Algarve. Quando não havia turistas

Entre as enchentes e quem nunca viu o mar se faz o verão português. Houve tempos em que os estrangeiros estavam em maioria.

Há uns bons anos, numa reportagem na praça de Quarteira, a peixeira Beatriz, um ícone local, que serve restaurantes como o Gigi, na Quinta do Lago, contava-me como eram os verões de antigamente, quando os portugueses ainda não tinham ‘descoberto’ o Algarve. Lembro-me que não tinha grandes saudades dos tempos em que as praias do Sul eram frequentadas por meia dúzia de portugueses, além de estrangeiros famosos, que, precisamente, adoravam a pacatez da região.
Recordo-me de me ter contado que praticamente só no Natal é que a família comia carne, pois o peixe era servido ao almoço e ao jantar, já que o negócio era escasso. Nessa época, os poucos portugueses que gostavam do Algarve optavam por ir à praia da parte da manhã e iam almoçar a casa, dormindo uma bela sesta. Deixando os anos 60 para trás, é na década de 70 que a região contabiliza o primeiro milhão de turistas, embora seja em meados dos anos 80 que a Quinta do Lago e Vale do Lobo – praticamente frequentadas por estrangeiros, entre os quais Peter Gabriel e Mark Knopler, figuras que apareciam com frequência no Gigi – se torna um local de eleição para os estrangeiros. Os portugueses andavam mais pela Balaia, Albufeira, Praia da Rocha, Ferragudo e Lagos.

Massificação do Algarve Depois o Algarve massificou-se e é difícil encontrar um metro quadrado de areal sem ter várias toalhas a disputar o espaço – há mesmo quem vá à praia às sete da manhã só para marcar terreno e colocar o chapéu de sol – se excetuarmos a ilha do Farol, a Culatra e a Armona, com quilómetros de areal. E é por haver turistas em excesso que alguns começaram a detestar o verão, já que passou a ser sinónimo de enchentes. “No dia em que deixar de ter um negócio de praia nunca mais ponho os pés num areal em agosto”, comenta com o i Bernardo Reino, o Gigi, acrescentando: “Este vício da praia, de estarem todos em cima uns dos outros, nunca irei praticar”.
 
“Vai-te embora Ó melga” Quando os portugueses ‘conquistaram’ o Algarve no verão surgiram ‘guerras’ entre aqueles que falam a língua de Camões e alguns empresários de restauração, que tinham as ementas em inglês e francês, por serem estes os principais clientes dos restaurantes. O mundo mudou e Portugal não ficou de fora, havendo hoje em dia uma preponderância de turistas nacionais em relação aos estrangeiros, e as ementas, regra geral, estão todas em português, além das outras línguas. Em meados dos anos 90, alguns empresários ligados à noite e à restauração brincavam com o dia 31 de agosto, dizendo que a festa nessa data teria o nome de ‘vai-te embora ó melga”, numa alusão aos caprichos de alguns clientes endinheirados que se achavam com direito a privilégios especiais. O equilíbrio entre clientes e empresários nem sempre é fácil, para mais quando os ‘penetras’ se sentam em mesas de amigos e vão ‘bicando’ no prato dos outros. Em Itália já se cobra uma taxa para este tipo de clientes, aqueles que dizem que já almoçaram mas comem mais do que os outros.

Questões de saúde e de dinheiro Nesta edição do i, tentamos perceber a razão de tantas pessoas dizerem mal do verão, quando se sabe que a maioria não prescinde de uns dias de papo para o ar a apanhar banhos de sol, nem que para isso tenha que ‘levar’ com os vizinhos do lado mais próximos do que uma lapa numa rocha.
Assim como há quem – podendo financeiramente – ande atrás do sol o ano inteiro, até por razões de saúde, o oposto também existe e são cada vez mais aqueles que fogem do calor para zonas de frio e chuva. Há quem seja alérgico ao calor e, como é natural, fuja dele como o Diabo foge da cruz (ver págs. 6-9). Por isso, a indústria do turismo não perde a oportunidade de ‘vender’ destinos mais frios, e não estamos a falar do inverno com as suas estâncias de esqui, embora seja cada vez mais difícil perceber os fenómenos climáticos. E é também por causa do ambiente que muitos dizem não fazer férias no verão, pois acreditam que a pegada ecológica ajuda a destruir os ecossistemas locais. Não se percebe é se deixam de ir de avião para os locais com frio e chuva…

Quem nunca viu o mar  Em pleno século XXI, não faltam testemunhos de portugueses que nunca viram o mar, pois as suas vindas sempre estiveram ligadas à terra, e à lavoura, mais concretamente. É impressionante como num lar em Portalegre há seis testemunhos de idosos que nunca se aproximaram do mar, alguns estiveram próximo de um rio, e só viram mar só na televisão (ver págs. 14-15).
Nesta edição dedicada àqueles que não gostam do verão, não podíamos deixar de recordar o verão mais quente em termos políticos, de 1975, quando o país esteve à beira de uma guerra civil. Se hoje a realidade é bem diferente, as preocupações das pessoas também o são. Em 1975 se alguém dissesse que os portugueses iam estar muito preocupados, na época do verão, em encontrar um hotel para o cão, talvez lhe chamassem louco. Mas hoje é um dos mercados emergentes, pois na impossibilidade de levar os cães para os hotéis e apartamentos alugados, a solução é mesmo encontrar um hotel canino (ver págs. 18-21).