Diogo Lacerda Machado estará envolvido num consórcio que pode estar interessado em concorrer à privatização da TAP? Uma das figuras desse consórcio, o Sr. Abramovich, veio desmentir que estivesse nessa corrida. Afinal, em que ficamos? O consórcio mantém-se ou é apenas um rumor que não passa disso mesmo?
O jornal que publicou essa notícia contactou-me e eu expliquei que não estava envolvido em consórcio nenhum e repeti o que já tinha dito na Assembleia da República em maio: sou procurado por muitas pessoas sobre a TAP, gosto de falar sobre a TAP, nada me impede de falar sobre o passado, o presente e o futuro da TAP e algumas pessoas têm-me desafiado para me envolver. E o que eu digo é que, se eu achar que posso ser útil à TAP e, em certo sentido, ao país, não excluo poder envolver-me. Não sinto nenhuma limitação, não sinto nenhum conflito de interesses e isso deixo registado agora: eu não sou nem empresário – não tenho capital –, eu não faço consórcios, eu trabalho para terceiros, eu presto serviços próprios da minha atividade.
A fazer serviços como consultor?
Não tenho nem capital, nem sou empresário. Atribuem-me, aliás, a esse propósito uma importância que eu não tenho nem quero ter… surgiram duas ou três reações, algumas a raiar o patético, não posso deixar de dizer…
Como por exemplo?
Como, por exemplo, o líder do CDS. Fez um comunicado que é a raiar o patético, a dizer que ia fazer queixa à Comissão Europeia – deve ter-se esquecido do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Eu não tenho – nem a notícia justificava, até porque era uma notícia –, mas eu não tenho a importância para aquela reação, que, aliás, conduziu a nada. Ficou a falar sozinho e sozinho continuará a falar.
Mas um dos argumentos que ele usava é que, por ter estado envolvido no processo anteriormente, tem acesso a informação que outro concorrente qualquer não terá. Isso faz algum sentido?
Nenhum, nenhum. Algumas pessoas não sabem que a primeira obrigação de um gestor, seja de uma empresa pública, seja numa sociedade de capitais públicos, seja numa empresa privada é defender os interesses da empresa, e, isso, asseguro-lhe que sempre norteou a minha atuação e a dos meus colegas. Fui indigitado (para a administração) pela Parpública, mas eleito em Assembleia geral da TAP e eleito com os votos dos mais de 700 acionistas que a TAP tinha. E, portanto, é conhecer o mínimo das regras de corporate governance e perceber que essas são as regras que devem guiar a atuação do gestor. E, portanto, eu, o acesso que tive a informação da TAP, não sendo sequer gestor executivo, embora presidente da Comissão de Estratégia, não me coloca numa posição qualitativamente diferente da dos outros operadores de transporte aéreo que terão os seus consultores. Porque a informação de que eu disponho nesta altura é informação de caráter público, que está divulgada. Não tenho informação privilegiada. E deixe-me aproveitar para lhe dizer outra coisa, se eu porventura vier, como advogado ou como consultor, a ser contratado e aceitar ser contratado para apoiar alguma entidade empresarial candidata à privatização da TAP, há uma coisa que eu lhe asseguro, a única possibilidade de ganhar a proposta a que eu me pudesse juntar era se fosse superlativamente melhor em termos objetivos do que qualquer outra. Nem há outra maneira de a coisa poder funcionar. Se não for assim, acho que não vale a pena. Mas, neste momento e depois de um período muito difícil, a TAP está a dar lucro.
Ainda faz sentido pensar-se na privatização e neste timing da privatização? Não seria mais prudente valorizar ainda mais a TAP e depois, num outro timing, reavaliar se é o caso de privatizar e, por outro lado, se for esse o caso, vender uma empresa com mais valor? Até porque o Estado pôs lá 3,4 mil milhões de euros.
O Estado não pôs lá 3,4 mil milhões. A TAP foi provavelmente a última companhia aérea a ser ajudada. É outra ideia estúpida de quem muitas vezes usa a sua ignorância para procurar extrair dividendos políticos. A TAP foi uma das últimas, senão a última companhia aérea a ser ajudada pelos Estados. As primeiras ajudas, 52 mil milhões de dólares, foram as companhias americanas, e foram dadas por esse modelo de liberalismo chamado Donald Trump. Sim, entre as europeias, a TAP foi a última a ser ajudada e o valor da ajuda do Estado português à TAP não chega, pelos vários indicadores, à média das ajudas dadas por outros Estados europeus às suas companhias.
E qual é esse valor?
A TAP ainda não recebeu os 3,4 mil milhões, está para receber esse valor aprovado no plano de reestruturação. Ainda só terá recebido, creio, 800 ou 900 milhões. E, já agora, desses 3,4 milhões há uma parcela muito significativa de 600 e tantos milhões que são subvenções a fundo perdido, não reembolsáveis, autorizadas à TAP na mesma proporção que foram autorizadas ajudas de Estado similares. Todos os Estados ajudaram as suas companhias. Isto é um dado de facto. Dito isto, essa ajuda permitiu não apenas que a TAP se mantivesse a voar, como está a permitir que ela mostre agora que é uma empresa bastante valiosa. Está extraordinariamente bem confiada ao Luís Rodrigues, ao Mário Chaves e ao resto da equipa. Eu não posso deixar de sublinhar, com enorme satisfação, este notável desempenho da TAP, que pode aproveitar o contexto geral do mercado para mostrar que é uma empresa viável, e é uma empresa francamente boa e com um enorme potencial.
E, assim sendo, esta questão de privatizar agora?
Eu acho que eles são da empresa. É o timing ideal para a privatização? Se for possível. Em 2015 era cedo demais para a TAP e para o Estado português. Agora, os acionistas da TAP, se quiserem, podem posicionar-se para aquilo que eu próprio fui dizendo e que fez doutrina. A TAP não pode ficar à margem dos processos de consolidação no transporte aéreo que começaram há 20 anos e a que toda a gente está atenta. As companhias estão todas juntas, a Ibéria, a British, o Aer Lingos da Irlanda, a Lufthansa. Mas é muito diferente ir para a mesa, valendo dez coisas aviltadas, ou ir para a mesa a valer 1000 milhões.
O senhor foi secretário de Estado do Dr. António Costa no segundo Governo de António Guterres, mas nunca mais voltou à política. Isso é porquê? Porque não quis, ou porque não foi convidado?
No tempo da faculdade eu expliquei que aos sete anos de idade anunciei que ia ser advogado quando fosse crescido. Acho que teve alguma coisa a ver com o Dr. Francisco Pinto Balsemão e o Diário Popular, quando lia os relatos das sessões do caso da herança Sommer e me deslumbrava com a descrição do que os advogados, como Salgado Zenha e um jovem promissor, Daniel Proença de Carvalho, diziam. E, portanto, no princípio da amizade com António Costa eu dizia: eu vou ser advogado. E, às vezes, dizia-lhe por graça: eu sei o que tu vais ser quando fores crescido. E não me enganei, não me enganei mesmo.
Que ia ser primeiro-ministro?
Sim, sim.
E nestes oito anos que leva de primeiro-Ministro, o seu amigo nunca insistiu consigo para voltar?
Ele disse publicamente que me tinha convidado. Não escondo que convites tive muitos. Mas fui fiel àquilo que tinha dito (que não voltava a ter cargos políticos). Depois – o António é assim –, no mesmo dia em que me disse que eu era o seu melhor amigo, eu disse-lhe: ‘Estou lisonjeado, é recíproco’. E depois disse-lhe: ‘Acho que tendo dito isto, tiraste-me a identidade e o mérito, coisa que não tem a menor importância. Só tem alguma, mas não tem. E arranjaste um sarilho político, mas enfim’. O pior dessa história era não ter remuneração. E a não remuneração, eu procurei explicar, tinha a ver com uma razão pessoal muito penosa que me levou a não aceitar o convite que o António Costa me tinha feito. Mas senti-me devedor e disse-lhe: ‘Farei tudo o que puder para ajudar’. Ficámos ali numa posição, em função da amizade…. eu estava a falar já com os lesados do papel comercial de BES (Banco Espírito Santo), a pedido dele. António Costa, ao contrário de Passos Coelho, não virou as costas às pessoas, não os mandou para o tribunal. Ainda em plena pré-campanha pediu-me para conversar com eles, para tentar começar a pensar numa possível solução para mitigar aquelas perdas. E, a partir de certa altura, já não foram só os lesados do papel comercial, foram mais discretamente os das chamadas séries comerciais, os emigrantes que se afastaram. Eu não uso o elogio em boca própria, porque é vitupério, mas acho que ajudei a resolver 1000 milhões de problemas. Há gente muito pobre que tinha sido enganada. Entre os lesados do papel comercial e os imigrantes das áreas comerciais. Nesta parte, com grande ajuda do Dr. António Ramalho na parte dos lesados do papel comercial, com aquela solução em conjunto, resolvemos 980 milhões de problemas de dinheiro tirado a gente com pouca capacidade económica. Mas, para não perder o sentido do que estava a dizer, eu disse ao António Costa: ‘Eu farei o que puder para ajudar, mas não no Governo’. Depois falou-me na história da TAP. É como eu digo, cometemos ambos um erro que é um erro reconhecido. A última coisa que me ocorreu foi pedir dinheiro. Foi uma ajuda espontânea.
Mas percebe hoje em dia que foi um erro?
Sim, e fiz a minha penitência e o meu voto de consciência. Esses 1.000 ou 2.000 euros.
Havia um terceiro amigo que, ao contrário de si, integrou o Governo. Teria sido melhor ele não o ter feito, até porque parece que essa relação de amizade ficou um pouco…
Qual deles?
Siza Vieira.
O Siza Vieira é um homem excecional. Eu tenho mais amigos. O Dr. Eduardo Cabrita também.
Este trio vem do tempo da faculdade, certo?
O conhecimento vem do tempo da faculdade, a amizade muito profunda vem de Macau. Eu, o Siza Vieira e o Eduardo Cabrita fomos juntos para Macau.
Não acha que, quer o Dr. Eduardo Cabrita, quer o Dr. Pedro Siza Vieira, acabaram por não ter uma um final feliz na relação com o Dr. António Costa como primeiro-ministro?
Vamos lá a ver, como diz o professor Cavaco Silva, na sua prodigalidade, num dos temas destacados neste novo livro dele, nesta nova lição, um dos papéis mais ingratos é o de ter de remodelar e a arte de remodelar. Não invejo a tarefa, e aí não entra a amizade, entram critérios e juízos de outra natureza que eu nem sei bem. Mas a amizade supera essas coisas, assegura-se a amizade, o respeito e a consideração mútuos. Isso passa, no plano pessoal.
Que conselho é que o amigo do primeiro-ministro lhe daria para ele gerir as suas relações com o Presidente da República?
Continuar a ser como tem sido, com sentido institucional. Com recato, não comentando, não apreciando publicamente, não falando publicamente o que não deve falar.
Isso parece mais um conselho para o Presidente da República?
Eu acho que é necessária alguma circunspeção, alguma contenção. Falar de manhã, a meio da manhã, à hora do almoço, a meio da tarde, à hora do jantar, isso gasta. Eu votei no Marcelo Rebelo de Sousa duas vezes e ainda não estou completamente arrependido. O Presidente Rebelo de Sousa não é tão diferente assim do que foi o Presidente Cavaco Silva, ou o Presidente Mário Soares no segundo mandato, com um Governo que não era do seu lado. Não tem sido muito diferente, nem espero que seja muito diferente. A mim preocupa-me mais é a integridade da função. O poder moderador que o Presidente da República tem de ter não pode ser banalizado. É o que eu acho. Mas Rebelo de Sousa, sobre constitucional, sabe seguramente muito mais do que eu o que é que, do ponto de vista institucional, é melhor para o país.
Como secretário de Estado da justiça, foi precursor de algumas coisas que levaram a desburocratização, nomeadamente, a privatização dos notários – pelo menos foi assim que ficou denominada – e os Julgados de Paz. Que balanço faz ao fim destes anos todos?
Vinha de trás o projeto da privatização do Notariado e eu procurei ser um bom ajudante do senhor ministro da Justiça. E acho que fui. E acho que o Dr. António Costa, nas palavras independentes de (José) Miguel Júdice, terá sido o melhor ministro da Justiça da democracia. Eu fiquei com as responsabilidades nos Registos e Notariado. E lembro-me de dizer que, a meu ver, privatizar os notários é o pior caminho para desmantelar essa insuportável burocracia, esses custos de contexto mortais. Privatizar por privatizar, em vez de privatizar o lado da oferta, que era vender aos notários os seus cartórios notariais – iriam dizer que era como as farmácias – não era a solução. Além de que o Notariado, a formalização de atos jurídicos por via notarial, resulta da lei. Não é uma procura espontânea, não é um mercado. O que era preciso era privatizar o lado da procura. E começámos a olhar para os atos notariais que, à beira do século XXI, ainda fazem sentido. E acabámos com mais de metade dos atos notariais que eram praticados em Portugal. Isso permitiu começar com os pacotes de simplificação e desburocratização, foi o princípio do Simplex. Foi o princípio da reforma do Estado. Eu acho que uma grande parte dos agentes políticos deviam ser proibidos de falar em reformas, que só mudam na forma e não mudam nada na vida das pessoas. São só proclamações do Diário da República.
Então vem daí a inspiração para o primeiro-ministro dizer que é alérgico à palavra reforma?
Sim. Nós procurávamos mudar a vida das pessoas para melhor. Não falámos em reformas. Eu acho espantoso ouvir responsáveis políticos exigir a todo o tempo reformas. Não fazem a menor ideia do que é que verdadeiramente querem dizer a seguir. Ninguém lhes pergunta: diga-me lá como é que fazia, e diga lá o que é que fazia? Há muita gritaria, às vezes, na Assembleia da República, mas eu acho que devia haver mais accountability político. Explico-me: quando se toma uma decisão política, devia ficar depositado em memória o que é que eu proponho fazer, que resultados me proponho alcançar, que meios vou utilizar. E, depois, ser chamado dali a algum tempo para prestar contas dessas metas. Isto é que é responsabilidade e não é do Tribunal de Contas. O que aconteceu nesse tempo permitiu dar passos muito importantes. A empresa na hora, que também nasceu nessa altura, o cartão do cidadão, que permitiu, até do ponto de vista económico, que o país pudesse seguir mais rapidamente e que deixasse de ter a chamada hiper-burocracia, que sempre foi um dos motivos do nosso atraso. E eu acho que não vou usar a expressão reforma. A mudança, essa coisa que chamaríamos eficiência do Estado, de que muitas vezes os liberais também falam, provavelmente se fazia melhor por aqui do que realmente com grandes proclamações de reformas.
Quanto aos Julgados de Paz, qual é o seu balanço?
Eu avalio menos bem os Julgados de Paz. Até pela minha experiência de ter estado no Conselho Superior de Magistratura, achava que o nosso sistema de Justiça era muito epistolar e uma Justiça desfasada no tempo. E era preciso arejar isso. Era preciso meios diferentes. Era preciso outros meios. Tecnologia, memória artificial e outros meios de resolver o problema das pessoas. Começámos a falar da ideia da mediação, e esse era um caminho verdadeiramente diferente, para diminuir o lastro mortal das ações judiciais, resolvendo muito mais depressa por não mais de 40 ou 50 euros. Por mim, os Julgados de Paz podiam ter tido uma multiplicação maior, mas acho que não houve grande vontade.