É o rosto da luta contra os comportamentos aditivos e dependências, procurando não ser fundamentalista. Por isso, acabou por tornar-se uma figura a nível mundial, mostrando o exemplo português. Está receoso de que a toxicodependência possa disparar, até por falta de meios, mas João Goulão acredita que é possível inverter o caos que se anuncia. Quando fizemos a entrevista, João Goulão era o diretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), mas horas depois tomámos conhecimento, oficial, que o organismo será substituído pelo ICAD, que terá funções a nível nacional. Se será João Goulão a liderar esse processo, cabe ao ministro da Saúde decidir. Aqui fica um retrato do mundo da droga e toxicodependência dos últimos 40 anos.
Começo por uma pergunta inevitável. Alguma vez pensou que o Casal Ventoso voltasse ao estado em que está? Dezenas de pessoas, todos os dias, à beira da estrada, a injetarem-se?
Francamente, não esperava que isso acontecesse. De facto, há uns anos era impensável. Não era expectável que vivêssemos tantas situações complicadas na nossa sociedade que têm, também a este nível, consequências, nomeadamente dificuldades acrescidas que as pessoas vão sentindo.
Estamos a falar do período da troika e da pandemia?
A falar do período da troika, da pandemia e agora desta crise, que tem impacto na vida das pessoas. E, por outro lado, nós tivemos um momento em que houve um investimento sério e sustentado relativamente a esta área de intervenção, que teve a ver com a crise relacionada com o uso de heroína, nos anos 80/90, mas, a partir de determinado momento, parece ter havido a convicção de que os problemas estavam resolvidos e que não era necessário suster esse investimento. Isso tem repercussões na capacidade de resposta, sobretudo naquilo que é, por um lado, assegurar os níveis mínimos de dignidade humana às pessoas e, por outro lado, oferecer cuidados de qualidade facilmente acessíveis, disponíveis, que possam corresponder às necessidades das pessoas.
Para o comum dos mortais o que faz alguma confusão é, se não têm dinheiro, como é que vão comprar heroína, que é cara? Ou outro tipo de drogas?
Isso sempre aconteceu, quando as pessoas estão dependentes, a substância ou as substâncias das quais dependem tornam-se o centro da vida, tudo o resto perde importância. Sempre aconteceu assim.
O que fazem para arranjar dinheiro?
Pequena delinquência, pequenos biscates, pequenos expedientes de sobrevivência…
Prostituição?
Sim, prostituição e uma série de atividades que estão relacionadas com essa necessidade de comprarem droga.
Quando diz que não há meios para contrariar este novo recrudescimento dos heroinómanos, nomeadamente no Casal Ventoso, em Lisboa, e na Pasteleira, no Porto, o que quer dizer?
Por um lado, a capacidade de oferecer tratamento imediato, sem constrangimentos, sem listas de espera, para todos aqueles que pretendam. E essa é a primeira grande prioridade. Foi com essa disponibilidade que nós conseguimos, de facto, lidar com a tal crise dos anos 80/90, que teve um impacto bem superior à que esta crise está a ter. Mas se não invertermos a situação, para lá caminhamos.
Vamos ter outra vez um Casal Ventoso à antiga?
Exatamente.
Quando morria praticamente uma pessoa por dia, por overdose?
Exatamente. Se não invertermos a situação, acho que sim, é possível.
E no Porto, no bairro da Pasteleira?
Há uma visibilidade crescente de franjas, de população utilizadora de drogas mais desorganizada, mas isso não tem uma correspondência direta com o disparar dos consumos da população em geral. Diria que é como uma sub-população que se tornou muito mais visível no espaço público. Mas diria que nos grandes números não há assim um crescimento exponencial do fenómeno das toxicodependências.
Tem uma ideia de quantos heroinómanos há nesta altura?
Nos anos 80/90 chegámos aos 100 mil, depois passámos para os 30 mil, número que se deve registar agora. Só que agora há novas substâncias envolvidas no consumo das tais pessoas mais desorganizadas, nomeadamente o crack, cocaína, várias formas de apresentação…
Cocaína injetada?
Sim, também é dos aspetos que mais chocam a envolvente, que tem a ver com o consumo injetável no espaço público. Mas o crack, por exemplo, consumido primordialmente por via fumada, é uma substância com um poder aditivo fortíssimo e que desorganiza muito rapidamente as pessoas.
O crack que é uma mistura de cocaína…
É um produto da cocaína, à qual é adicionada uma série de produtos. Depois há o speedball, que é uma mistura de cocaína com heroína.
Quantas pessoas tem neste momento para combater este flagelo? Ou melhor, quantas pessoas há em Portugal?
Profissionais? Tenho alguma dificuldade em dizer isto. Como sabe, até determinada altura, tivemos o Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT), um instituto com a capacidade de pensar as políticas e de as executar no terreno com os seus próprios meios, mas em determinada altura, em 2012, houve a decisão de extinguir o IDT e de criar o SICAD, na direção geral, e a maioria dos profissionais que que trabalhavam em instituições públicas dedicadas a esta área passaram para a dependência das Administrações Regionais de Saúde (ARS). No IDT tínhamos à volta de 1600/1700 profissionais. No SICAD temos 80. Todos os outros estão na dependência das ARS, e tem vindo a haver uma sangria de profissionais, que não sei quantificar exatamente, mas por via das reformas, ou de saídas por outros motivos, as equipas têm vindo a ficar mais fragilizadas e com menor capacidade de resposta.
O que é preciso fazer para inverter esta situação? De acabar outra vez com o Ventoso Ventoso, com a Pasteleira.
É preciso reforçar a capacidade de resposta…
Para quem não tem noção do que estamos a falar, nos anos 90 eram centenas, centenas e centenas de pessoas todos os dia no Casal Ventoso, talvez milhares, de manhã à noite, onde morria, em média, uma pessoa por dia por por overdose. E é disso que estamos a falar, pois os mais novos podem não saber.
Era uma realidade que a partir de determinada altura foi possível inverter pelo desenvolvimento de políticas integradas. Por um lado, com a oferta de tratamento com disponibilidade e qualidade suficiente. Por outro lado, o desenvolvimento de políticas de redução de riscos e minimização de danos, procurando ativamente as pessoas mais desorganizadas, através de equipas de rua, oferecendo-lhes o suporte básico através de centros de acolhimento, centros de abrigo, programas como a troca de seringas, que foi precocemente instalado em Portugal.
As salas de chuto?
Na altura ainda não, só mais recentemente é que foram criados espaços de consumo vigiado, mas entretanto tínhamos os programas de substituição opiácia, com metadona, em baixo limiar de exigência e que contribuíram muito rapidamente para a diminuição dos impactos e da tal visibilidade que na altura o fenómeno tinha.
É esse modelo que tem que ser ativado?
Acho que tem que ter um segundo impulso adequado às suas circunstâncias e às substâncias atualmente em uso.
Caso contrário caminhamos para as imagens do passado, que estávamos a falar. Vou recordar-lhe uma entrevista que deu em 2011, à revista brasileira Isto É. Perguntavam-lhe como funcionava a política de drogas em Portugal. A sua resposta foi: ‘O interesse da descriminalização foi tornar o nosso sistema coerente. Temos uma população de 10 milhões de habitantes e uma rede de saúde dedicada apenas aos consumidores de drogas, que envolve cerca de 2000 profissionais, 70 unidades de ambulatório em todo o país e mais de 100 unidades terapêuticas com cerca de 2000 lugares disponíveis. Tudo gratuito’. Qual é o cenário atual?
Um número bem menor de profissionais dedicados em instituições do Estado. As comunidades terapêuticas devem ser umas 60, são sobretudo privadas ou do setor social. Mas também elas enfrentaram dificuldades muito significativas, até pela não atualização dos preços que durou até há muito pouco tempo. Só muito recentemente é que houve uma atualização da remuneração dos serviços prestados por essas entidades e elas próprias enfrentaram grandes dificuldades, desde logo nas ocasionadas pela pandemia, em que havia enorme dificuldade em admitir novas pessoas, as entradas eram a conta gotas, porque não era possível admitir, digamos, um novo grupo sem respeitar as quarentenas. Foram períodos complicados, e isso estrangulou, até do ponto de vista financeiro, estas unidades, e esse é mais um dos fatores.
Estas unidades de que fala são particulares e o Estado quando manda para lá alguém…
Suporta 80% do custo total do tratamento.
Nos idos anos 80/90 surgiram clínicas privadas muito duvidosas que tentavam recuperar toxicodependentes. Foi bastante crítico em relação a essas primeiras clínicas. Penso que chegou a dizer-me, na altura, que eram uma vigarice pegada Hoje, como estamos?
As primeiras respostas do Estado aconteceram no final dos anos 70, curiosamente no seio do Ministério da Justiça. Depois, houve uma temporada muito larga, até 87, por aí, em que ao nível do Estado não houve qualquer desenvolvimento. E foi o tempo em que floresceram as respostas privadas, sem qualquer regulação. Uma forma, diria completamente ad hoc e sem sem qualquer enquadramento por parte do Estado.
E onde se cometeram grandes barbaridades?
Algumas dessas unidades eram de grande qualidade, algumas ainda subsistem, outras eram negócios e, enfim, eram situações onde, até do ponto de vista do respeito pelos direitos humanos, havia práticas muito, muito duvidosas.
Como exemplo?
Felizmente, esse é um período que foi ultrapassado porque a partir de determinada altura o Estado assumiu o papel de regular a criação dessas unidades, estabelecendo regras às quais os empreendedores, sejam eles privados ou do setor social, têm que se conformar e obter uma licença de funcionamento. Uma vez obtida essa licença, podem celebrar com o Estado contratos de convenção.
E são vigiadas?
Sim, desde logo a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, que acompanham o seu funcionamento, fazem inspeções periódicas. Hoje diria que há padrões de qualidade que não são comparáveis com o que acontecia nessa década de 80. Temos um vasto leque de modelos de intervenção, mas têm em comum a existência de equipas multidisciplinares de responsabilidade. E não estamos a falar apenas das chamadas clínicas, estou a falar sobretudo de comunidades terapêuticas. Têm equipas multidisciplinares. A responsabilidade assumida por um psiquiatra. A partir daí, o modelo de intervenção é responsabilidade daquela equipa. A equipa tem que estar presente. Há também condições, diria de nível hoteleiro, mas no passado tivemos coisas a funcionar em verdadeiros pardieiros. Hoje em dia as instalações têm, de uma forma geral, uma dignidade que não tinham na altura, porque se pretende oferecer às pessoas respostas de qualidade e não são doentes de segunda, diria eu.
Tenho alguns amigos que passaram por essas clínicas, por esses centros de recuperação. Acha que as pessoas voltam a ser a mesma? É que falam muito nos 12 passos, não faças isto, não faças aquilo.
Como lhe digo, isso é um dos modelos de intervenção, nós não licenciamos propriamente modelos, mas temos profissionais capacitados para isso, que assumem a responsabilidade sobre a aplicação desses modelos. Há uma panóplia larga de modelos de intervenção. Todos eles têm a sua legitimidade e diria todos eles têm os seus resultados, dependendo também do tipo de população alvo ao qual se dirigem ou que procuram.
Qual acha que é um dos segredos para alguém deixar de ser viciado em heroína ou cocaína, ou o que seja.
As motivações, as origens… Os percursos das pessoas são de tal forma díspares que há modelos mais adequados a um determinado tipo de personalidade, num determinado tipo de circunstâncias do que outros. Nós temos enorme dificuldade em fazer uma comparação entre os diversos modelos existentes ao nível da eficácia, porque o ponto de partida é, muitas vezes, muito diferente. Temos comunidades terapêuticas que fazem sobretudo o seu recrutamento na rua, nos sem abrigo, em populações muitíssimo desorganizadas. Outras que se dirigem a classes sociais mais favorecidas. Não quero afunilar demasiado, mas em muitos casos são filhos de família… O ponto de partida é francamente diferente. As circunstâncias à entrada são diferentes, as circunstâncias à saída sê-lo-ão também. Dizer assim, este modelo tem x por cento de eficácia. Ao fim de cinco anos, houve 30% das pessoas que passaram por aqui que cessaram completamente os seus consumos, alteraram o seu estilo de vida. E o outro modelo tem apenas 5 a 10% eficácia, isto é muito condicionado pelo ponto de partida. A comparação direta entre os diversos modelos é extremamente complicada. Aquilo que temos pugnado por ter é respostas adequadas a determinadas circunstâncias. Temos, por exemplo, comunidades terapêuticas dirigidas a grávidas ou mães com filhos pequenos, unidades terapêuticas dedicadas sobretudo a menores, comunidades terapêuticas que têm o seu nicho de recrutamento também em pessoas mais velhas. Não esquecer que nós temos os tais heroinómanos da década de 80 e 90. Muitos deles, felizmente, conseguimos que estivessem vivos hoje.
Que, de vez em quando, têm recaídas.
Sim, nós estamos a falar de uma doença crónica recidiva, em que as pessoas têm diversas fases. Algumas podem considerar que aquilo foi um capítulo encerrado nas suas vidas, embora seja comum também ouvir as pessoas dizerem ‘eu sou um toxicodependente parado, adormecido’. Sem consumo. Dizer assim, ‘pronto, este é um capítulo completamente encerrado na minha vida, nunca mais’, em muitos casos é complicado. Temos que manter um acompanhamento ao longo da vida e é isso que é importante também. Que as pessoas saibam quando e onde recorrer e como é que podem ser apoiadas e ajudadas.
Há pessoas que vão mais pela vertente religiosa, outras pela espiritualidade não religiosa e outros apostam na questão física.
Alguns destes modelos têm uma forte inspiração religiosa e não vem daí mal nenhum ao mundo. Desde que não haja, digamos, um fanatismo. Outras, estão perfeitamente à parte desse tipo de inspiração e têm uma componente física, todas têm, e sobretudo quando falamos da tal questão dos opiáceos. Previamente há um processo de desabituação. As comunidades terapêuticas são espaços onde as pessoas se mantêm durante períodos bastante prolongados e onde, basicamente, aprendem a conhecer os seus próprios limites e o limite dos limites do outro. Viver em sociedade, em conhecer regras, adequar-se a essas regras que muitas vezes ficaram pelo caminho no seu processo de dependência. Todos estes modelos são bem vindos e têm as suas clientelas específicas.
Não quero ser cruel, mas um ex-toxicodependente nunca mais vai ser a mesma pessoa que era antes de ser toxicodependente.
A grande percentagem das pessoas que tiveram um percurso que passou por aí são condicionadas na sua vida por esse passado. Mas há pessoas que podem e que sentem que aquilo é um capítulo da sua vida que ficou lá atrás. Nada nos garante, no entanto, que, embora vivam em equilíbrio com este seu passado, em determinadas circunstâncias, confrontados com questões afetivas ou outras não os levem à recaída. Dou-lhe um exemplo. Antes da intervenção da troika, e durante uns anos, nós tivemos um programa de discriminação positiva para o emprego de toxicodependentes, de pessoas em recuperação. É o chamado Programa Vida Emprego, em que pessoas em recuperação eram colocadas em empresas, normalmente micro empresas, pequeninas empresas, sendo que o Instituto do Emprego e Formação Profissional suportava o ordenado mínimo e a empresa tinha deduções fiscais, benefícios fiscais por acolher, formar, e ensinar o ofício a essas pessoas . E houve uns milhares de pessoas que obtiveram emprego ao abrigo desse programa. A dado momento, este programa foi extinto. Quando veio a situação da troika, muitas destas microempresas que acolhiam dependentes ao abrigo deste programa, faliram ou tiveram grandes dificuldades e tiveram que despedir pessoas. Naturalmente, os toxicodependentes foram um dos mais afetados por estes despedimentos. E repentinamente foi como se lhes tivéssemos tirado o tapete. Alguma coisa que estava a correr bem, as pessoas tinham assumido novas responsabilidades, constituído família, comprado casa, enfim, entrado num percurso de vida próximo do normal e, de repente, tirámos-lhes o tapete e entre essas pessoas houve um número enorme de recaídas. Pessoas que voltaram a consumir como antes. Como esse programa de apoio ao emprego nunca foi reconstituído e…
Corremos o sério risco de ter um gravíssimo problema de toxicodependentes outra vez?
Corremos o risco de ter um recrudescimento importante deste fenómeno, sobretudo à custa das pessoas mais fragilizadas socialmente.
Lembra-se daquela campanha que houve em que se dizia ‘Droga igual a morte’…
Droga, Loucura, Morte.
Não acha que o discurso está todo errado? Porque se a droga não fosse uma coisa boa, ninguém se drogava, não é?
Exatamente, mas isso é o que eu considero em termos de ter a própria intervenção preventiva. O discurso das drogas não pode ser feito à base das caveiras e das afirmações terroristas. Como diz, em vez de pormos todo o enfoque em dizer que as drogas são más, matam, etc, é importante que as pessoas percebam que as drogas são ‘boas’, e tenho sempre o cuidado de colocar todas as aspas, porque isto é uma afirmação perigosa, digamos assim, e ainda por cima por parte do responsável do serviço. Mas as pessoas usam drogas porque lhes proporcionam prazer ou aliviam desprazer. Há pessoas que as utilizam e há vários contextos de utilização, mas simplificando muito: há dois principais contextos para a utilização de drogas, ou seja, no âmbito de situações agradáveis, estamos agora aqui em pleno período de festivais e de festas. E há pessoas que utilizam substâncias psicoativas para potenciar o prazer que usufruem nessas circunstâncias. A maior parte delas provavelmente são utilizadores ocasionais, recreativos e não vem daí um mal disparatado ao mundo. Mas há um outro contexto em que elas são utilizadas, que é no alívio do sofrimento, e aí o risco de que as substâncias se tornem o centro da vida das pessoas é muito maior.
Há algum estudo que diga, por exemplo, qual é a percentagem de jovens drogados sociais versus viciados? Isto é, daqueles que consomem droga, e há muitos que consomem durante mais de 50 anos e não têm grandes problemas, seja o haxixe, a erva, a cocaína, e não ficam viciados?
Seja o álcool.
Sim, mas há estudos?
Há vários estudos e que coincidem, digamos assim, no nível da percentagem entre consumidores ocasionais, recreativos, que vivem em relativo equilíbrio com o seu uso e aqueles que desenvolvem dependência. Isto é, quase à volta dos 85% de recreativos e ocasionais para 15% de dependentes. 15 ou 10% dependentes.
Não acha que o Estado devia fazer campanhas em que explicava isso? Por um lado, mostrando que há quem se drogue, mas não tem problemas de maior. Mas, quem entrar nesse mundo pode ficar na percentagem dos viciados? Na Holanda não se levavam heroinómanos em estado terminal às escolas para mostrar os perigos da droga?
Não me parece que essa seja uma estratégia muito eficaz. E, francamente, não sei se a Holanda tem esse tipo de prática. Na Holanda fizeram um grande investimento, tiveram um grande foco no desenvolvimento das políticas, na separação entre a abordagem de substâncias como a canábis, por contraponto a outras, como heroína ou a cocaína. Ainda assim, os números de uso problemático são bastante significativos, para além de alguns fenómenos que acabaram por acontecer na Holanda relativamente à canábis, por exemplo, por um certo turismo relacionado com a não proibição do uso em determinados contextos. Mas esse tipo de abordagem, francamente, não me parece o mais adequado.
Qual acha então que é a melhor abordagem?
Nós privilegiamos, em termos de abordagem preventiva, o que tem a ver com, por um lado, a informação, que é apenas uma componente da prevenção. A informação a propósito das substâncias e dos seus riscos, etc. Mas o foco não pode ser apenas isso. Muito mais o desenvolvimento de competências sociais e da capacidade da pessoa fazer escolhas informadas. É muito por aí vamos.
O que quer dizer isso?
Dou-lhe um exemplo: o principal programa que temos em execução nas escolas e em outros contextos é o programa ‘Eu e os Outros’, que é um programa baseado na possibilidade de as pessoas fazerem escolhas e de enfrentarem mais adiante as consequências das suas escolhas. Vou dar um exemplo que não é exatamente rigoroso, mas o princípio é um bocado isto. O programa é baseado em narrativas que foram construídas em torno de determinadas personagens que correspondem a estereótipos da população juvenil. Temos o surfista, o dread, o punk, por aí fora. Personagens que foram elas próprias construídas por jovens nas escolas. Há um boneco, uma imagem visual e uma história daquela personagem. Depois, fazemos evoluir estas personagens em situações concretas da vida. Por exemplo, um miúdo em que, o dread, vamos imaginar, faz 16 anos para a semana. Vai fazer uma festa de anos. Na sala de aula, a turma divide-se em dois e é perguntado: ‘Como vamos fazer esta festa? Vai ser em casa? Os pais permitem que a festa seja feita em casa ou a festa vai ser num espaço público?’. Os miúdos discutem entre eles, vantagens, desvantagem, ok. Chega-se à conclusão do que fazemos. Seguinte pergunta: ‘Então e agora? Vai haver bebidas alcoólicas ou não?’. Os miúdos discutem os prós e contras. E para os prós, por exemplo, se não houver bebidas alcoólicas, ninguém vai à festa.
Isso é quase um focus group.
Exato. Em contexto de sala de aula, as pessoas discutem. Se não há bebidas, não vai aparecer ninguém. Se há bebidas alcoólicas alguém vai vomitar o sofá. Portanto, eu vou fazendo escolhas e mais à frente vou sendo confrontado com possíveis consequências. Mas sou forçado a refletir acerca disto e interiorizar algumas questões relacionadas com isto, e o mesmo para as drogas, o mesmo para o haxixe, o mesmo agora para os ecrãs. No fundo, é pôr os jovens adolescentes a refletir sobre isto, é do nosso ponto de vista, muito mais eficaz do que dizer: ‘Cuidado, não uses isto porque faz mal àquilo. Não use este porque faz mal aqui’. É importante que eles saibam.
Vou fazer-lhe uma pergunta que não sei se é mito urbano ou se é mesmo verdade. Li, e ouvi dizer, que nós no cérebro temos uma parte que é mais adita e outra que é menos adita. No caso de termos uma parte mais adita não há nada a fazer. Vamos transformar-nos em viciados, seja na droga, no jogo, no álcool…
Haverá circunstâncias genéticas de predisposição. Mas a nossa abordagem não pode tomar isso como ponto de partida e dizer assim: ‘Este tipo tem estas condicionantes genéticas e inevitavelmente vai acontecer isto. Independentemente daquilo que possam ser essas condicionantes, é preciso intervir de uma forma tão atempada e tão presente quanto possível na prevenção, também, e no estar atento às respostas, quando os sinais de algum tipo começam a instalar-se.
Há cinco anos dizia que a droga estava no 13.º lugar das preocupações dos portugueses. Hoje é a principal preocupação do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência.
Francamente, em estudos recentes não conheço o ranking. De facto, em 97, no Eurobarómetro, a droga aparecia como a primeira preocupação dos portugueses. Depois caiu por aí abaixo. Houve outras prioridades. E isso tem reflexo também quando nós falamos, não direi um desinvestimento, mas numa estagnação no investimento nesta área, tem a ver com isso. Deixou de ser, de facto, uma grande prioridade política. As coisas pareciam bem encaminhadas, parecia ser um problema relativamente contido na nossa sociedade e noutras sociedades, nomeadamente europeias. E então deixou de estar no foco. Lembra-se de que há uns anos não havia telejornal nenhum em que não houvesse notícias relacionadas com droga? Depois desapareceu e agora voltou a aparecer. Voltou a aparecer com os tais afloramentos das populações mais desorganizadas, mais visíveis no espaço público, interferindo com aquilo que é o mainstream da sociedade. E isto volta a colocar a questão. Acredito que ainda não voltou ao primeiro lugar do ranking das prioridades…
Mas no observatório diz-se que nunca se consumiu tanto como agora…
Sim, mas o Observatório Europeu de Droga e Toxicodependência, que vai ser a nova Agência europeia em matéria de drogas, é uma agência completamente dedicada a esta matéria e é importante e é muito válido que chame a atenção para isto. O diretor do Observatório costuma dizer: ‘Nunca houve tantas drogas em circulação, tanta disponibilidade de drogas, tantas pessoas a utilizarem drogas e a usá-las em toda a parte’. Isto não é um apanágio de Portugal, é uma tendência global ao nível do espaço europeu. Daí que isto tenha reflexo nas prioridades políticas, e ainda não aconteceu. Aquilo que vemos é, de facto, um tipo de preocupação que se coloca muito ao nível da segurança e da ameaça sentida por parte da população. E menos preocupação colocada no lidar com esta população, ela própria e responder às suas necessidades. Há aqui equilíbrios entre a questão da segurança e da oferta de drogas, etc. e as necessidades da população utilizadora de drogas que estão em tensão como provavelmente nunca estiveram antes.
O consumo de canábis cresceu e já não tem nada a ver com a que fumou, e que eu fumei, que tinha uma substância ativa de THC de 3%, hoje é 20%, o que faz com que muitos miúdos fiquem com esquizofrenia, com paranoias e por aí fora. Se existisse uma legalização que controlasse essas drogas, quer seja canábis, quer seja heroína, cocaína por aí fora não acha que se controlava muito melhor o problema?
É possível que sim.
Não estou a falar de Portugal isolado, estou a falar de uma política mundial ou, pelo menos europeia, que dissesse ‘bem, a partir de agora vamos controlar nós a qualidade’…
Essa é a grande questão. Se seremos mais eficazes num quadro de liberalização/regulação dos mercados. Como diz, por que é que a canábis há de ter um tratamento específico?
Hoje é mais fácil um miúdo comprar MD, que é feito num vão de escada, do que se calhar canábis…
Exatamente. A grande questão é se seremos mais eficazes a controlar os efeitos desta panóplia imensa de substâncias num quadro de regulação ou não. Acho que é importante aprendermos e seguirmos muito de perto as experiências de regulação que têm acontecido noutros países. Pelo que é possível colher, para já, a experiência só tem a ver com canábis…
Nomeadamente em alguns países, como Estados Unidos, Uruguai e Canadá…
E República Checa. Há vários países que têm políticas desse tipo. Há problemas que não parecem ficar resolvidos com essa questão, se calhar temos que aperfeiçoar a reflexão em torno do modelo possível. Mas, de uma forma geral, falamos no uso responsável e adulto das substâncias, o que deixa de fora uma população que é talvez uma das principais utilizadoras destas substâncias. Ao falarmos de canábis, uma das principais populações utilizadoras são os jovens. Como é que eles acedem? Será que o tal mercado ilícito, o mercado paralelo a essa população mais juvenil desaparece?
Vou dar-lhe uma resposta que deu numa entrevista: ‘Estava numa fila de supermercado e os miúdos, menores, estavam a comprar cerveja e a senhora disse que não podiam e a mulher de trás disse, eu pago as cervejas’. Quer dizer eles não têm idade para comprar, mas alguém iria compra por eles. Em vez de estarem a consumir 20% de THC consumiam 3%. Isso é um exemplo…
Sim, mas…
Como a cocaína, as misturas que põem e que se diz que fazem muito pior e por aí fora…
De qualquer forma, quando enunciou a sua pergunta, vejo uma questão importante, a regulação do mercado para todas estas substâncias num país só é muitíssimo complicada. E mesmo os tais benefícios da regulação de mercados, nomeadamente da canábis em alguns países parece… Nós continuamos confrontados com estudos para todos os gostos, continuamos a ter informação que diz, ‘sim senhor e é a quinta maravilha no controlo dos efeitos adversos da canábis’ e outros que dizem que canábis e condução, por exemplo, nos Estados Unidos, em Washington e numa sessão em que participei, alguém dizia que o efeito na condução sob o efeito de canábis tem sido desastroso. Há aqui uma série de questões a ponderar e já li vários comentários a dizerem que me opunha à regulação da canábis, não é verdade. Não sou é um entusiasta porque ainda não me conseguiram convencer de que alguns dos principais problemas relacionados com o uso da canábis são resolvidos por essa via.
O jogo não é pior que a droga? O que dizem, por exemplo, nas clínicas de tratamento em Inglaterra, é que a ala mais complicada é a do jogo, depois a segunda é a heroína e por aí fora. É um mito ou não que o jogo é mais viciante do que a própria heroína e que há um problema gravíssimo do jogo online em Portugal?
Sim. É um problema que tem impacto na vida dos cidadãos, mas não consigo fazer um ranking entre os diversos tipos de dependência. Todos eles têm como substrato o mesmo tipo de mecanismo, um mecanismo de recompensa. A tal história do prazer, da busca do prazer. A cenourinha que está sempre em frente do nariz, mas que nunca é alcançada e o jogo e a sua disponibilidade tem tido impacto no número de jogadores problemáticos que têm esta atividade, que necessitam de estratégias. As clínicas do Reino Unido…
Contaram-me isso há muitos anos.
Só muito recentemente é que foi incluído também no âmbito de intervenção das comunidades terapêuticas em Portugal estas questões de comportamentos aditivos sem substância. Ainda não temos uma evolução que nos permita avaliar, até muito recentemente só internávamos devido a substâncias ilícitas ou álcool, só muito recentemente é que se abriu para esta nova tipologia.
Quantas pessoas teremos a ser acompanhadas pelo Estado ou ajudas?
Dou-lhe os dados oficiais de 2021 da Rede Pública Nacional de tratamento dos CAD: Utentes Ativos, Nacional por Consumo de outras substâncias psicoativas 23932 (64,0%). Utentes Ativos Nacional por
Problemas ligados ao álcool 13242 (35,3%). Utentes Ativos Nacional por Jogo 249 (0,7%)
Chama muito a atenção para o problema do álcool. Concorda que o vinho tenha aqueles rótulos com caveiras e fígados destruídos, à semelhança do tabaco?
Não, francamente não acredito muito em questões terroristas, já falámos da questão das caveiras. Mas, por exemplo, a existência de pictogramas nos rótulos, e há um que já é utilizado há bastante tempo, embora do ponto de vista seja demasiado pequenino e não sei se sempre devidamente decifrado, mas há na maioria das garrafas de vinho um pictograma com uma grávida e um sinal de proibido. É uma mensagem, que parece fundamental, de que a mulher grávida não deve beber bebidas alcoólicas.
Antigamente dizia-se que devia beber uma cerveja preta…
Não há álcool bom e álcool mau quando se trata deste tipo de situação. Mas continua a haver uma enorme complacência social relativamente ao uso do álcool e continuamos a ter, de facto, uma política fiscal ou ausência de política fiscal, relativamente ao álcool. Temos bebidas alcoólicas que são extremamente baratas e acessíveis e quando tratamos da oferta de substâncias ilícitas pensamos em polícia e alfândegas e quando pensamos em álcool, substância lícita e tão socialmente tolerada, a regulação da oferta faz-se muito pela publicidade ou ausência dela, pela regulação séria de publicidade e continuamos a ter uma coisa muito de faz de conta, sobretudo quando tem a ver com manifestações desportivas ou culturais e, por outro lado, uma política de preços. A política de preços que conduza àquilo que temos vindo a defender que é que exista um preço mínimo por unidade de álcool, nem sequer é aumentar o IVA das bebidas alcoólicas.
Isso traduz-se em quê? Uma imperial não devia custar menos de dois euros, por exemplo?
Por exemplo, não podemos ter bebidas alcoólicas mais baratas do que o leite ou de que a água em alguns casos, mesmo que de baixa qualidade. Isso é que parece um contrassenso. Por outro lado, vemos uma ausência de controlo relativamente a algumas determinações que estão presentes na lei. Por exemplo, as bebidas alcoólicas no supermercado só podem ser vendidas num determinado local, confinadas e com os avisos de que aqueles produtos só podem ser adquiridos por maiores de 18 anos e por aí fora. Mas depois temos logo à porta, logo a seguir às caixas, a ilha das promoções e encontramos em qualquer local do supermercado pontos de exposição de bebidas alcoólicas e sabemos como isto obedece a uma determinada técnica de vendas. Era importante, e parecem pequeninas coisas, que fossem tidas em consideração. Todo o trabalho de prevenção tem o seu peso, mas estas questões ao nível da oferta são também elas determinantes e é importante que sejam trabalhadas com mais cuidado.
Vamos então à história da lei da descriminalização. A proposta de projeto de lei diz que ninguém pode ser preso por ter droga para consumir em dez dias.
O que existe e o que foi determinado é que o consumo e a posse para uso pessoal, traduzido em transportar consigo doses até dez dias, calculadas com base na dose média diária para uso pessoal, seja descriminalizada. E isto significa uma primeira triagem quando um indivíduo é intercetado por um agente policial na posse de substâncias proibidas, substâncias ilícitas. Há uma primeira triagem que é feita com base na quantidade que tem consigo. Se tiver menos do que a quantidade para os tais dez dias é enviada para as comissões de dissuasão da toxicodependência. Trata-se de uma contraordenação e as comissões…
Como é que se define os dez dias?
Isso consta de uma portaria. Estes valores são e sempre serão mais ou menos…
Mas pelo que achei é um bocado insólito um grama de heroína para dez dias?
É assim que está na portaria.
Isso é ridículo… Quem é que define essa tabela?
Essa tabela foi feita em 96 e pode ser revista e atualizada. Temos, por exemplo, a questão da canábis, diz-me que a quantidade de heroína parece ridícula, mas a quantidade de canábis que era calculada, 25 gramas para dez dias, foi com o tal teor de THC hoje existente nos produtos que circulam, se formos revisitar a portaria, se calhar a quantidade admissível diminui.
Eram 25 gramas por dez dias?
Sim.
Esta discussão da polícia faz algum sentido? Como é que se distingue o que é consumo do tráfico?
Certo. Independentemente de discutirmos as quantidades, a fixação de uma quantidade que faz a fronteira entre o presumível uso pessoal vai para a comissão da dissuasão da toxicodependência. Se alguém tiver mais do que essa quantidade pode-se presumir que haverá atividade de tráfico e então é enviado para o sistema. O que é que tem acontecido? Há pessoas que são enviadas para o sistema judicial porque têm uma quantidade superior referente aos dez dias, mas o juiz, com base num acórdão que, entretanto, saiu, determina que, embora não haja prova de que seja um traficante condena-o por ter mais do que a quantidade dos 10 dias, embora não seja possível comprovar que é uma atividade de tráfico. Então, na prática, a pessoa é condenada por consumo, porque tem a quantidade superior aos dez dias, embora seja apenas um consumidor. A iniciativa legislativa do PS tem a tentativa de resolver esta questão e de evitar que pessoas sejam condenadas a penas de prisão, em alguns casos por mero uso, por mero consumo.
Aquilo que li é que, desde 2001, houve oito mil pessoas que foram condenadas por consumo. Era esta história de terem mais…
Tinham mais, foram para tribunal e o tribunal condenou-os por consumo.
A penas de prisão?
A pena de prisão por consumo porque não produziu prova de que havia tráfico. É com isto que o projeto de lei do grupo parlamentar do PS quer acabar.
Pegando novamente na entrevista de 2011 e noutras entrevistas a revistas brasileiras. Sempre foi apontado como um exemplo a nível mundial, porque o caso português que encabeçou é visto lá fora como um exemplo a seguir. Passados estes anos todos, o que sente ao ver este retrocesso? O que pensou quando viu Rui Moreira a defender a criminalização do consumo?
Em relação à sua pergunta, duas coisas: por um lado, tenho tido a felicidade de ser a cara mais conhecida relacionada com a forma como o Estado português respondeu a estas questões. Mas, normalmente, enjeito um pouco a ideia de principal arquiteto, porque não quero ter créditos que não me pertencem. Esta foi uma construção coletiva, desde logo, ao idealizá-la no âmbito da Estratégia Nacional de Luta contra as Drogas e depois de ter tido a capacidade de, ao longo de vários anos, de estar à frente dos serviços. Continuo completamente convencido que este modelo e esta decisão foi adequada e continua a ser adequada.
Descriminalização, mas não despenalização?
Exatamente. Continuo convencido que este modelo se mantém atual. Cheguei ontem de Washington, onde mais uma vez, fiz uma apresentação para membros do Congresso, Senado etc., a propósito deste modelo. Como sabe os Estados Unidos enfrentam uma situação muito complicada, sobretudo relacionada com os opiáceos e andam à procura também de modelos que possam acompanhar e o modelo português continua a ter uma grande visibilidade e popularidade. Embora haja mitos em torno do nosso modelo, nomeadamente o mito de que teremos liberalizado pura e simplesmente o uso de substâncias, não se fala realmente nas nuances e na tal manutenção de um paradigma proibicionista que, no fundo, é aquilo que continuamos a ter. Claro que me preocupa que atualmente, e nos últimos anos, termos tido um recrudescimento do impacto do uso, sobretudo das tais populações mais desorganizadas de utilizadoras de drogas. Mas penso que o remédio não será andar para trás, ou seja, no sentido do endurecimento das políticas, mas, bem pelo contrário, complementando e reforçando aquilo que é uma componente fundamental, que é a de respostas de saúde e sociais para estas pessoas.
Não concorda então com a proposta de Rui Moreira?
Não concordo com a proposta de Rui Moreira. Não é por acaso que acontecem também movimentos no sentido de um endurecimento à política de drogas, em alguns de alguns locais do mundo, com propostas mais ou menos populistas que correspondem àquilo que parece ser a resposta imediata de desejos de segurança.
Em muitos países ainda há a pena de morte…
Ainda há e essa é talvez a responsabilidade maior que temos que é ajudar esses países que ficaram para trás em relação a esse tipo de políticas, a adotarem políticas mais baseadas em valores de humanismo e, sobretudo, de uma vez por todas, encarar os problemas da dependência como um problema de saúde e dependência, como uma doença com a mesma dignidade de outras doenças.
Sei que me vai responder politicamente correto. Não acha que no atual estado em que as coisas estão que fazia todo o sentido voltar com o Instituto da Droga e Toxicodependência ou algo semelhante, isto é, a concentração de uma estratégia concentrada?
Perfeitamente.
Perfeitamente como?
Perfeitamente de acordo com a necessidade de uma estrutura única, próxima do IDT, um serviço com a capacidade de pensar as políticas e executá-las no terreno com os seus próprios meios, mas mantendo no seu seio também a massa crítica necessária para refletir sobre novos desafios à medida que vão aparecendo. Mas defendemos essa função desde que a decisão inversa foi tomada, ou seja, de que este fragmentar das respostas foi tomando. E finalmente, estamos a caminho de reconstituir um serviço.
Estão a caminho?
Estamos.
O SIDAC? [Nota redação. A entrevista foi feita antes de o Governo anunciar oficialmente o novo instituto]
Vai mudar, o nome não está completamente fechado, mas possivelmente será o ICAD, ou seja, Instituto para os Comportamentos Aditivos e Dependências.
E que vai centralizar tudo?
Quanto à constituição do ICAD, IP, aprovada em Conselho de Ministros, trata-se da concretização de um desejo há muito manifestado pela maioria dos profissionais que trabalham na área dos Comportamentos Aditivos e Dependências, quer no setor público, quer nos setores social e privado, pois irá contribuir para um reforço da coerência e eficácia das respostas nesta área.
Com o Governo através do Ministério da Saúde?
O Ministério da Saúde apoia esta nossa pretensão. Aliás, o ministro Manuel Pizarro logo quando foi tomada a decisão de extinguir o IDT manifestou-se contra e agora acolhe a nossa proposta de recriar um serviço único com estas capacidades. Em princípio entrará em funcionamento a 1 de janeiro do ano que vem, com o novo orçamento. Esperamos até lá ter todo o trabalho preparatório.
Para o ano faz 70 anos em maio. Vai liderar este projeto ainda?
Conto estar neste processo de reconstituição do regime do serviço único, mas de facto quando entrar em funcionamento em janeiro, já estarei muito perto dos 70 anos.
E o que acha da reforma? Isto é, se aos 70 anos sair daqui não irá seguramente para casa…
Posso dizer que tenho muita procura, digamos assim, a nível internacional para consultorias. Nada completamente concretizado por porque até agora não tive condições para aceitar coisa nenhuma. Mas há várias coisas no ar. Mas logo verei se a minha experiência também tem condições para ser aproveitada, no âmbito do futuro instituto. Mas como disse o professor José Fragata há que dá lugar a outros. Já são muitos anos.
Mas também disse que se devia aproveitar o conhecimento…
Desde 97 que tenho responsabilidades nesta área com alguma pequena intermitência, mas ao fim e ao cabo, dediquei toda a minha vida profissional a esta área e terei todo o gosto em continuar a dar os contributos que entenderem.