Atletismo. Um triste adeus às medalhas

Em 1984, Carlos Lopes deu a Portugal a primeira medalha de ouro ao vencer a maratona nos Jogos Olímpicos de Los Angeles. Passados 39 anos, o atletismo de fundo afundou-se por falta de estratégia e de planeamento, e lá se foram as medalhas.

por João Sena

Nas décadas de 70, 80 e 90 Portugal foi uma potência mundial no atletismo de longa distância, conseguindo resultados extraordinários na variante masculina e feminina. Agora, a menos de um ano dos Jogos Olímpicos Paris 2024, verificamos que há um vazio nessas categorias como se viu pela razia de maratonistas e reduzida presença de atletas do meio fundo e fundo nas últimas grandes competições internacionais.

Há quase 50 anos o professor Mário Moniz Pereira disse: “Com as mesmas condições seremos tão bons ou melhores do que eles». As gerações seguintes não o levaram a sério e, hoje em dia, podemos afirmar que não houve uma estagnação, mas sim um retrocesso, já que não basta força física e resistência para ser um atleta de eleição. A exemplo do que acontece em outras modalidades, o desenvolvimento, competitividade e sustentabilidade assenta num modelo de negócio que está muito dependente do financiamento público e municipal. Mas isso não justifica tudo. Foram as piores práticas de governação da Federação Portuguesa de Atletismo (FPA) que influenciaram o valor dos atletas e levaram a que Portugal tivesse perdido a supremacia no meio fundo (de 800 a 3.000 m) e fundo (de 5.000 m até aos 42,1 km da maratona).

Há alguns anos, Carlos Lopes já tinha deixado o aviso ao reconhecer que o atletismo não estava bem. “Nas disciplinas técnicas e no fundo não houve um salto tão grande por parte dos atletas portugueses. Temos obtido bons resultados, mas com alguns atletas naturalizados. Esses atletas acabam por mascarar o verdadeiro valor atual do nosso atletismo”, disse o antigo campeão olímpico.

Ouvimos antigos atletas com larga experiência internacional e respeitável palmarés, e chegámos à conclusão de que as condições materiais não faltam: existem 93 pistas onde se pode praticar atletismo em todo o país – há mais pistas do que atletas de alta competição. O que faltou foi estratégia e planeamento para ajudar aqueles que se dedicam ao atletismo. Era imprescindível construir um sistema de treino a longo prazo que garantisse a otimização das aptidões dos atletas, o que nem sempre aconteceu. Faltou também a aposta na prática desportiva de crianças e jovens de forma a proporcionar-lhes um desenvolvimento natural com vista à obtenção de melhores performances quando atingirem o escalão senior.

Luís Jesus é atualmente presidente da Associação de Atletismo de Lisboa (AAL), que reúne cerca de 25 mil atletas contando com os filiados do trail. Foi também atleta olímpico em Atlanta 1996 e esteve no Campeonato do Mundo de meia-maratona. Foi campeão nacional de 1.500 m, 3.000 m obstáculos, 5.000 m, 10.000 m e maratona. Foi o único atleta português que obteve mínimos internacionais em todas as especialidades. Ao longo da sua carreira representou o Benfica, Maratona, Sporting e Conforlimpa.

Sobre o momento atual do meio fundo e fundo foi peremptório: “O problema do nosso atletismo é estar entregue há muitos anos a pessoas angustiadas. Quem manda na federação de atletismo é uma pessoa [Jorge Vieira] que foi treinador e pensa que sabe mais do que todos os outros, embora nunca tivesse feito um atleta internacional”.

O atletismo português nunca conheceu grandes velocistas, mas compensávamos isso com campeões nas corridas de longa distância. Agora, nem isso conseguimos. Luís Jesus denuncia: “Nunca houve tanto dinheiro para o atletismo como agora. Antes éramos bons e não tínhamos condições, agora há condições e não somos tão bons”.

Na opinião do ex-fundista, os grandes responsáveis pela falta de qualidade, especialmente meio fundo e fundo, são as pessoas que gerem o atletismo português há 11 anos. “A federação tem práticas muito amadoras, recebe cinco milhões de euros por ano, mas só gasta quatro. Tirando os estrangeiros naturalizados e mais dois ou três atletas nacionais, Portugal não tem atletismo de nível internacional”. Ainda segundo o responsável da AAL, não se pode dizer que não haja atletas, o que falta é formação e competência. “Temos bons treinadores, mas não existe estratégia para desenvolvimento e crescimento dos atletas. Não são criadas sinergias para apoiar a formação e ajudar os atletas consagrados. Nas categorias de meio fundo e fundo é necessário ter uma estrutura de acompanhamento e criar grupos de treino”, explicou. A falta de aposta nos jovens é outro problema. “Como é que o atletismo pode crescer se a federação não chega a gastar 1% do orçamento anual que é 5,4 milhões de euros com o desporto infantil?”, questionou.

O facto de o atletismo ter pouca divulgação no nosso país tem uma explicação para o ex-atleta. “Ninguém está interessado em conteúdos sem interesse. Quando o Carlos Lopes e a Rosa Mota ganhavam eram notícia nos jornais e televisões, e também havia futebol”, frisou.

 

É preciso planear

A solução para reativar o atletismo de meio fundo e fundo está bem identificada: “Passa por ter um planeamento organizado com os treinadores e uma estratégia a longo prazo. Devemos cuidar dos atletas de elite, aqueles que garantem resultados, mas temos também de dar atenção aos outros que estão a começar. A solução não é arranjar atletas estrangeiros para representar Portugal ao mais alto nível”.

Profundo conhecedor do meio, Luís Jesus considera que esse trabalho deve começar nas escolas. “Precisamos de fomentar o desporto escolar, pois é ele que sustenta o atletismo na formação e daí nascem bons atletas que os clubes aproveitam”.

A melhoria de condições de treino parece essencial: “É importante haver mais estágios. O ano passado o setor do meio fundo fez apenas um estágio de três dias, o que é pouco”, frisa. A realidade é muito diferente do que acontecia nos anos 80 e 90 quando a federação de atletismo fazia estágios de 15 dias no Algarve e os atletas podiam treinar em grupo. Os estágios do professor Moniz Pereira eram um exemplo de disciplina, rigor e empenhamento que agradavam aos atletas, a partir do momento em que deixou de treinar as condições foram piorando. Nesse sentido, o presidente da Associação de Atletismo de Lisboa considera que “a federação devia criar vários polos no país que permitissem aos atletas treinar, só que não o faz”.

A categoria do meio fundo precisa de foco para voltar a obter bons resultados a nível internacional. Luís Jesus é categórico: “Precisamos de aumentar a amostra para ter atletas de topo. Temos de colocar mais gente a praticar atletismo para ter bons atletas, é uma questão de causa/efeito”. A solução passa por “triplicar ou quadruplicar o número de praticantes para chegar ao patamar de antigamente e sermos competitivos a nível europeu”, salienta. “Temos de aumentar a base da pirâmide.

 

Reflexão necessária

Aurora Cunha destacou-se em provas de meio fundo e fundo, quase sempre com a camisola do FC Porto. Foi campeã mundial de estrada três anos consecutivos, de 1984 a 1986, e venceu quatro das mais prestigiadas maratonas mundiais: Paris, Tóquio, Chicago e Roterdão. Apesar de ter sido uma reconhecida atleta olímpica, nunca conquistou uma medalha. A nível nacional, conquistou 22 títulos em diferentes especialidades (1.500 m, 3.000 m, 5.000 m e corta-mato).

Apesar de ter deixado de competir há muito tempo, mantém-se ligada à modalidade e apoia diversas corridas. E com a frontalidade que se lhe reconhece afirma: “O Mundial de atletismo deste ano foi mau e mostra aquilo que é a realidade do meio-fundo e fundo em Portugal na atualidade. Tem de haver uma reflexão séria sobre o que se passou para que as coisas corram melhor nos Jogos Olímpicos em 2024”.

A ex-atleta mostra-se triste com o estado a que chegou o atletismo, e aponta várias razões para a perda de competitividade. “Há falta de cultura desportiva no nosso país a vários níveis. O atletismo devia ser uma prioridade, mas não é”. E deixa um alerta: “A federação tem de justificar os milhões que o Estado dá para apoiar o meio-fundo e fundo”.

Com uma experiência de mais de vinte anos nas corridas, aponta o caminho: “O trabalho base tem de começar nas escolas, o desporto escolar tem de ser mais apoiado, e isso está a falhar”. Mas as falhas acontecem também num patamar superior, como nos disse a ex-tricampeã mundial de estrada: “Não investimos nos nossos jovens e estamos a recrutar atletas estrangeiros, não acredito que sejam uma referência para eles. Temos jovens com talento e um futuro promissor, mas é preciso apoiar essa gente e dar bolsas para poderem treinar”.

Aurora Cunha chama ainda a atenção para outra realidade que, em sua opinião, não ajuda o atletismo. “O Instituto Português do Desporto e Juventude entrega milhares de euros a empresas privadas de eventos desportivos para a realização de corridas que não trazem qualquer mais valia para o desporto federado e também não permitem descobrir novos talentos porque não deixam correr os mais jovens. Esse dinheiro devia ser investido nos clubes mais pequenos das aldeias e nas associações. Aí sim, tenho a certeza, que iríamos descobrir novos valores para o atletismo”. Para a ex-atleta há uma acomodação que faz mal à modalidade. “Há treinadores que pactuam com o sistema da federação e não fazem uma crítica ao que está mal”, condena.

A atleta que é embaixadora do faiplay não poupa os atuais e antigos dirigentes federativos. “Enquanto alguns países aproveitam os seus campeões para promover o atletismo junto dos jovens, em Portugal somos marginalizados pela federação. Esqueceram-se por completo de atletas que foram os melhores do mundo. Quando uma federação se esquece dos seus campeões está tudo dito”. E prossegue: “Há treinadores competentes e com provas dadas que foram marginalizados pelas estruturas federativas, o que mostra a falta de respeito para com pessoas que treinaram os melhores atletas do mundo”.

 

Mentalidade curta

João Junqueira foi atleta de meio-fundo, fundo e crosse, tendo conseguido os melhores resultados como atleta do Sporting na altura em que foi treinado pelo professor Moniz Pereira. Esteve presente nos Jogos Olímpicos de Barcelona 1992 e participou em dois Mundiais de atletismo (1991 e 1993) e dois Europeus (1994 e 1998). Conquistou por três vezes a medalha de ouro no Campeonato da Europa de corta-mato integrado na seleção nacional.

A pouca competitividade do atletismo de fundo é tema para “uma longa conversa”, começa o ex-atleta, que avança uma explicação para o facto de não termos meio fundo nem fundo em Portugal: “Os atletas de 5.000 m e da maratona fazem marcas idênticas às registadas há 30 anos. As coisas têm de ser colocadas em perspetiva e não podemos comparar os tempos de hoje com aqueles que eram referência nessa altura”, observa. No mesmo registo, adianta: “Estamos pior do que pensamos que estamos, e dificilmente voltaremos a ter grandes campeões nessas categorias”. E_vai mais longe: “O último Mundial mostrou que somos dos piores da Europa”.

Há um conjunto de fatores que levaram a esta situação e que têm a ver com a política desportiva do Estado e da federação de atletismo seguida nos últimos anos, como afirma o ex-atleta. “Os portugueses não são piores do que os outros e, por exemplo, no ciclismo, canoagem e judo temos dos melhores atletas do mundo. Isso deixou de acontecer no fundo e meio fundo porque há uma mentalidade curta e fechada na federação que não dá as condições para os jovens treinar e desenvolverem o seu talento. Para atingir o nível de excelência é preciso trabalhar muito, mas também ter boas condições”. E faz uma comparação curiosa: “Estamos 30 anos atrasados. Na minha época trabalhávamos muito e o futebol pouco, hoje em dia o futebol trabalha muito e é o atletismo que trabalha pouco. No fundo e meio-fundo, o atleta que treinar mal e treinar muito vai ser sempre melhor do que aquele que treinar bem, mas pouco”.

O modelo de competição baseado nos clubes foi-se perdendo e, segundo o ex-atleta, a federação não chamou para si a responsabilidade de defender estas categorias. “Há um problema de falta de planeamento, de condições de treino e de enquadramento dos atletas”. Mas não só. Como nos explica João Junqueira: “A federação não evoluiu, nem sequer está interessada em ouvir outras opiniões, mesmo de pessoas com trabalho feito”.

No atletismo, está praticamente tudo inventado e com bons resultados, daí que João Junqueira defenda que “devemos ver o que funcionou com outros atletas e seguir o exemplo com naturais adaptações, mas as novas pessoas que chegaram ao atletismo acharam que estava tudo mal e mudaram para pior, os resultados assim o dizem”.

As principais características que um fundista deve ter são “gostar do que faz, ter grande espírito de sacrifício e ser resistente”. Para se estar no topo “é obrigatório trabalhar a endurance”, defende. “Um jovem de 13 anos deve fazer uma hora de corrida contínua, no limite, por dia, com um batimento cardíaco entre 140 e 170 pulsações por minuto, na casa dos 17 km/h, ou seja, fazer 3.40 minutos por quilómetro. Hoje corre-se o primeiro quilómetro em quatro minutos e depois é sempre a piorar. As pessoas perderam a noção de quanto é importante a corrida contínua”, explicou.

Hoje em dia a base de recrutamento é pequena e a solução, segundo João Junqueira, é apostar nos jovens “temos de olhar para miúdos a partir dos 13 anos”. E dá o exemplo da Noruega, onde a atividade física é fomentada nas escolas. “As crianças são incentivadas a praticar o máximo de desportos que puderem, e os custos são mantidos baixos para os pais. A atividade física é permanente porque uma pessoa que esteja bem fisicamente, é melhor em tudo na vida”.

As condições socioeconómicas também entram na equação. “Nos anos 80, quem praticava desporto, quase sempre na rua, eram os jovens de uma classe social mais desfavorecida. Atualmente, são as pessoas que estão financeiramente melhor que praticam desporto nos ginásios e têm professores. Nessa altura, os jovens obesos eram aqueles que não faziam nada e pertenciam a famílias com maior capacidade financeira, hoje em dia os obesos são os mais pobres porque não têm possibilidade de fazer desporto de forma organizada e têm uma alimentação desequilibrada”, conclui João Junqueira.