Margarida Vale de Gato. A omeleta com tudo o que havia na despensa académica

Unanimemente louvado como um livro central numa suposta renovação do campo da poesia portuguesa mais recente, “Mulher ao Mar” regressa, e o corpo lançado às vagas é já uma embarcação tripulada por uma série de vozes, sobretudo femininas (as “corsárias”), produzindo muita vozearia no convés, mas depois fica naquele tom amontoado, pairando no ar sem chegar…

Mal o livro foi dado à estampa já Pedro Mexia vinha apoiar o esforço da sua promoção junto dos círculos do unanimismo triunfalista produzindo uma dessas badanas em que se tem especializado com aquele discurso enfatuado de quem dita a sua benévola e inescapável sentença, atestando os méritos ilimitados desta colectânea que, desde 2010, vai reimprimindo o livro “Mulher ao Mar” (uma sugestiva condenação que, aos poucos, veio a tornar-se apenas uma ode a si mesma), remastigando e suplementando-se com novos textos, neste caso todo um elenco de mulheres-corsárias, permitindo-se assim traduzir o espírito da diferença, razão e dor de um vastíssimo elenco feminil, numa intenção de tal grandiosidade e presunção que, naturalmente, depois tem tudo para restar como inofensiva. Mas o editor do título anterior da autora vem agora revezar-se no papel de crítico, para nos assegurar que “à inteligência e vivacidade” deste livro se pode acrescentar o epíteto de composição imensamente versátil, “porque neste livro encontramos textos longos ou coloquiais e sonetos silabicamente minuciosos; a vida doméstica e o desamparo amoroso e o fervor erótico; a maternidade e a desmitologização das mulheres como ‘musas’ (as Ofélias, as Isoldas); variações sobre Soares de Passos e viagens num Intercidades; um poema em que ‘placebo’ rima com ‘libido’ e outro que usa a expressão, hermética para a maioria dos leitores, ‘eis, pois, advogada nossa’”. E, se isolarmos qualquer das fracções deste tipo de inventários, logo fica claro como o ardil aqui passa por combinar com majestade impressões leves ou abstractas e propor ainda sem vergonha algum tipo de lugar-comum como se fora algo de notável, e com isto não fazemos mais que analisar esses truques a que recorre uma figura dessas que se impõem com a sua omnipresença ao ponto de chegarem a parecer-nos imprescindíveis, e neste caso alguém a quem deve ser reconhecido o facto de ter feito da cultura a sua esposa, pondo-lhe o avental.

Sendo evidente o esmero nesta escrita, esse ânimo com que se dispõe a deixar a oficina literária toda revirada, brincando a dizer coisas indigestas, revolvendo-se na simulação de um registo enfático, raivoso, numas jeremiadas com um alvo difuso, produzindo um discurso que se serve de imprecações, belas obscenidades, num tom pretensamente molesto… “Merece o gabarola da macaca/ queca a sumária castração. Feio/ é mentir. Ou se foi por jugo alheio/ (galanteio) o perjúrio, assaz fraca// se afigura tal honor, que sem freio/ a um brejeiro chiste logo escapa/ e presta-se à bazófia mais velhaca./ Male-bonding o caraças, não há meio// de suprimir a boca ao fodilhão/ mais outras coisas, já o disse, rentes/ ao cu; dana-se a tusa, pá, porém// não canta nunca mais o galifão,/ e passa uma dama a dormir bem/ sem que na lama rojem os parentes.”

Noutros momentos, coloca-se em todas as posições na ânsia de provar a sua versatilidade, encostando-se à nota elegíaca, outras à lírica, servindo-se por vezes do rigor formal para se oferecer à descompostura, mostrando-se excessiva aqui, corrosiva ali, destemperada além, ou subversiva, desaustinada, mas, vejam só, ali já se mostra contida, subtil, e assim vai oscilando acrobaticamente da seriedade para a zombaria. Chega a dar a sensação de que estamos a assistir a um reel desses que os actores vão compondo de forma a que os agentes de casting possam apreciar o seu alcance. E se Vale de Gato é uma virtuosa do subterfúgio, tantas vezes os seus poemas parecem esgotar-se enquanto exercícios ou demonstrações desse suposto alcance, deixando que tudo fique pendurado, de tal modo que o próprio verso aqui tende a construir esse espaço de diluição e inconsequência, num lançar de dados incessante e que não se importa com o resultado, empurrando o leitor para a sensação de estar ali a mais, observando um jogador inveterado a alimentar uma máquina de casino, como outros distribuem miolo de pão seco esfarelado pelos pombos nos jardins. No fim, tudo tem um gosto meio rebuscado, e a tal oficina poética parece o tipo de cozinha de onde tudo o que sai não ilude um certo ranço, aquele sebo e fuligem dos espaços demasiado apegados ao seu percurso e história.

Diz-nos Mexia que “o feminismo não é nestes poemas uma militância, mas uma evidência”, e que “as convicções não impedem a inquietude, nem a inquietude as convicções”, que “o espírito crítico e sarcástico do ‘eu’ inclui o ‘eu’ no mundo, não o faz pairar acima dele”, mas pressente-se, na verdade, que o que se passa é precisamente o contrário, e que somos aqui tantas vezes colocados diante de uma mera enciclopédia da evasão, círculos fechados cujo tom peremptório vive da insinuação de cifras e senhas para fazer as delícias dos membros dessa seita ansiosa de validar as suas referências e conceitos, a erudita alegação de livros e autores. “Num livro de Anne Carson, dos primeiros/ (Tidewater, creio), há uma voz feliz/ na descoberta do amor: I guess, diz/ You love me in your way – a conversa/ habitual na cama… mas a autora/ no geral é pouco melo-romântica/ e acolhe em a réplica: How should I/ love/ you, your way?… e acrescenta ter/ ficado tempos marinando aquilo/ mas não se espraia… non sequitur.// A leitora, embora mais rica, dado/ o singular abre-olhos de outros veres/ prossegue – cf. no Porto, Regina/ Guimarães, que indaga quem o espelho/ ousa passar para um amante achar;/ e ela elabora que é ventura arisca/ isso que ‘rasga’ mas vale a conquista.// Tu pediste um poema à minha escolha/ (astuto engate além do egotista/ e do importuno épico). Assim, olha:// tentarei no encontro que dispamos/ isso da maneira, como e qual –/ abertos ao que possa vir a ser (…)”

Antes de mais somos forçados a desconsiderar mais este tão rude exemplo da vulgar tentação de partir em versos um texto que não o pede e que, portanto, se vê fracturado pelo enjambment por mero capricho, querendo empurrar pelas escadas o leitor quando depois não se consegue um efeito de altura digno de o fazer estatelar-se seja de que modo for, e sobretudo quando, mesmo com toda a técnica em cima, não se consegue elidir um arremedo de frouxa notação prosaica no esforço de produzir um diálogo que, no fim, sabe a confissão feita num diário por uma aluna do quadro de honra que precisava misturar as coisas e viver os engates nos corredores da faculdade. E, mais uma vez, damos aqui por um certo abatimento dos instintos e das exigências daquilo que a vida nos oferece num regime irredutível a fórmulas literárias, sendo necessário um golpe de tradução verdadeiramente engenhoso, ao passo que aqui essa relação se inverte, e não é que tudo pareça existir apenas para acabar num livro, o que parece é que tudo só existe na medida em que já esteja escrito antes nalgum livro.

Poderia dizer-se que poucas vezes temos visto alguém despir-se de forma tão entrecortada e com tamanha gaguez nos gestos de forma a corresponder à necessidade de cortar a linha segundo as conveniências técnicas. Estamos, por isso, muito longe do deliberado gozo de uma literatura instintiva, e mesmo se tantas vezes nestes poemas damos com um certo enlevo na saturação de efeitos prosódicos, em vez de reforçar o sentido, esse encavalgamento sonoro parece abandonar-se a uma caoticidade eufórica, um estado de frenesi em que tudo adquire um registo um tanto supérfluo, com a sua ironia constante, o seu escapismo sarcástico, enredando-se no logro desses ecos autoconscientemente académicos.

E se não faltam sinais da famigerada “intertextualidade”, se Mexia garante que aqui esta é tão sofisticada, com vozes a responderem-se umas às outras, abalizadas numa sucessão de nomes sonantes, seja no cochicho, seja na barafustação, e se vai urdindo um convento do avesso, o mais desbragado possível, com fé nos princípios da vulcanologia, depois tudo fede a estagnação, a um contorno morto que se lança sobre as coisas e que vai enfraquecendo a matéria tanto como o espírito; no fim as palavras ficam todas esbatidas, derramam-se, e se se pode considerar que o estilo é obstinado, também se torna insípido. Fica esse ar de patranha pessoal, um discurso excessivamente mastigado, que tenta parecer desgrenhado ao mesmo tempo que se pressente a tentação de remexer nos dicionários, martelar todas as teclas do idioma, acabando por castigar a noção de uma música que pudesse ser possível extrair-lhe. E todas estas travessuras verbais acabam por pesar na relação que estabelecem por serem incapazes de referir-se a algo de exterior, a uma experiência, a uma noção menos vaga do que possa tê-las motivado. Ficamos de castigo num excesso de movimento incapaz de fixar seja o que for, uma algazarra improdutiva, somos devolvidos a esse vício tão constante da poesia contemporânea, que é aquela especificidade demasiado estreita do registo pessoal, pouco sugestivo, uma tagarelice que deixa a língua afónica.

E se esta poesia parece feita de encomenda para contentar os membros dessas cooperativas que adoram exibir a sua crassa erudição e se mostram sempre crédulos da maravilha remota, bastando desenhar com gestos confusos e ir baralhando qualquer noção de espaço ou território, vamos vendo por aqui como o poeta é cada vez mais uma figura trancada na sua auto-referencialidade, e como, tendo perdido o instinto, “afogou o temperamento no intelecto e começou a cheirar flores com a alma, não com o nariz”, para nos servirmos de uma acusação de Gombrowicz. “O que esperar de gente ingénua, nobre e escrupulosa que ‘trabalha sobre si mesma’, que aperfeiçoa, analisa, constrói a sua moralidade, tremendo face à sua responsabilidade, sofrendo por toda a humanidade – são investigadores, professores, guias, juízes, inspectores, engenheiros espirituais, mártires por fim, às vezes até santos, mas não bailarinos, não cantores… Arte frita em laboratórios… o que esperar destes ovos na frigideira, como poderia esta omeleta resistir a qualquer coisa?”

Se o livro fosse simplesmente mau, se não houvesse nele nenhum momento em que a sua linguagem nos fala, e fosse sempre a linguagem a dominá-lo a ele, talvez fosse mais fácil descartá-lo como outro sintoma de uma vida enfraquecida e que procura consolar-se através dessas corrupções que a mais tacanha gloríola nos estende. Mas não deixa de haver momentos incitantes, versos de beleza realmente memorável: “Teu corpo perfeito ardendo sob o pranto das cigarras”. Sugestões que mereciam ter sido melhor aproveitadas: “Havia uma mancha no lugar/ onde eu entrava em tua existência”… Outras vezes, o fogo mais antigo concebe ainda chamas cheias de sedução, como quando nos fala no “enredo velho” que passa por “dormir com esse corpo imaginário”, ou quando exprime em nutritivos versos um solene desejo: “Quem dera de baixo um sino/ balido metal, resíduo/ rebate venal, toxinas/ loucas no corpo ruído// caem borras e suores/ onde dói antes se gozava/ (os beiços regougam mel/ a trova riscada de cor)”.

E aqui ou ali damos por acenos a um fogo de outra constituição, com “dois dedos de jogralesca/ e um dildo de odalisca/ a apoquentar a líbido/ do intelectual latino”. Num poema em que o mais frágil mesmo é a dedicatória, se a influência é idealmente decantada, é no momento em que se abre uma distância que esta se mostra mais cativante: “Porém, já vim bem tarde/ a espiar no jardim/ de que fez um vestido/ de avidez e cetim/ e o forrou de espinhos/ encantados e afins/ às formas que nos livro/ a pele de burra que pôs.”

Noutro momento, a poeta regista que “o mundo está cheio de apáticos convulsos”, e depois fornece uma espécie de retrato convulsivo dos efeitos que se traduzem na literatura dos nossos dias: “Cabalmente instruídas mas/ pouco experimentadas/ somos as cabras-/ -cegas da literatura./ Sustém-nos o tédio/ e a lonjura sujeitamos/ o verso a tarefas prendadas/ e a frase lavramo-la com/ a mesma fastidiosa ternura// dos trabalhos de costura (…)” E isto de algum modo prossegue o certeiro diagnóstico traçado por Helder Macedo há quase uma década: "Em poucas épocas terá havido na literatura portuguesa tantos poetas tão competentes como agora. Alguns – não muitos – combinam a sabedoria de como se escreve poesia com o que deveria ser o propósito de escrever poesia: dar forma inteligível ao que não se entende, encontrar as palavras que consigam dizer o indizível, apreender complexidades em simulacros de aparente simplicidade. Mas há também outros – e esses são talvez os que dominam o cânone da nossa poesia actualmente em voga – que, sabendo mais como escrever poemas do que vale a pena que saibam, exercem a sua quotidiana proficiência em banalidades autobiográficas, exercícios de linguagem sobre a linguagem, obscuramentos conceptuais que tudo parecem dizer por nada significarem, e glosas derivativamente auto-reflexivas de presuntivos mestres tutelares (…)”

Ora, se Mexia nos garante que se trata aqui de “um livro que não acabou, que veio para ficar”, curiosamente nesta poesia há um certo tom de capitulação e mistificação ao mesmo tempo, na medida em que apesar de toda a esperança inscrita nesses sinais de revolta e desaforo, o que se pressente é que o futuro que nos está reservado parece desfavorável e até impiedoso, e os elementos de encanto e desolação, os caracteres assombrosos que nos chegam do outro lado da vida parecem ter sido adaptados a um ofício de anjos-tecnicistas, como se a poesia tivesse sentido necessidade de corresponder às urgências epocais, em vez de se manter leal aos anacrónicos leitores que continuam a aparecer com um ânimo tumultuoso neste século XXI. Surge-nos assim como mais outra categoria dessas atolada de virtualidades analíticas, sociológicas, fenomenológicas, colocando-nos diante de textos suados, enfadonhos, irrelevantes nas suas infinitas glosas e envios presumidamente lisonjeiros.

Veja-se este poema que convoca no seu título Sophia de Mello Breyner Andresen: “Quanto pesou, senhora, a grande lista/ no seu nome? D’outra água, o ph/ tornando claro que não vem de cá;/ o duplo l, cedendo maneirista// mas bom tom. Nem falta aliteração/ à letra de alheios mapas: arcano/ da Grécia, drible da Dinamarca/ com lendas de cavar o coração.// Tudo alentava, mas só o Elísio/ lhe dava contra-parte a suas fomes./ Muito disciplinava, mas o vício// de mar, os cigarros, não, ah! Ímpetos/ de sol e de peneiras, seus cognomes/ contra-dicção de lindos versos limpos.”

Se até certa altura a poesia quis deixar de ser umas aproximativas palavras e tentou aprofundar-se até à realidade, agora parece uma vez mais esse género floral, esse engodo e essas variações exageradas numa música esgarçada, própria de quem se despede do mundo e da vida, fazendo-se honrar procurando os gestos que os colocariam na vizinhança desses mortos em posições elevadas. E, no entanto, à medida que avançam, as suas palavras transmitem cada vez mais aquele sentido reticente ou ausente da inconcebível palavra eternidade. Ora, como Borges nos disse, se o tempo é uma imagem móvel da eternidade, só o desejo pode elaborar um estilo capaz de fixar e elevar certa experiência a essa apoteose da assimilação e do intercâmbio que cabe no dicionário espantoso através do qual se articula a poesia. E porque só se alcança um sentido da vastidão do universo através das relações que se fixam na nossa memória, a preservação do mundo exige uma perpétua recriação para que o idioma não ceda, não comece a perder essas capacidades nem de conservação nem de se lançar na captura de outras e novas impressões. Mas, hoje, tanta da poesia que se escreve e que mais vemos ser louvada, cinge-se aos elementos exteriores de um léxico mais ou menos cristalizado, e não se consegue ouvir nenhuma “transação secreta”, para nos servirmos de uma citação de Virginia Woolf a que Vale de Gato às tantas recorre. Não se ouve uma voz respondendo a outra através dos séculos, com essa indiferença absoluta ao tempo que encontramos na grande poesia. O que se ouve não passa justamente da tal tagarelice, desses louvores e melindres, esses jogos de promoção, esses enredos de quem se faz muito quieto e apenas varia nas poses de modo a que se sinta que não há nenhuma estátua neste mundo da qual não se possa recolher uma certa semelhança com estas eminências.