Alejandro Aravena. “Só 5% do que se faz é arquitetura. Tudo o resto é construção”

Não sabe por que escolheu o curso de arquitetura mas tornou-se um dos expoentes da disciplina a nível mundial. Em Lisboa falou sobre o futuro das cidades e explicou que ter nascido no Chile o ensinou a valorizar a escassez.

Henry Kissinger, o político e diplomata americano, chamou-lhe «um punhal apontado ao coração da Antárctida». Encravado entre os Andes e o Pacífico, o Chile estende-se por uma faixa estreita e comprida, com uma linha de costa de mais de seis mil quilómetros.

Charles Darwin passou por lá no início da década de 1830, na viagem do Beagle, e ficou impressionado com o caráter inóspito do sul do território. Queixou-se do clima impiedoso, mas não ficou indiferente aos encantos da paisagem. Em 1835, o insigne naturalista assistiu ao terramoto de Concepción.

O cadastro de sismos no Chile é interminável. O da noite de 27 de fevereiro de 2010 atingiu 8,8 de magnitude e durou três minutos, partindo prédios ao meio e desencadeando um tsunami. Alejandro Aravena foi um dos arquitetos chamados a reerguer o país dos escombros.

Nascido em junho de 1967 em Santiago, estudou arquitetura na Universidad Católica da capital chilena. Em 1994, abriu um ateliê em nome próprio, Alejandro Aravena Architects, e desde 2001 lidera a Elemental, focada em projetos públicos. Com propostas que se notabilizam pelo despojamento, rigor e baixo custo, um dos seus projetos emblemáticos é uma unidade de habitação social em que apenas metade da casa é construída – a outra metade é um vazio deixado à livre iniciativa dos residentes.

2016 foi para ele uma espécie de ano mágico: comissariou a Bienal de Arquitetura de Veneza e recebeu o Prémio Pritzker. No ano seguinte foi convidado para projetar o segundo edifício da sede da EDP, em Lisboa, que se encontra em fase de conclusão.

Aravena esteve na S + Academy, promovida pela Saraiva + Associados, para uma conversa sobre o papel do arquiteto, a habitação como instrumento contra a pobreza e o futuro das cidades. E explicou por que não gosta do epíteto de ‘starchitect dos pobres’.

Antes de mais, julgo que seria interessante sabermos um pouco mais sobre o seu percurso profissional. O que o levou a querer ser arquiteto? Houve algum acontecimento específico relacionado com a sua escolha?

Não sei por que estudei arquitetura. Quando saí da escola secundária, com 17 anos, não sabia bem o que estudar. O orientador na escola olhava: matemática, arte, ciências, quem sabe arquitetura… Mas eu não tinha ideia do que era o curso, não tinha qualquer expectativa em relação à arquitetura. E acho que isso não foi mau. Mas não, não tinha ninguém na minha família, nem perto, não sei porquê. Pessoa diz que todo o começo é involuntário. Acho que isso se aplica à minha experiência.

Neste mundo globalizado a informação corre à velocidade da luz, tudo chega a todo o lado. Ainda assim, os lugares continuam a ter importância. O facto de ter nascido no Chile ajudou a moldar a sua abordagem à arquitetura?

Seguramente. Uma das coisas que aprendemos de forma intuitiva no Chile é que a gravidade é irrelevante. Olhamos para as forças num edifício numa perspectiva horizontal, nunca numa perspectiva vertical. Isso é algo que se aprende muito depressa assim que o chão se começa a mexer. E não se trata apenas de como essas forças penetram na nossa forma de pensar, é algo que nós traduzimos para um estado mental. O nome Elemental [elementar] significa alguma coisa que não pode ser mais decomposta, irredutível. Tudo o que não seja necessário – o que é necessário já é outra questão… -, tudo o que não seja pertinente, um terramoto elimina-o, fisicamente. Por isso, a nossa atitude face ao projeto é: para quê ficar à espera do terramoto? Por que não introduzimos, a nível mental, um terramoto no projeto, de modo a que tudo o que seja irrelevante, supérfluo, seja eliminado? Ao fazê-lo, temos mais hipóteses de passar o teste do tempo. O gosto pode ser uma coisa hoje e outra amanhã, assim que entra na equação as escolhas tornam-se mais arbitrárias. Um projeto fica mais mal preparado para enfrentar a posteridade. E isso é algo que procuramos sempre nos nossos projetos. Este edifício vai continuar ali daqui a 300, 400 anos? Para que isso aconteça, fisicamente, no nosso entender cada vez mais a estrutura é a arquitetura. Assim que terminamos a estrutura, o edifício está muito perto de ficar pronto, o que nem sempre acontece na arquitetura de hoje. Num país como o Chile, onde a escassez é o ar que se respira, retirar o supérfluo não é uma escolha. É obrigatório. Não nos podemos permitir fazer o que nos apetece só porque podemos. A escassez, nesse sentido, é um grande antídoto contra a arbitrariedade. E isso faz muito parte da nossa cultura. Não admira que, quando fazemos habitação social, estejamos preparados, porque os nossos músculos foram treinados. Temos direito a um martelo, um prego e uma pancada. Se falharmos, não haverá uma segunda oportunidade. Isso está relacionado com o nome do ateliê [Elemental], com a cultura do país. No Chile temos tendência para pedir desculpa por não conseguirmos fazer o tipo de arquitetura que é feito noutros países, na Europa ou nos Estados Unidos. Mas quando saímos do país aprendemos a valorizar a escassez, a aspereza chilena, a rudeza natural, por nos permitir fazer coisas que não podem ser feitas noutros ambientes. Em certo sentido, esta irredutibilidade é um luxo.

Agrada-lhe a palavra austeridade?

Sim.

É algo que aqui em Portugal não traz boas memórias à maior parte das pessoas…

Acho que austeridade é quando baixamos o nosso ritmo cardíaco de modo a não precisarmos de tanto para viver. Isso dá-nos imensa liberdade. Não usaria a palavra austeridade no sentido moral ou ético de evitar o pecado da abundância. Usaria mais como um meio para atingir a liberdade.

A pessoa desejar menos para se contentar com pouco?

Não, pelo contrário. O desejo é uma energia imensa que tentamos introduzir na equação de um projeto. O nosso trabalho como arquitetos começa por não querermos as coisas demasiado cedo. Por isso calamo-nos, ouvimos e tentamos perceber as forças em jogo antes de querer alguma coisa. Caso contrário, qualquer projeto torna-se apenas um pretexto para pormos em prática as nossas próprias ambições artísticas. Nós não fazemos isso. O que temos é uma caixa de ferramentas suficientemente grande para podermos escolher a que se adequa melhor à questão colocada. Mas começamos por definir a questão antes de saltarmos para a resposta. Identificar as forças em jogo é realmente importante. Entre essas forças, as maiores são aquelas a que tentamos prestar mais atenção, como a gravidade ou os terramotos. Mas os hábitos, o desejo, o medo, as emoções também contam muito na forma como se vive a arquitetura, por isso mais vale tê-los em consideração quanto antes. Além dos orçamentos, claro, dos códigos de construção, das expectativas das comunidades e das entidades oficiais. Mas o desejo é uma força poderosa e necessária, não é uma coisa supérflua. No fim de contas, o que fazemos é dar forma aos lugares onde as pessoas vivem. A arquitetura não é mais complicada do que isto: dar forma aos lugares onde as pessoas vivem. A variedade de lugares a que temos de dar forma é enorme. Casas, habitação, edifícios de escritórios, universidades, parques, até o lancil do passeio, tudo tem de ter uma forma. Para começar, há uma dimensão funcional muito concreta. Temos de ter luz suficiente, uma boa temperatura, controlar o ruído. Mas a vida também é feita de emoções. No momento em que pensamos duas vezes na palavra vida, percebemos que essa definição [dar forma aos lugares onde as pessoas vivem] se torna muito traiçoeira. Parece inofensiva, mas na realidade é profundamente complexa, e por isso exige uma síntese. Quanto mais complexa a questão, maior a necessidade de simplicidade. E se o design tem algum poder é o poder da simplicidade. 

Os seus edifícios são habitualmente muito despojados, muito depurados. Rejeitam o ornamento e a retórica. Vê a decoração como algo supérfluo, uma espécie de distração?

Diria que tem uma menor capacidade de resistir ao teste do tempo porque se baseia no gosto pessoal…

E na moda?

Na moda, sem dúvida. E, por definição, a moda muda na próxima estação. Não é isso que queremos num edifício. Já que vamos gastar energia de todos os tipos – não apenas energia ambiental, mas também recursos, tempo, a dedicação de muitas pessoas – vamos garantir que esse dispêndio de energia vai valer a pena. E a moda… tem de haver lugar para isso, mas não tem de vir do arquiteto. Quando fazemos habitação, em especial se for um sistema aberto que será completado ao longo do tempo, o que as famílias fazem é tão expressivo, tão decorativo, que convém que nós sejamos tão austeros, monótonos e aborrecidos quanto possível. O nosso papel é enquadrar essa expressão individual e introduzir silêncios onde essa diversidade vai aparecer de uma maneira ou de outra. A diferença entre um remédio e um veneno é a dose. Vamos recuar um pouco. A arquitetura é talvez 5% por cento do que está a ser feito. O resto é construção. E mesmo esses 100% são apenas metade dos metros quadrados que existem no mundo. A outra metade é construída pelas próprias famílias. Por isso mais vale criarmos uma moldura que canalize essa capacidade do que tentarmos resistir-lhe ou substituí-la pelo nosso próprio gosto. Os arquitetos têm conhecimentos em diferentes áreas, mas eu acho sempre preferível estabelecermos uma relação com as famílias no caso da habitação. Se for outro tipo de edifício, é diferente, porque aí assumimos outra responsabilidade. Cada situação tem de ser avaliada por si, e isso leva tempo. É por isso que costumamos dizer que a primeira coisa a fazer é desenhar a pergunta antes de saltar para a resposta. Não há nada pior do que responder à pergunta errada.

Hoje, ao lermos ou ouvirmos as notícias, podemos ficar com a ideia de que a arquitetura se resume a quem constrói o arranha-céus mais alto ou o edifício mais caro. Poderíamos referir o Burj Khalifa, no Dubai, mas na realidade essa é uma tradição que remonta às pirâmides de Gizé. O que lhe parece? A função da arquitetura é deslumbrar?

Mais uma vez, depende da natureza da pergunta que é colocada. Por vezes é preciso captar o espírito, a ética de uma sociedade. Mas nem sempre. Aprendemos nas escolas de arquitetura que tínhamos de tentar sempre deslumbrar, mas só temos de o fazer às vezes, outras vezes o desafio é diferente. Não faria disto uma questão ética dizendo que criar esse espanto deve ser riscado do mapa. Por vezes as sociedades precisam desta capacidade para capturar, inspirar, congregar, encontrar um sentido coletivo. O Chile, por exemplo, ultimamente tem sofrido desta falta de sentido comum. Há uma crise no país em que as pessoas pensam: ‘Para que é que eu vou sair da cama? A promessa que me fizeram’ – economicamente, culturalmente, politicamente – ‘nunca foi cumprida, por mais que me esforce’. Há uma crise de objetivo. E por vezes a arquitetura tem de desempenhar o papel de recuperar, reinventar e dar forma a esse sentido épico. Caso contrário, não há uma vivência coletiva. Outras vezes, o desafio é completamente diferente e o papel da arquitetura é passar despercebida. Estudei arquitetura em meados dos anos 80, e nessa altura éramos ensinados de acordo com as regras mais artísticas, digamos assim. Fazíamos um esboço, uma ideia, e depois tentávamos trazer essa ideia para a realidade de uma forma imaculada. Com um controlo absoluto entre o que tínhamos imaginado e o que era construído. Mas, quando comecei a dar aulas em Harvard nos anos 2000, por razões diversas pensei tentar fazer alguma coisa à volta da habitação social. E rapidamente percebi que tinha muito pouco controlo. O nosso papel não é controlar, é preparar o terreno para fazer um par de movimentos a abrir o jogo, e no momento em que o arquiteto sai de cena é quando o ambiente começa a instalar-se. Damos início a alguma coisa. Por isso o nosso papel é deixar as coisas seguirem o seu caminho e perder o controlo. Mas não do bem comum – o nosso papel também é garantir que as ações individuais não vão ser uma ameaça ao bem comum. Voltando à pergunta… o Burj Khalifa não é o melhor exemplo de uma grande conquista civilizacional. Não é necessariamente uma questão de tamanho. Umas vezes o papel da arquitetura é ser capaz de captar esse espírito épico, outras vezes é precisamente o contrário. E o importante, parece-me, é também não transformar estas categorias numa caricatura.

Um destes dias, quando estava a conduzir, ouvi no rádio o Papa Francisco, na Capela Sistina, a pedir aos artistas para não se esquecerem dos pobres. ‘Os pobres também precisam de arte e beleza’. Como arquiteto, vê-se como alguém que leva arte e beleza aos pobres? A propósito: gosta do alcunha ‘starchitect of the poor’ [arquiteto-estrela dos pobres]?

Não, e não é só por ser politicamente incorreta. Se fazemos design participativo [em que os futuros utilizadores são chamados a participar no processo de concepção dos edifícios] é porque metade dos metros quadrados dessas casas não vão ser construídos por nós. Trata-se de ser pragmático e eficiente: sentamo-nos à mesa e dividimos tarefas, quem faz o quê. A questão de trazer beleza aos pobres… A palavra beleza é muito traiçoeira. A partir do momento em que começamos a falar demasiado de beleza torna-se suspeito. Mas ela tem de estar lá.

É algo que não sabemos definir, mas reconhecemo-la quando a vemos.

É um sentimento coletivo que acontece às vezes, nem sempre, não sabemos porquê. Lembro-me de Richard Rogers dizer uma vez que nós arquitetos temos de ter cuidado para não sermos chamados para pôr batom num gorila. Somos pessoas com bom gosto, então pintamos uma porta e acrescentamos uma decoração qualquer. O papel da arquitetura não é esse. O que fazemos é gerir a forma de uma maneira eficiente, e ao fazê-lo organizamos a vida numa perspetiva abrangente. Isso é pensamento estratégico. Trata-se de afetar recursos de modo a que floresçam com o tempo. Não sei se têm presente o projeto da Quinta Monroy. [Pega na caneta e começa a desenhar.] Isto é um vazio, aqui há uma janela e uma casa por baixo. E isto é uma escada de utilização individual. Cada um dos acessos à casa é mantido por essa família. Não é um equipamento coletivo porque em ambientes economicamente frágeis ninguém faz a manutenção desses espaços. Esta unidade tem 36 metros quadrados. No Chile não se pode construir mais com recursos públicos. Mas cada família vai completar com os seus próprios recursos os restantes 36 metros quadrados que foram deixados vazios. Uns fazem uma varanda, outros fazem um quarto… À medida que vão ganhando dinheiro vão construindo. E assim atingimos 72 metros quadrados, que é um padrão de classe média, canalizando a capacidade construtiva das pessoas. Mas onde eu queria chegar era a esta janela. Tem uma altura dupla, que abarca os dois pisos. Grande parte da iniciativa foi deixada às pessoas, mas queríamos desde o primeiro dia que houvesse este vão duplo, com uma escala cívica. Não é aquela beleza mais convencional, mas é uma ordem gigante, um recurso da arquitetura clássica. Na verdade isto foi tirado da casa de Tristan Tzara [em Paris], onde Adolf Loos introduz uma escala que torna difícil perceber quantos andares [sete] o edifício tem. Esta operação não só introduz uma espécie de silêncio entre as intervenções individuais muito expressivas – barrocas, diria -, mas também essa escala cívica que a arquitetura deve ter. É beleza? Talvez seja, mas eu prefiro usar palavras que possam ser provadas de forma mais simples. De qualquer modo, até há uma prova. A certa altura, uma ONG do Chile, com quem estávamos a trabalhar, decidiu usar os nossos projetos sem nos pedir permissão. E fizeram exatamente a mesma coisa…

Com duas janelas em vez da janela dupla?

Com duas janelas. E ficou uma merda. [risos da audiência] Lá está a tal certeza indizível. Não podemos exprimi-la por palavras, mas se mostrar as duas casas, toda a gente lhe vai dizer que prefere a nossa.

Estamos a falar de habitação social. Um dos problemas destes bairros, parece-me, é que têm uma grande tendência para se transformar em guetos, uma espécie de ilhas que não se relacionam com a envolvente. Há maneira de alterar isso?

Sim. Vamos continuar com este exemplo. Isto é uma casa de 36 metros quadrados. Para a construção deste projeto tínhamos um subsídio de 7500 dólares por família. Um terço era para o terreno, um terço para a infraestrutura e um terço para a casa. Por isso, para construir 36 metros quadrados tínhamos na realidade 2500 dólares. É essa a política de habitação, podemos não gostar, mas entretanto vão ser construídas 100 mil unidades por ano. Por isso queríamos contribuir ou pelo menos perceber como se joga este jogo de fazer tudo com 7500 dólares – 7200 de subsídio do Estado e 300 da própria família. Temos continuado em contacto com estas comunidades e recebemos um vídeo de um dos residentes a dizer que uma família queria vender a casa e estava a pedir 70 mil dólares. Isso significa que transformou 300 dólares de poupança em 70 mil. Em Portugal e na Europa, em geral, é diferente dos países em desenvolvimento, onde as famílias são proprietárias das casas. Estamos a falar da maior transferência de dinheiro público, por isso queremos que aumente de valor ao longo do tempo e se transforme num ativo para as famílias. A habitação não é apenas um abrigo para nos proteger dos elementos, é também um instrumento económico para vencer a pobreza. Se conseguirmos conceber uma habitação que venha a ser um ativo que se valoriza, essa família tem mais hipóteses de deixar de ser um fardo para o Estado e de conseguir aguentar-se pelos seus próprios meios. E é também uma questão de orgulho. Em todos os projetos que fizemos até aqui as casas valorizaram-se: no caso mais modesto, o valor triplicou. Mas a questão fulcral da habitação social não é quantos metros quadrados, quantos quartos. A questão fulcral é ‘onde’. Onde fica? Se lhe dermos uma boa resposta é mais provável não produzirmos um gueto. Todas as semanas chegam às cidades 1 milhão de pessoas. Vêm porque as oportunidades de trabalho, educação, cuidados de saúde, transporte e até lazer são mais altas nas cidades do que fora delas. O problema é que o custo dos terrenos as impede de se integrarem, e normalmente vêm para as cidades mas continuam segregadas dessas redes de oportunidades. Por isso, quanto mais conseguirmos criar – e este é o desafio – projetos com densidade suficiente, maiores as probabilidades de conseguirem uma boa localização nas cidades e ficarem integrados nessa rede. Com este projeto atingimos 750 habitantes por hectare. Sem construir em altura. Quando atingimos esta densidade, podemos comprar terrenos a preços três vezes acima da média da habitação social. Ao fazê-lo, eliminamos a condição de gueto. Essa é uma estratégia possível – situar a habitação onde estão as oportunidades. Mas quando temos áreas das cidades que são apenas uma acumulação de casas sem serviços, sem equipamentos…

Dormitórios.

Dormitórios. O Chile não é o pior caso, mas 30 a 40% dos 500 milhões de habitantes da América Latina vivem em bairros de lata. Outra forma de contornar a condição de gueto seria levar as oportunidades para onde já está a habitação. Há mais do que uma estratégia possível.

Acabou de referir que em todo o mundo, por semana, 1 milhão de pessoas mudam-se para as cidades. Estima-se que em 2025 – ou seja, agora – dois terços da população mundial vai viver em cidades. As cidades atraem pessoas, mas também as expulsam. Aqui em Lisboa está a tornar-se cada vez mais difícil encontrar um apartamento. Como podemos lidar com isto e tornar as cidades lugares mais acolhedores?

Isto pode parecer contraintuitivo, mas termos mais pessoas a mudarem-se para cidades são excelentes notícias. Tendemos a pensar que pode aumentar a fricção, a pressão, os conflitos…

Não há esse risco de ficarem demasiado apinhadas?

Há. Mas basta analisarmos alguns dados para percebemos que é muito mais eficiente ter as pessoas concentradas no espaço do que estarem dispersas, em especial nos países em desenvolvimento, onde cada dólar gasto em água potável, esgotos ou eletricidade tem um efeito muito maior se as pessoas viverem próximas. Ao mesmo tempo, as cidades são veículos para criar riqueza, na acepção mais lata da palavra. Mas temos de dar resposta a este fluxo, em média, com 10 mil dólares por família. É essa a equação que temos de resolver. Se não a resolvermos, as pessoas não deixarão de vir para as cidades. Virão na mesma, mas ficarão a viver em condições horríveis. Isso explica por que é tão provável que venha a haver perto de dois mil milhões de pessoas a viver em bairros de lata. Portanto, se não resolvermos isto temos um problema. Mas, se resolvermos, a pegada carbónica dos métodos construtivos de que dispomos vai acabar com o planeta. Se construirmos os metros quadrados necessários para estes dois mil milhões de moradores vamos ter uma crise ambiental ainda pior do que a que temos. É uma faca de dois gumes. Como abordar a questão? Há várias estratégias que podem ser seguidas, e usar a capacidade construtiva das próprias pessoas é uma delas. Se formos a Dharavi, uma favela nos subúrbios de Mumbai, vemos como são incrivelmente eficientes, com meios muito modestos, a reciclar materiais para porem um teto por cima das cabeças. O que não conseguem fazer é coordenar as ações individuais. Esse é o papel do arquiteto: canalizar os recursos das pessoas. Vamos ter de desenvolver novas tecnologias para lidar com estas questões, novos métodos de construção. Alta tecnologia, construção modular e pré-fabricada de ponta, tudo isso. E, ao mesmo tempo, baixa tecnologia, técnicas caseiras para aproveitar a mão de obra local. A dinâmica habitual é: primeiro o país torna-se rico e a partir daí consegue construir cidades boas e sustentáveis. Mas a proposta da U N Habitat III [Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável], em Quito, foi inverter isso: se construirmos boas cidades, podemospôr em marcha o desenvolvimento e criar riqueza. O desenho que eu fiz aqui há pouco foi uma resposta desesperada à escassez de recursos. Mas mesmo que tenhamos todos os recursos do mundo à nossa disposição é melhor não completarmos tudo, deixar que a dinâmica da cidade entre no sistema, naquilo a que a London School of Economics chama ‘urbanismo poroso’. Parte da estratégia é juntar ao dinheiro do Estado e do mercado o dinheiro das pessoas. Isso vai trazer uma diversidade superior à do arquétipo do urbanismo moderno.

É interessante estarmos a discutir estas questões quase de sobrevivência, quando a maioria das pessoas vê a boa arquitetura quase como um luxo.

Isso não é só culpa nossa, mas resulta da forma como explicámos o nosso papel à sociedade. E talvez tenha que ver com a formação que nos foi dada. Pelo menos quando eu estava na universidade, os constrangimentos eram tirados da equação para que a nossa imaginação pudesse voar livremente. E é exatamente o oposto: é por haver constrangimentos que temos de ser criativos. Mas não foi assim que fomos treinados. Há muito tempo tive uma conversa com Hashim Sarkis, que na altura era professor em Harvard e hoje é reitor do MIT, de que me lembro muitas vezes. A arquitetura, algures no final dos anos 60, chegou a uma bifurcação: de um lado, os arquitetos quiseram mostrar que eram uns génios. A sociedade deu-nos carta-branca para experimentar artisticamente, e o preço a pagar foi a irrelevância. Entrámos no experimentalismo, dedicámo-nos a resolver problemas que só interessavam aos outros arquitetos e falávamos de uma maneira que só os arquitetos percebiam. Do outro lado estavam aqueles que diziam: ‘Não pode ser assim. Os problemas do mundo são muito mais relevantes e prementes. A pobreza, o atraso, a violência’. O tipo de coisas que nos preocupa hoje. E os que decidiram seguir esse caminho – dos problemas da sociedade – abandonaram as ferramentas específicas da arquitetura, tornaram-se consultores e deixaram de fazer projeto. Em arquitetura, engolimos uma quantidade enorme de informação relativa às limitações que existem, e, em vez de produzirmos um relatório ou um diagnóstico, organizamos essa informação numa proposta: vamos tentar resolver isso. A segunda via abandonou esta parte e apareceram os especialistas. Italo Calvino disse que o especialista é alguém que nos diz o que não fazer. Mas o que fazer? Será que podemos cruzar estes dois caminhos e usar o conhecimento específico da arquitetura para resolver os problemas não específicos da sociedade? Para o conseguirem, os arquitetos têm de ser formados de maneira completamente diferente. Temos de aprender diferentes linguagens, da economia, da política, da sociologia, da antropologia, dos movimentos sociais, do ambiente, e também da estética. Mas a nossa porta de entrada na conversa tem de ser através da linguagem que sabemos usar, que é o desenho, o projeto. E aí conseguiremos sintetizar questões complexas de uma forma muito hierarquizada.

Um arquiteto pode desenhar um edifício muito bonito – disse que não gosta da palavra, mas não encontro outra – enquanto objeto, mas que não funciona. As pessoas gostam de olhar para ele, mas não gostam de estar lá. Podemos dizer que um edifício só fica completo quando é habitado? Que as pessoas – tal como as paredes, os pilares, as janelas ou as escadas – são uma parte fundamental do projeto? 

Um professor a quem estarei sempre grato, Fernando Pérez, explicava a arquitetura como aquilo a que ele chamava ‘o espelho e o manto’. A arquitetura tem esta dupla condição. Por um lado, o objeto bonito a que prestamos atenção. Se for bem concebido como objeto cultural, reflete, como um espelho, um dado momento no tempo, na sociedade e no desenvolvimento tecnológico de uma civilização. E tem de resistir a um olhar atento. Fernando Pérez dava o exemplo de uma janela. Se olharmos com atenção para uma janela gótica ou do Renascimento podemos dedicar-lhe um livro inteiro. A curvatura do arco, o nível de decoração, a sensibilidade daquela sociedade, o patamar técnico, se sabiam ou não fabricar vidro… podemos construir toda uma narrativa interrogando aquela janela. Mas, ao mesmo tempo, a finalidade de uma janela é desaparecer completamente, para deixar entrar luz, ar e permitir-nos olhar lá para fora. A boa arquitetura é essas duas coisas: a capacidade de resistir a uma interrogação cultural, devolvendo como um espelho a imagem de uma sociedade; e, ao mesmo tempo, de desaparecer. Como um manto à nossa volta, o derradeiro desígnio da arquitetura é que não lhe prestemos a mínima atenção – quantos pilares tem, a altura e largura da sala, que materiais foram usados… Essa é a dupla condição da arquitetura. O difícil é atingir o equilíbrio.

Tenho uma última questão para lhe fazer. Achei interessante que antes de começarmos esta conversa tenha pedido uma caneta e um quadro para desenhar. Qual é a importância do esboço na era digital?

Suponho que isso resulte da minha incapacidade para trabalhar em computadores. Cheguei demasiado tarde para aprender. Mas tentamos sempre tirar o maior partido das nossas limitações. Um esboço não é uma fotografia onde aparece tudo. Quando faço um esboço escolho as linhas mais relevantes, as que definem melhor o que quero representar. Ao fazermos um esboço estamos a definir prioridades. Quando temos um problema complicado temos de estabelecer uma hierarquia, caso contrário ficamos paralisados com tanta informação. Usemos uma metáfora: o esboço permite-nos, mesmo num problema complicado, navegar suficientemente rápido para propormos algo. De outro modo, limitamo-nos a queixar-nos ou a fazer diagnósticos e relatórios. Há pessoas muito boas nisso, e precisamos delas. Mas o cerne do nosso conhecimento é organizar essa informação para pôr as coisas em movimento. Fazer um esboço, pelo menos no meu caso, também é uma forma de explicar certas coisas a mim próprio, porque às vezes achamos que sabemos como fazer, pomos a ideia no papel e fica horrível. Mas temos de a trazer cá para fora para a podermos eliminar. Ou pode ser o inverso: fazemos alguma coisa intuitivamente – e a intuição profissional tem um papel importantíssimo nos problemas complexos, porque às vezes sabemos coisas que não sabíamos que sabemos – e isso acaba por sair se a nossa mão e a nossa pele estiverem em sintonia.