Veto sem consequências mas marca posição

Posição de Marcelo pretende ‘marcar posição de desagrado’, defende politólogo. Presidente da Associação Nacional de Proprietários diz que ‘se as coisas são explicadas tão linearmente ninguém pode ignorar’.

Marcelo Rebelo de Sousa voltou a dar um cartão vermelho ao Governo ao vetar o pacote Mais Habitação. O Presidente da República disse que o conjunto de medidas não o convencia, mas do lado do Executivo a resposta não se fez esperar. O plano irá novamente para o Parlamento, mas não será alvo de alterações. Ao Nascer do SOL, José Filipe Pinto diz que de trata de «um veto político, mas nulo do ponto de vista da sua efetividade». A ideia, de acordo com o politólogo, é «marcar uma posição de desconforto e, simultaneamente, uma posição de desagrado, porque acha que o documento reflete exclusivamente a vontade do Partido Socialista, em que este não incorporou aquelas que eram as posições da oposição». 

Não é a primeira vez que o chefe de Estado mostra desconforto com documentos e com decretos-leis, daí ter usado «o veto político para dizer basta», continua José Filipe Pinto. A posição de Marcelo pode ser interpretada como um ‘puxão de orelhas’ ao Executivo. «Quem ler bem a missiva do Presidente da República que enviou ao presidente da Assembleia da República vai perceber que há uma explicação muito rigorosa das razões que motivam o seu veto. Só encontrei um documento em toda a história da minha área de especialidade que fizesse o mesmo e foi quando Adriano Moreira, em setembro de 1961, aboliu o Estatuto do Indigenato, em que explicava claramente que o estatuto tinha sido uma boa ideia, mas que tinha sido objeto de um mau aproveitamento. E o que o Marcelo Rebelo de Sousa faz neste preâmbulo é precisamente a mesma coisa. Isto é, explica claramente que há um problema de habitação em Portugal, que atinge os jovens e a classe média e que urge resolver. Mas ao mesmo tempo, as medidas avançadas relativas ao alojamento local e o arrendamento coercivo não vão resolver esse problema». 

Apesar dessa argumentação, o Presidente sabe que «este veto politico não passa de uma manifestação de vontade presidencial e de desconforto presidencial», uma vez que o Governo dispõe de maioria absoluta no Parlamento. «Sabe que a Assembleia da República pode confirmar o documento na íntegra e ao confirmá-lo é obrigado a promulgar, mas está a considerar que o Governo está a entrar numa posição de muito auto centramento e de autoestima». 

O politólogo recorda ainda que há três verbos na ação política que são fundamentais: querer, poder e dever. «O que nós aqui temos é o Governo querer porque há um problema que urge resolver e pode porque tem maioria absoluta. Agora há o verbo dever e isso implicaria que não fizesse tudo aquilo que pode se sentisse que isso não ir ao encontro da maioria dos portugueses. Neste caso, o o Presidente mostrou que faltou o verbo dever, já que impôs à sua vontade e ao impor a sua vontade, o Governo acaba por funcionar não apenas de um partido único, mas de uma vontade única».

Ainda assim, afasta um cenário de mal-estar entre Marcelo e Costa, já que entende que o Presidente da República tem direito à sua opinião e que o Governo pode manter a sua posição inicial. «Se fosse inconstitucional, o PS mostrar-se-ia muito incomodado», conclui.

 

Proprietários reagem 

Para o presidente da Associação Nacional de Proprietários (ANP), esta legislação não resolve o problema da habitação. Apesar de aplaudir a decisão do Presidente da República, António Frias Marques diz apenas que «é muito boa pessoa, mas o poder dele é o poder da rainha da Inglaterra, como se dizia». No entanto, reconhece que este voto pode funcionar como uma chamada de atenção.

«As pessoas que andam neste mundo e nesta vida têm de saber o que é que se passa, não podem estar fechados em gabinetes e saírem diretamente das juventudes partidárias para cargos governativos, serem uma terem atividade profissional. A segunda coisa é terem consciência e a terceira é bom senso. E aqui falham estes três elementos. Apesar de o Governo ter uma maioria absoluta, a massa pensante é muito superior e não condiz com a maioria absoluta de votos», comenta. Em relação ao pacote Mais Habitação, Frias Marques considera que «não tem pés, nem cabeça» e acredita que nem os que votam no partido do Governo pensa, que o problema da falta de casas possa ser revolvido com estas medidas, além de considerar que atinge um segmento específico. «Dos 10 milhões de portugueses, cerca de nove milhões estão instalados e alguns muito bem instalados. Conheço pessoas que têm a primeira habitação, a segunda, a terceira, a quarta e não lhes faltam casas, vivendas e resorts» e para aqueles se deparam com falta de casas defende que a resposta tem de ser dada pelo Estado e quem o representa é o Governo. 

«O grande falhanço deste Governo é a questão da habitação, porque em relação a outros setores conseguem tapar aqui e destapar acolá e as coisas vão andando. Em relação à habitação, as coisas são mais graves porque não havendo casas, não as podem mostrar. E a realidade é esta: as casas não se fazem com leis. Fazem-se com terreno, com projeto, com cimento, tijolos. E já estão há muitos anos no Governo e nada é visível e depois há uma tentativa de transferir para os pequenos proprietários privados uma função que é do Estado. Mas não podem deitar o olho ao galinheiro e começarem a comer a galinha dos outros», salienta o responsável.

Quanto ao desfecho, António Frias Marques lembra que há um setor da sociedade que diz que há problemas de inconstitucionalidade, na medida em que Constituição defende a propriedade privada e a questão do arrendamento coercivo ultrapassa tudo aquilo que os proprietários poderiam imaginar. 

O presidente da ANP chama ainda atenção para outras medidas que, no seu entender, não fazem sentido. «Muito embora as câmaras depois paguem uma renda e também gostava de ver isso porque isso não é exequível -e quem está a pensar que isto vai para a frente está a pensar que as câmaras em Portugal são eficientes, mas não, só cobram impostos – o que acontece é que essa pessoa vai ser privada do seu património para dar casa não sabe quem, mas em compensação se for casas ou vivendas que nunca estiveram no mercado de arrendamento não lhes acontece nada. Isto é, o arrendamento coercivo só se aplica às casas que tiveram o azar de nalgum momento terem estado no mercado de arrendamento. Isto é de uma injustiça terrível».

O mesmo acontece, no seu entender, se uma câmara arrendar uma casa por mil euros, ter uma família que só pode pagar 500 e ser o Estado a pagar a diferença dos 500. «Isso também não faz sentido nenhum. É o contribuinte que está a pagar», refere.

Em relação ao desfecho, António Frias Marques afirma que «o Presidente chamou a atenção de muitas pessoas» e defende que, a partir do momento em que «pôs o dedo na ferida e se as coisas são explicadas tão linearmente ninguém pode ignorar. Agora se quiserem continuar a laborar no erro continuem. Conheço muitas pessoas que passam a vida a errar». 

Recorde-se que depois de Marcelo votar o pacote, a ministra da Habitação referiu que não serão feitas alterações ao diploma. Mas do lado do Presidente, a resposta não se fez esperar. «O Parlamento fica na sua e vota em conformidade, confirma a sua votação, e eu fico na minha, no sentido de que não me convenceu, mas de que vamos esperar que daqui a dois anos e meio, ou três anos, dê para verificar se [o pacote] era suficiente, mobilizador e resolvia o conjunto de problemas existentes, ou ficava aquém disso». 

Marina Gonçalves desvalorizou a «divergência» política. Já em relação às dúvidas levantadas quanto à constitucionalidade do documento, ficaram, no entender da ministra, «completamente arrumadas», após o Presidente da República ter optado por não enviar o diploma para o Tribunal Constitucional.