Como vê as linhas principais do Orçamento do Estado? Acha as metas realistas?
São previsões. O mundo está tão incerto que não faria grande fé. Sempre que se comenta o Orçamento, há muitos comentadores que dizem: ‘Isto tem pouca política económica, é só parte financeira e precisava de ter mais economia’. Como tenho sempre expectativas muito baixas relativamente nunca acho isso. É um documento, sobretudo, financeiro e, por isso, nunca fico muito desiludido com a falta de uma grande visão para o desenvolvimento da economia, algo mais estruturante. Qualquer que seja o Orçamento do Estado, nunca espero muito dele. É uma listagem dos instrumentos financeiros e na realidade depois há diferença entre o Orçamento e a sua execução. Nunca se sabe muito bem o que vai ser. Mas de qualquer maneira, este é um Orçamento esperto, é um Orçamento habilidoso.
Habilidoso como?
É um Orçamento que tem duas bandeiras: é prudente e, ao mesmo tempo, pisca o olho às eleições a ocorrer em 2024, prometendo mais do que na realidade vai dar. Ou seja, é prudente e acena com uma mão muito visível, mas depois vai retirar com a outra. E para perceber o porquê de dizer isto é preciso ver quais são as bandeiras deste Governo. Uma é o aumento do rendimento disponível de certos setores da população que tem um peso eleitoral muito importante. Estamos a falar dos aumentos por via fiscal até ao quinto escalão, dos aumentos das pensões de reforma e estamos a falar dos aumentos salariais na função pública. Isto é, procura dizer que se dá rendimento a certos segmentos da população.
Daí o ministro dizer que é um orçamento para ajudar famílias?
Isso é a retórica a pensar na ajuda de algumas famílias. Não gosto do artigo indefinido das famílias em geral, porque se formos esmiuçar, é de alguns segmentos da população. A segunda bandeira é a redução da dívida pública abaixo dos 100% do PIB para cerca de 99%, uma coisa que não é alcançada desde 2009. São estas as duas bandeiras: uma dá rendimento às pessoas, a outra a dívida pública. E por que digo que é um Orçamento prudente? Porque poucas pessoas – se bem que posso argumentar um pouco sobre o ritmo – acharão que com um mundo tão incerto, com as taxas de juros a subir, querer reduzir a dívida pública ou ter a dívida pública controlada é a parte prudente. E por que é eleitoralista? Porque basicamente promete um aumento de rendimento maior do que é na realidade. E por várias vias. Primeiro, porque os impostos indiretos aumentam, logo, o que se dá por via da redução de impostos diretos retira-se por via dos aumentos de taxas, dos impostos específicos, etc. Depois, porque o ajustamento dos escalões de IRS em 3% está claramente abaixo dos aumentos salariais e provavelmente vai ser o aumento da inflação, e por isso muitas pessoas vão ser chutadas para um escalão superior e vão pagar mais por via dos aumentos salariais. Por outro lado, os aumentos variam entre 18 e 75 euros por mês, segundo ouvi um fiscalista calcular, mas se dissermos que ‘os seus impostos baixam 20 euros por mês’, acho que ninguém vai ficar assim tão excitado. Além disso, limitam só o quinto escalão. E o quinto escalão são as pessoas que ganham menos de cerca de 2.000 euros por mês. É uma grande proporção da população, mas também há uma proporção importante que fica fora dessa franja. Por outro lado, ao fazer essa transferência de rendimento por via fiscal deixa de fora as pessoas que não pagam em IRS por ganharem pouco, por ganharem menos de 800 euros ou uma coisa assim ou por ganharem no limiar do salário mínimo. Isto é, há um conjunto de pessoas que também não sai beneficiado. Acho que a promessa é maior do que o que vai ser entregue no fim do dia. Só que as eleições são a meio do ano, mas são antes de haver o acerto final das contas. Isto é, cria-se uma ilusão, quase uma ilusão fiscal, porque as pessoas ligam mais aos impostos diretos. A retórica em torno da redução de impostos é muito forte e será muito forte, principalmente quando as pessoas notam menos as questões como o ajustamento dos escalões, o aumento das taxas e dos impostos indiretos. Daí dizer que é um orçamento prudente e esperto.
Principalmente porque havia uma grande expectativa em torno da redução da carga fiscal…
Havia uma grande expectativa, uma grande promessa. E, no fim do dia, a carga fiscal global quer sobre as pessoas, quer sobre as empresas são ajustamentos tão menores que globalmente continuamos a ter uma das maiores cargas fiscais da Europa. Essa sensação não vai diminuir porque esta carga fiscal é enorme. E assiste-se, por outro lado, a uma continuada degradação dos serviços públicos em todas as áreas. É a saúde, é a habitação, são os transportes públicos, é a justiça, são os professores. Portanto, há uma contínua degradação do serviço público, ao mesmo tempo que mantemos esta carga fiscal elevada. Outra coisa que é importante notar é que este ajustamento até ao quinto escalão só agrava a progressividade do IRS, que já é muito progressivo, numa altura, em que estamos muito preocupados com a fuga de talentos, com os jovens que querem ir lá para fora. Nós pagamos impostos, os jovens pagam impostos muito altos para níveis de rendimento que, por padrões europeus, são muito baixos. Este agravamento da progressividade significa que, não obstante a retórica – de dar passes para os jovens, de devolver as propinas – não vai ter nenhum efeito na retenção de talento, porque um jovem pode até querer ficar porque tem um custo porreiro, espera dentro de cinco anos ganhar x e de repetente está a pagar taxas de 35% ou uma coisa assim, sem contar com os descontos para a Segurança Social. Este agravamento da progressividade também me parece um aspeto negativo.
E do lado das empresas pouco ou nada se vê…
Estive a ver o Orçamento com alguma atenção, vi o IRC e pode ser defeito meu mas não vi literalmente nada. Não fiz uma busca exaustiva pela palavra empresas, mas olhando o documento não vi nada que se dirigisse às empresas.
Além da redução do IRC para quem suba os salários acima de 5%…
Esta coisa de fazer reduções de impostos contingentes a fazer isso ou aquilo não é boa política económica. Os impostos devem ser tão neutros quanto possíveis e isso é uma coisa que é fogo de vista. Mesmo aquela ideia do fundo estruturante, onde serão colocados os excedentes, está ali apenas com um intuito comunicacional.
E continuamos com os impostos indiretos a disparar..
Acho que há aqui uma anestesia, uma ilusão fiscal, porque as pessoas quando olham para os impostos olham tipicamente para o que lhes é retido na fonte todos os meses. Vendo a folha salarial, nós pagamos x e a retenção da fonte é y. É algo muito visível, enquanto que o aumento do imposto de circulação e os outros impostos indiretos, taxas aqui e taxas ali são coisas das quais as pessoas têm uma medição menos exata, apercebem-se menos.
Como vê o agravamento do IUC?
É uma medida que é regressiva, quem tem um carro anterior a 2007, que começa a ser velho, é porque provavelmente não tem rendimentos para trocar de carro. A não ser que seja um colecionador de carros antigos. Daí dizer que é prudente e habilidoso. É prudente e isso é bom, porque o mundo não está para brincadeiras. Ao mesmo tempo, procura disfarçar isto dizendo que está a dar bombons a toda a gente. E há dois aspetos que estão um bocadinho omissos da discussão pública. Uma é a questão da redução da dívida pública. Isto é, de analisarmos a dívida pública de uma perspetiva meramente conjuntural e de quanto é que se vai ter de pagar de juros do serviço da dívida. Mas a dívida pública tem um aspeto intergeracional. A dívida de hoje são impostos que vão ser pagos pelas gerações futuras. E muitas vezes diz-se: ‘Estou a reduzir acentuadamente a dívida porque não quero que as gerações presentes vivam à conta das gerações futuras, que vão ter de pagar os desmandes das gerações presente’. Se bem que isto em geral seja verdade, acho que a geração presente tem sido extraordinariamente sacrificada. Já viveu várias crises: a crise financeira de 2008, o período da troika e a covid. A ideia de se calhar estarmos a sacrificar a geração presente em benefício de não onerar as gerações futuras deve ser discutida. Esta justiça intergeracional, associada a um ritmo muito acentuado de redução da dívida pública, é algo que me parece importante. Do mesmo modo que o facto de dizermos que temos um excedente nas contas também deveria ser alvo de uma outra discussão que deveria existir e questionar se temos um excedente excessivo face à situação económica que temos então não seria melhor ter um défice de 1%, por exemplo? Outro aspeto que está totalmente omisso é o capital público. Há estudos de colegas economistas que mostram que o stock de capital público tem vindo a cair desde 2011. Isto é, o que temos gasto todos os anos nem cobre a depreciação e manifesta-se em todo o lado, mas a questão é saber se não vale a pena contrair dívida para reforçar este stock de capital. São duas ideias que estão muito próximas uma da outra, mas que não tem a ver com este Orçamento especificamente. O Orçamento não faz a política económica. O Orçamento decorre da política económica, é um instrumento da política económica e tem que estar a montante do Orçamento. Estes aspetos têm a ver com o nosso futuro e como é que o futuro impacta o presente. É como nas famílias será que passo fome para deixar uma herança maior aos meus filhos? Ou quanto é que devo poupar hoje para os meus filhos poderem gastar no futuro? Isto colocado assim percebe-se melhor o que quero dizer.