A decisão de Carlos Alexandre – que não acompanhou o pedido do Ministério Público e decretou prisão domiciliária, sem vigilância eletrónica, para os dois principais arguidos da Operação Picoas – apanhou de surpresa os investigadores da Operação Picoas, sabe o i. Os argumentos do MP, que evocou o perigo de fuga e o risco de destruição de prova para pedir prisão preventiva, para Hernâni Vaz Antunes e a domiciliária, convertível numa caução de dez milhões de euros, para Armando Pereira não colheram frutos junto do magistrado, que aplicou medidas de coação menos gravosas, embora tenha dado ordens para retirarem o helicóptero privado do cofundador da Altice.
O Ministério Público mostrou-se preocupado com a eventual perturbação do inquérito e destruição de provas, dando como exemplo que os arguidos, ao terem tido conhecimento antecipado do da Operação Picoas uma semana antes das buscas, terão destruído documentação, enquanto outras provas terão sido colocadas a recato em locais com os quais nenhum dos arguidos estava relacionado.
O cofundador da Altice Armando Pereira durante o interrogatório, dirigido pelo juiz Carlos Alexandre e com a presença dos líderes da equipa de investigação, o procurador Rosário Teixeira e o inspetor tributário de Braga Paulo Silva, admitiu que na véspera das buscas realizadas à sua mansão em Guilhofrei (Vieira do Minho) e da sua detenção preventiva, foi contactado pela TVI/CNN Portugal com um pedido de comentário ao que se iria passar.
No fim de semana anterior ao desencadeamento da operação, o empresário bracarense Hernâni Vaz Antunes, amigo de Armando Pereira e que terá atuado em conluio com ele na conceção e concretização do esquema, deslocou-se para o Algarve, enquanto o contabilista Álvaro Gil Loureiro, seu colaborador e alegado cérebro de muitas das manobras efetuadas para colocar em paraísos fiscais os ganhos presumivelmente ilícitos de ambos, partiu para o Luxemburgo. Porém, nada acontecendo nos dias imediatamente a seguir, os dois acabaram por regressar à sua base, em Braga.
Os investigadores concluíram que, a partir da sexta-feira anterior às buscas e ao início da detenção dos quatro suspeitos, foi destruída documentação relacionada com os esquemas alegadamente ilícitos que terão posto em prática no seio da operadora e que a lesaram em 250 milhões de euros, enquanto outras provas terão sido colocadas a recato, em locais com os quais nenhum deles estava relacionado.
Os investigadores apenas conseguiram recuperar parte das provas com a colaboração do contabilista de Hernâni Vaz Antunes que durante o interrogatório, perante o procurador Rosário Teixeira e o juiz de instrução, decidiu contar as práticas ilegais que delapidaram o património da Altice. Por isso, o Ministério Público pediu que Álvaro Gil Loureiro aguardasse o prosseguimento do inquérito em liberdade e assim decidiu Carlos Alexandre, impondo uma caução de 250 mil euros. Já Melissa Antunes, filha do empresário bracarense, terá de pagar 500 mil euros. A antiga jogadora de futebol do Sporting de Braga, quando foi ouvida, atirou para cima do pai toda a responsabilidade pela montagem do circuito empresarial e financeiro tendo sistematicamente respondido: “Não sei, recebi instruções do pai!”.
Melissa Antunes é titular de várias participações de capital em empresas criadas por Armando Pereira e Hernâni Vaz Antunes para fazer circular os seus ganhos supostamente ilícitos por paraísos fiscais (fugindo assim ao pagamento de impostos sobre as respetivas fortunas).
Os quatro suspeitos, Armando Pereira, Hernâni Vaz Antunes, que só foi detido dois dias após as buscas, Álvaro Gil Loureiro e Jéssica Antunes ficaram sob custódia policial mais de uma semana, sendo que a filha do empresário de Braga ficou sempre nas instalações da PSP, em Moscavide, enquanto os três restantes foram transferidos para o estabelecimento prisional junto à sede da Polícia Judiciária.
Vidas de luxo Na Operação Picoas, que visa crimes como corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal, num esquema que terá desviado da Altice cerca de 250 milhões de euros e lesado o Estado em mais de 100 milhões, foram apreendidos aos principais suspeitos, mais de 30 carros de alta cilindrada, assim como as contas bancárias de ambos.
Entre as viaturas apreendidas tanto ao cofundador da Altice, detentor da 19ª maior fortuna em França e certamente o português mais rico da atualidade, como a do seu amigo e colaborador no alegado esquema de delapidação do património material e financeiro do grupo, figuram um Rolls Royce, vários Ferraris (incluindo um Ferrari Monza), quatro MacLaren Senna, três Lamborghinis e dois Bugattis.
Ambos emigrantes na sua juventude, tanto o cofundador da Altice, nascido na freguesia de Guilhofrei, em Vieira do Minho, como o amigo, natural de uma aldeia próxima de Braga, eram colecionadores de carros de luxo e as autoridades judiciais justificam a apreensão das viaturas sob a alegação de terem sido adquiridas com as vantagens económicas indevidas que terão resultado dos esquemas ilícitos por eles aplicados no seio do grupo. Um dos MacLaren Senna de Antunes foi notícia em 2020 por se ter incendiado no centro de Braga.
Mas o gosto de Hernâni Vaz Antunes pelo pelo luxo, característica que partilha com Armando Pereira, não se ficava pelos carros. Nos últimos dois anos, gastou cerca de 1,5 milhões de euros em vinho, a maioria francês, com garrafas adquiridas, no mínimo, a 10 mil euros cada.
Os investigadores passaram a pente fino a forma de aquisição de outro património valioso dos suspeitos, em particular as mansões que ambos os empresários tinham adquirido. Armando Pereira possui (em seu nome ou através de testas-de-ferro) mansões em Guilhofrei (a qual, ocupando uma quinta com área superior a 15 hectares, é considerada a maior do Norte do país), Genebra, Málaga e Ilhas Virgens, além de apartamentos de luxo em Nova Iorque (Manhattan) e em Paris (frente ao Sena). A aquisição do apartamento de Nova Iorque, por 70 milhões de dólares (63 milhões de euros), efetuada em nome da sua filha, Gaëlle Pereira, e do genro, Yossi Benchetrit (diretor de compras da Altice USA), foi notícia no ano passado, por ter sido considerada a operação imobiliária mais cara no mercado residencial de Nova Iorque durante 2022.
Na acusação, o Ministério Público referiu que a primeira indicação de suspeitas sobre a intermediação irregular de fornecimentos à Altice remonta a 2013, quando o grupo, com origem em França, fundado pelo marroquino Patrick Drahi, com 70 por cento do capital, e por Armando Pereira, com a restante participação, detinha em Portugal apenas a empresa Cabovisão, sociedade de distribuição de televisão por cabo. No ano anterior, alegadamente contando com a colaboração de Pereira, Antunes tornou-se fornecedor de referência do grupo tanto em Portugal como em diversos outros países europeus, nos EUA e na República Dominicana, tendo podido através dessa ligação – de acordo com a investigação – viciar a seu favor as decisões internas de contratação. E em 2013 formou a empresa HVJA General Trading FZC, com sede em Ajmã, nos Emirados Árabes Unidos (EAU), para fazer a intermediação do fornecimento de bens à Cabovisão, recebendo da empresa portuguesa, por essa via, 687.500 euros e repartindo supostamente os ganhos com o homem de Guilhofrei.
Os dois empresários minhotos, atuando em conluio, terão usado a influência conseguida sobre as decisões de contratação da Altice para intervirem junto de outros fornecedores do grupo, impondo-lhes não só a cobrança de verbas indevidas, pagas a firmas da sua esfera pessoal, como a aquisição de supostos trabalhos a sociedades controladas por Hernâni Vaz Antunes. Os lucros ilegais assim obtidos – concluiu o MP – seriam repartidos entre Armando Pereira e o amigo e canalizados para sociedades offshore criadas por ambos nos EAU (e em particular no Dubai), com passagem pelo Luxemburgo, pelos EUA, pela República Dominicana ou, no caso português, pela Zona Franca da Madeira (ZFM). O nome dos próprios nunca aparecia associado a essa rede empresarial (sendo apenas os seus beneficiários finais), e daí a utilização de outras pessoas como testas-de-ferro – casos de Melissa Antunes ou do pai do genro de Armando Pereira, que deu o nome para a criação nos EAU das offshores Sanjy International Commercial e CBIC Business Intermediary, apesar de os investigadores acreditarem que ambas pertencem ao homem da Altice.