“A minha fé é tão grande que não existem fronteiras”

Em Belém, comerciantes e peregrinos convivem harmoniosamente. Mas, para alguns lojistas, o movimento gerado pela JMJ não se reverte em mais retorno. A fé é que está sempre no ar.

No Flor dos Jerónimos, encostada a uma arca repleta de gelados, com uma chave na mão e sempre atenta, está Carmen – a sua família é proprietária deste restaurante em frente aos Jerónimos, em Belém, desde 1974. «Este é um grande evento, mas a nível de clientes é muito fraco. Só veio causar confusão e transtorno, sinceramente. Não aderimos ao ‘Menu Peregrino’ e não temos movimento como costumamos ter em agosto. Somos um restaurante e gostamos de trabalhar, é complicado. Estamos numa zona em que temos janelas viradas para todo o lado, há pessoas que ficariam aqui para ver o Papa e… Achamos que não nos compensaria. Não é o nosso tipo de trabalho», começa por dizer. «Gosto imenso de ver os jovens a conviver, acho tudo muito bonito», explica, antes de parar para servir um Calipo de morango. «Peço desculpa. Estava a dizer que gosto imenso disto, mas a nível de transportes é horrível. Eu vivo aqui perto, mas o nosso pessoal, por exemplo, demorou três horas a chegar aqui. Não sei de quem é a culpa, mas… Enfim, estes eventos, a mim, não me trazem vantagem nenhuma».

No Largo da Rebelva, em Carcavelos, três Irmãs espanholas, um professor e estudantes de um colégio católico de Madrid – Corazón de María – comiam pizza alegremente a aproximadamente duas horas do início da Missa de Acolhimento da JMJ. «Estamos a pensar muito bem acerca da Jornada, mas o problema são os meios de transporte. Os sítios ficam muito longe uns dos outros e custa-nos chegar, com as crianças e os jovens, onde queremos. Parece que não reforçaram os serviços», começou por dizer o professor. «As pessoas são incríveis, os voluntários estão sempre dispostos a ajudar-nos, mas temos dificuldades para chegar a Lisboa. Como é que vamos chegar à missa das 19h no Parque Eduardo VII?», perguntou. «É uma pena, porque a Jornada é para os miúdos. De qualquer modo, a gente de Portugal é maravilhosa. Por onde passamos com as bandeiras tentam falar connosco, acenam-nos… Tem sido fantástico!».

«Partilho aquilo que o Professor Roseto está a dizer, mas, realmente, o encontro com as Irmãs e jovens que já conhecemos de outros lados tem sido muito bom. Ficamos emocionados por vê-los aqui. Estamos a partilhar a nossa fé e esta é uma oportunidade maravilhosa. Nota-se muito os frutos da JMJ porque até as pessoas que estão em casa fazem as suas orações e querem participar», narrou, à sua vez, a Irmã Cíntia, indo ao encontro do grupo ‘Totus tuus’, também de Madrid, composto por jovens na casa dos 20 anos que destacaram o facto de «todos os portugueses» com os quais se estavam a cruzar «estarem a ser muito acolhedores e amáveis».

«Em relação aos meios de transporte… Está a ser complicado, mas até melhor do que pensávamos. Tudo se agrava em horas de ponta, mas temos conseguido deslocar-nos. Andamos bastante a pé, mas estávamos preparados psicologicamente para isso. Apesar disto, estamos a adorar Lisboa», concluíram.

Recorde-se que a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, enfatizou, a 14 de julho, que o plano de mobilidade e segurança para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é abrangente e não se limita apenas à Área Metropolitana de Lisboa, considerando-o «nacional», uma vez que os peregrinos estão espalhados por todo o território português. Ana Catarina Mendes ressaltou que os peregrinos chegariam a Portugal uma semana antes do evento e partirão uma semana depois, muitos deles aproveitando para visitar várias regiões do país. Destacou o profissionalismo e o esforço dedicado ao longo dos últimos 400 dias para garantir que tanto os perímetros de segurança quanto o plano de mobilidade fossem cuidadosamente trabalhados em colaboração com todas as autarquias e autoridades relevantes.

Importa lembrar também que os transportes públicos da Área Metropolitana de Lisboa aumentaram significativamente a sua oferta para acomodar o grande fluxo de peregrinos. Em cada dia útil, serão disponibilizados mais 354 mil lugares adicionais, enquanto no fim de semana serão oferecidos mais 780 mil lugares extra. Esse reforço na oferta de transporte público foi acordado em conjunto com diversas empresas de transporte, incluindo a CP – Comboios de Portugal, Metropolitano de Lisboa, Carris, Carris Metropolitana, Fertagus, Metro Transportes do Sul e Transtejo/Soflusa.

No entanto, como é possível ler no site oficial do Governo, para facilitar o fluxo de pessoas e garantir a segurança, algumas estações serão temporariamente encerradas em determinados dias. As estações do Metropolitano da Avenida, Marquês de Pombal, Parque e Restauradores ficarão fechadas nos dias 1, 3 e 4 de agosto. Já as estações de comboio da CP de Moscavide, Sacavém, Bobadela e Santa Iria serão encerradas nos dias 5 e 6 (sábado e domingo).

Além disso, a Carris, que é responsável pelo serviço de autocarros, realizará alterações em algumas linhas que servem áreas delimitadas pelos perímetros de segurança e também em locais com ruas estreitas e alto risco de segurança. Algumas linhas serão suprimidas ou terão mudanças de trajeto durante o evento. Os elevadores da Bica, Glória e Lavra também serão afetados, sendo encerrados nos dias 1, 3, 4, 5 e 6 de agosto.

De volta a Lisboa: «Os peregrinos não têm dinheiro para gastar connosco. Não temos sequer preços exorbitantes. Se calhar, podiam ter feito a JMJ noutra zona do país. Sou apologista de que se deve levar o movimento a todos os lados e não só a Lisboa. Nesta altura do ano, compensava-me muito mais ter os turistas nacionais e internacionais do que o pessoal da JMJ porque sobrevivemos com eles e não com as pessoas da JMJ», continua Carmen, sendo que, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística, em 2022, Portugal registou um aumento significativo no número de chegadas de turistas não residentes, atingindo 22,3 milhões de visitantes, o que representa um crescimento de 131,4% em relação a 2021. No entanto, esse número ainda ficou abaixo do registado em 2019, com uma queda de 9,6%.

O mercado espanhol continua a ser o principal emissor de turistas internacionais para Portugal, representando 25,8% do total, e teve um crescimento de 97,4% em relação ao ano anterior. Em termos de acomodações, a maioria dos meios de alojamento turístico registou 28,9 milhões de hóspedes em 2022, proporcionando um total de 77,2 milhões de pernoites. Esses números apresentaram um aumento de 80,7% e 81,1%, respectivamente, comparados a 2021. No entanto, ainda houve uma ligeira diminuição em relação aos níveis de 2019, com queda de 2,2% nas chegadas e 0,8% nas pernoites.

Os turistas internos contribuíram com 27,5 milhões de pernoites, mostrando um crescimento de 22,2% em 2022 (ou 5,3% a mais que em 2019). Já as pernoites de turistas não residentes aumentaram expressivamente em 146,9% em relação a 2021, porém, comparando com 2019, ainda apresentaram uma redução de 3,9%, totalizando 49,7 milhões.

No que diz respeito aos proveitos, os totais chegaram a 5 mil milhões de euros, um crescimento de 115,2%, e os de aposento atingiram 3,8 mil milhões de euros, um aumento de 117,3%. Novamente, em comparação com 2019, esses números mostraram crescimentos de 16,7% e 17,9%, respectivamente. O rendimento médio por quarto disponível (RevPAR) foi de 74,0 euros em 2022, representando um aumento de 127,2% em relação a 2021 e 49,8% comparando com 2019. O rendimento médio por quarto ocupado (ADR) correspondeu a 103,6 euros, mostrando um crescimento de 17,4% em relação a 2021 e 16,1% face a 2019.

As deslocações turísticas dos residentes atingiram 22,6 milhões, refletindo um aumento anual de 29,2%, mas ainda abaixo dos valores de 2019 (-7,5%). As viagens dentro do território nacional aumentaram 21,0% em relação a 2021, porém, comparando com 2019, ainda houve uma redução de 6,5%, totalizando 20,0 milhões. As deslocações para o estrangeiro alcançaram 2,7 milhões, apresentando um crescimento expressivo de 162,5% em relação a 2021, mas ainda uma diminuição de 14,3% em comparação com 2019.

Em 2022, a despesa média por turista em cada viagem teve um aumento de 18,3% em relação a 2021, totalizando 232,5 euros, e um crescimento de 18,8% em relação a 2019.

«Mas, no fundo, compreendo que estes eventos têm de existir. Levem-nos é para outros sítios. Os concertos dos Coldplay foram em Coimbra e toda a gente se deslocou! Para onde o Papa for, este pessoal vai: é a mesma coisa», conclui Carmen, enquanto serve outro gelado e os empregados mexem-se rapidamente atrás do balcão.

Parece ter razão. A poucos metros da saída do Flor dos Jerónimos está Carolina, peregrina portuguesa que veio do Porto. «Vim aqui, mas iria a qualquer lado. A minha fé é tão grande que não existem fronteiras», conta a jovem de 21 anos. «Assim que soube que a JMJ seria em Lisboa, comecei a juntar dinheiro, mas a verdade é que dou graças a Deus por ser aqui. Acabei agora a minha licenciatura, ainda não trabalho e teria de ter trabalhado ou pedido muita ajuda aos meus pais se tivesse de me deslocar a outro país. De qualquer modo, estou convicta de que faria aquilo que fosse necessário para ver o Papa Francisco e sentir esta união tão grande», confessa, indo ao encontro da opinião da amiga Madalena, da mesma idade e oriunda da mesma cidade. «Somos movidos pela fé. Sejamos de Portugal, de Espanha, de França, de Itália, dos EUA, do Brasil… De onde for, todos temos os mesmos princípios, os mesmos valores, as mesmas crenças. É por isso que existe esta amizade instantânea, este espírito de grupo tão forte e tanta entreajuda», indica. «Mas, ainda assim, achamos que quem não é católico pode perfeitamente entender a JMJ e fazer parte dela. Basta querê-lo genuinamente e juntar-se de coração aberto a Jesus», sublinha a rapariga.

Mais à frente, sempre na Rua de Belém, na Next Door Shop, está Ricardo, proprietário da loja de souvenirs portugueses, que promete oferecer aquilo que de melhor a cultura portuguesa tem para dar. «Estou aqui há 12 anos. Não tem sido mau, mas não sei se está a ser melhor do que um agosto normal. Acho que é ela por ela. Estou é desiludido com a falta de informação para com os moradores e comerciantes. Estamos na escuridão e tiveram tempo para fazer as coisas bem», observa. De seguida, Mónica, proprietária da missangas&co. há nove anos, afirma:_«Há mais movimento, mas não se reverte em compras. O público deste evento não veio direcionado para isto, tem o poder de compra muito baixo. Os peregrinos que vêm de países como os EUA_podem comprar coisas, mas a maioria entra e sai sem adquirir nada. Apesar de tudo, isto é muito especial, é um momento único». «Na verdade, temos mais despesa com o pessoal, mas sabemos que estamos numa zona premium. O meu ponto de vista é que são apenas seis dias e não nos podemos queixar de nada», diz. «As ruas não estão tão sujas como noutro tipo de eventos, os jovens estão unidos, não há protestos, fazem filas, são ordeiros… Aquilo que noto é que há pessoas interessadas em comprar coisas, mas aparece o resto do grupo a gritar ‘Anda, anda!’, desistem logo e saem a correr».

Tal não é de estranhar. Ora vejamos: em 2022, os luxemburgueses continuaram a liderar o ranking de consumo de bens e serviços entre os Estados-membros da União Europeia, de acordo com dados divulgados pelo Eurostat, a agência de estatísticas da UE. O indicador utilizado para avaliar o bem-estar material das famílias é o consumo individual real per capita (AIC), que considera os dados sobre paridades de poder de compra.

O grão-ducado manteve a sua posição no topo do ranking pelo segundo ano consecutivo, com um nível de consumo de 138%, ou seja, 38% acima da média europeia. Em seguida, aparecem a Alemanha, com um consumo 19% acima da média da UE, e a Áustria, com um consumo 18% acima da média. Em contrapartida, 18 países ficaram abaixo da média de consumo per capita, e Portugal é um deles, tendo o mesmo nível de consumo que a vizinha Espanha, ambos com 85% da média da UE. Os níveis mais baixos de consumo foram registados na Bulgária, com um consumo 33% abaixo da média da UE, seguida pela Hungria (28% abaixo) e Eslováquia (27% abaixo).

«Compra-me um postal? Preciso de dinheiro», pede um peregrino português à porta do Pastéis de Cerveja, liderado por Fernando, que aderiu ao ‘Menu Peregrino’. «Temos muitos clientes e estamos a tentar responder à procura, mas houve uma quebra no outro turismo a que estávamos habituados. Muitos adiaram as férias por causa da JMJ. Mas, assim, também é bom! Não tenho razão de queixa. Acho que a organização da JMJ está uma maravilha. Quem quiser vem comer uma sandes, uma bebida, um pastelinho ou uma peça de fruta… Têm muitas opções! Tem corrido tudo bem, estes miúdos são espectaculares. Estou impressionado com isto até. Pensava que se zangariam por tudo e por nada ou que fariam coisas menos corretas, mas têm sido impecáveis», enfatiza, falando rapidamente para estar sempre atento ao movimento do restaurante e a quem precisa da sua ajuda.

Fazendo o caminho inverso, na direção do Mosteiro dos Jerónimos, os peregrinos e voluntários cantam, batem palmas e dançam com bandeiras às costas ou erguidas no ar. Já as têm ou compram-nas a quem teve olho para o negócio e percebeu que vender bandeiras dos diversos países seria uma excelente opção nesta altura. Já no Jardim da Praça do Império, comem e bebem refrescos alegremente ou refugiam-se nos poucos sítios com sombra. «Está quase tudo perfeito, este calor é que é infernal. Acho que temos sofrido devido às temperaturas, mas a verdade é que Jesus Cristo também sofreu por nós. E muito mais, nem sequer dá para comparar. Portanto, queixamo-nos de quê?», pergunta John, peregrino norte-americano de 24 anos, enquanto bebe água. «Hoje em dia, está tudo muito facilitado. A maior parte dos jovens não sabe o que significa realmente ter Deus no pensamento e no coração. Precisávamos de um evento como este para ‘voltarmos às raízes’ e unirmo-nos em redor de um bem maior. Esse bem maior é a nossa fé e essa será sempre inabalável», realça, alinhando-se com um dos seus melhores amigos, Daniel, de 26, que salienta: «Nascemos na Era da Internet e vivemos através de ecrãs. Se for preciso, passamos uma manhã inteira de domingo a pôr ‘likes’ no Instagram, mas somos incapazes de ir à igreja. As coisas não podem nem devem funcionar assim. Acho que a JMJ contribuirá para a mudança de muitas mentalidades e, acima de tudo, para congregar aquelas que já são iguais ou semelhantes. É tão bom estar com quem sente o mesmo que nós, com quem tem fé e acredita no Senhor. Sem dúvida que estes dias serão uns dos melhores das nossas vidas».

À hora de fecho desta edição, o Papa Francisco já tinha acabado o seu primeiro encontro oficial com os peregrinos que participam na JMJ – na Colina do Encontro (no Parque Eduardo VII), numa autêntica festa de inclusão.