista de Neruda na altura, confirmou publicamente que, antes de morrer, o poeta se queixou de que os médicos da clínica lhe injectaram uma substância desconhecida no estômago. Ainda que ao longo dos anos muitas tenham sido as testemunhas, incluindo a viúva, que procuraram dissipar os rumores de que Neruda teria sido envenenado, nem as perícias entretanto realizadas a mando dos tribunais foram conclusivas

Em 2013, um juiz ordenou a exumação dos restos mortais do poeta e que fossem enviadas amostras para laboratórios de genética forense. Sete meses depois, uma equipa de peritos internacionais e chilenos excluiu a hipótese de envenenamento, garantindo que não havia "agentes químicos relevantes" que pudessem ter provocado a morte de Neruda, e especificando que "nenhuma prova forense" apontava para uma causa de morte que não fosse o cancro da próstata. Contudo, em 2017, um outro grupo de investigadores forenses anunciou que tinham encontrado vestígios de uma bactéria potencialmente tóxica num dos seus molares. O painel entregou as suas conclusões ao tribunal e foi-lhe pedido que tentasse determinar a origem da bactéria. No relatório final, que só em fevereiro deste ano foi entregue ao juiz, os cientistas afirmam que outras provas circunstanciais apoiam a teoria do homicídio, incluindo o facto de, em 1981, a ditadura militar ter envenenado prisioneiros com bactérias potencialmente semelhantes. Mas os investigadores também admitiram que, sem mais provas, não será possível determinar de forma conclusiva o que levou à morte de Pablo Neruda. Entretanto, e depois dos militares, chegou a vez das guerras culturais entrarem em cena no Chile, isto depois do país ter vivido um momento #MeToo em 2018, com uma série de denúncias de assédio sexual nos campus universitários e que levou a uma recomposição às três pancadas dos currículos. Quem mais beneficiou com esta reviravolta foi Gabriela Mistral a outra poeta chilena distinguida pela Academia Sueca, e a fava coube a Neruda, que tem vindo a ser alvo de uma campanha de recriminação pelas suas falhas de carácter na sua vida íntima, em particular pelo facto de ter abandonado a mulher e uma filha, Malva Marina, que nasceu com hidrocefalia e que viria a morrer com apenas oito anos. Outro aspecto que causou bastante indignação, é um parágrafo das suas memórias, publicadas postumamente, em 1974, em que Neruda assume que violou uma empregada naquele período da sua juventude em que esteve como cônsul em Ceilão (actual Sri Lanka). Com base nesta passagem, e na sequência de protestos, em 2018, o Congresso chileno deixou cair uma proposta com vista a rebaptizar o aeroporto de Santiago em homenagem a Neruda.