Guerra no Médio Oriente divide Igreja Católica

A Igreja Católica está entre dois fogos em relação ao conflito de Israel: apoia o estado israelita ou condena os ataques do Hamas? Dentro da instituição as vozes dividem-se, pois uns querem dar mais ênfase a Israel, outros ao Hamas.

A um de outubro de 1523, o fundador da Companhia de Jesus, vulgo jesuítas, era corrido da Terra Santa pelos franciscanos, numa clara divisão entre católicos. 500 anos depois, a história não se repete, mas volta a demonstrar que há diferentes sensibilidades dentro da Igreja que olham para o mundo de formas diversas e, algumas vezes, antagónicas, e que os franciscanos e os jesuítas continuam em campos opostos. Franciscanos que têm a custódia da_Terra Santa e que continuam a ser em muito maior número que os jesuítas. Estes apenas têm dez pessoas em Jerusalém e uma em Belém.

O conflito que opõe Israel aos palestinianos, como já se percebeu, está a dividir a Igreja Católica e o uso da palavra passou quase a ser sagrado para não se melindrar nenhuma das partes. Se o Papa Francisco começou por criticar abertamente os ataques do Hamas no passado dia 7, a verdade é que depois foi ‘obrigado’ a falar das vítimas palestinianas. «Houve um primeiro momento um bocadinho, talvez, ambíguo. Há aqui uma dificuldade de posicionamento para o Vaticano. Por um lado, há esta questão de condenar o terrorismo do Hamas, e desta ação absolutamente execrável de matar e raptar civis junto à Faixa de Gaza. Por outro lado, o Vaticano também está muito preocupado com aquilo que será a reação de Israel. E não nos podemos esquecer que a maior parte dos cristãos da Terra Santa são de origem árabe, são árabes, basicamente. O Vaticano também não se vai pronunciar de tal forma que crie uma animosidade nos seus próximos membros da Igreja Católica local, inclusive em Gaza, onde os cristãos que existem também são árabes», comenta ao Nascer do SOL um padre com experiência no conflito.

Carta de católicos de Israel não refere ataque do Hamas

Mas o caso mais grave nesta guerra de palavras começou no próprio dia do ataque do Hamas em pleno território israelita, como escreveu Massimo Faggioli, professor de Teologia e uma voz considerada na Igreja. Segundo Faggioli, os patriarcas e chefes das Igrejas em Jerusalém fizeram uma declaração conjunta dizendo que a cidade «está atualmente atolada em violência e sofrimento devido ao prolongado conflito político e à lamentável ausência de justiça e respeito pelos direitos humanos». A não existência de uma declaração forte dos católicos, que apenas afirmaram condenar «inequivocamente qualquer ato que vise civis, independentemente da sua nacionalidade, etnia e fé», desagradou, e muito, ao Governo israelita, que dois dias depois, através da embaixada de Israel junto do Vaticano, fez chegar uma carta ao_Papa onde dava conta do seu desagrado, condenando a «imoralidade de usar a ambiguidade linguística em tais circunstâncias».

Continuemos a citar o texto de Faggioli. «Depois de observar que ‘é especialmente inacreditável que um documento tão estéril tenha sido assinado por pessoas de fé’, a declaração fazia uma referência direta a Pio XII e ao Holocausto, e às aparentes falhas dos católicos em aprender com a história do antissemitismo, e antijudaísmo. O próprio Pizzaballa emitiu então uma condenação mais contundente do Hamas em 11 de Outubro».

No Consistório de 30 de setembro, em que o Papa nomeou vinte e um novos cardeais, entre os quais D. Américo Aguiar, estava também o Patriarca de Jerusalém, que assim aumentou a responsabilidade do seu cargo de Patriarca Latino de Jerusalém desde 2020, presidindo aos católicos latinos em Israel,_Palestina, Jordãnia e Chipre.

Acontece que, atendendo ao passado complicado entre católicos e judeus, a nomeação de Pizzaballa não agradou a todos, até pelo melindre da questão, já que o Patriarca de Jerusalém é auxiliado por seis vigários, que atuam em seu nome e que o podem substituir. Dos seis ajudantes, três são bispos auxiliares, dois originários da Palestina e um do Egipto. Os outros três padres são um do Kuwait, um da Polónia e outro do Brasil.

Voltemos a Faggioli. «O facto de o Patriarca de Jerusalém ser agora um cardeal significa que haverá uma relação mais forte entre Roma e Jerusalém, e mais voz para a Igreja de Jerusalém, tanto em Roma como na Igreja global. Também assinala o desejo do Vaticano de desempenhar um papel mais ativo no Médio Oriente. É claro que o que isso significa exatamente agora – com Israel a declarar guerra ao Hamas após o seu ataque de 7 de Outubro – é questionável. A nomeação de Pizzaballa não poderia ter ocorrido em momento mais delicado».

Agradar a judeus e a palestinianos

Para se perceber um pouco melhor a história, apanho a boleia de um teólogo português: «Roma não pode perder o pé na Palestina, mas também não quer entrar em conflito com a comunidade judaica». Isto é, não pode perder os católicos que tem naquela zona, nem os interesses de outra ordem, mas já lá vamos. O_Vaticano defende o acordo de 1948, dos dois Estados independentes com uma capital única dividida e dirigida pela ONU, mas nunca fala, oficialmente, em territórios ocupados. E isto não é muito consensual na Igreja, pois se há quem queira que o Vaticano critique abertamente o não cumprimento dos dois Estados independentes, outros preferem não ‘atacar’ mais os judeus do que o fizeram ao longo de mais de dois milénios.

 Voltemos ao padre com experiência no conflito. «A Igreja pode criticar moralmente o Estado de Israel sem que isso seja percebido como um ataque frontal à identidade do povo hebreu, tendo em conta dois milénios de antijudaísmo? Essa é a grande dificuldade. Por outro lado, os cristãos da Terra Santa na sua grande maioria, mesmo os católicos, são de língua árabe e a Igreja Católica é muito sensível a uma situação que me parece de evidente injustiça estrutural em relação a estas pessoas. A Europa, vamos dizer assim, foi um bocadinho rápida quando exportou, em 1948, um problema para o Médio Oriente, tendo criado uma situação extremamente complexa, e os atos terroristas do Hamas não justificam as injustiças na Cisjordânia, e de o povo palestiniano ser forçado a viver sob a lei marcial há 75 anos. Basta dizer isto para que se perceba que há aqui qualquer coisa que não está a resultar. A Igreja não usa a palavra ocupação, como outros usam, por pudor, por sensibilidade também e devido à complexidade da situação na Terra Santa».

Sobre as relações entre o Vaticano e o Estado israelita, voltamos a dar a palavra a Faggioli. «É claro que a Igreja Católica deve equilibrar as relações em constante ajustamento entre religião e política onde quer que esteja presente. Mas em Israel, o Vaticano não desempenha apenas um papel nos debates teológicos sobre a identidade de Israel e da Palestina; também possui terras significativas, especialmente na contestada Jerusalém. Uma das maiores tensões neste momento é se essas propriedades conseguirão ou não manter o seu estatuto especial de isenção fiscal. A Igreja não quer levar a questão demasiado longe e, no rescaldo dos ataques, tem de agir com ainda mais leveza».

D. José Ornelas e como o Sínodo vê o conflito

Presente no Sínodo que decorre no Vaticano, D. José Ornelas explica como estão a viver este e outros conflitos. «Dizer que os jesuítas estão de um lado e os mais conservadores estão de outro, é pura fantasia. Mesmo havendo bispos que sejam mais críticos de Israel ou mais críticos do Hamas, o que todos queremos é encontrar caminhos de convergência para a paz. No que todos estamos em uníssono é na crítica contra todas as formas de violência. Procuramos convergência para caminhos de paz, praticamente estando do lado daqueles que sofrem e quem sofre. Há um provérbio africano que diz: ‘Quando os elefantes lutam quem mais sofre é o capim’, ou seja, os mais fracos. E seja, em nome do que for, não há o direito de matar inocentes deste modo. Quando são utilizadas armas poderosas como os mísseis e se vê edifícios inteiros, com as famílias lá dentro, a caírem, a serem destruídos, como é que se pode falar de uma guerra justa? Não, perde-se toda a razão!».

O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa vai mais longe: «Não se questiona quem tem razão ou não, a não razão é claramente a violência e a chacina indiscriminada de inocentes. Para nós, esta área do Médio Oriente tem referências fundamentais e não gostamos que as coisas estejam a ser tratadas deste jeito. Mas os agravos de um lado e do outro são muito graves. Isto é que é dramático». l

vitor.rainho@nascerdosol.pt