Michel Eltchaninoff. ‘A União Soviética não era uma ideologia. Era um culto religioso’

Esteve em Moscovo antes e depois da queda da União Soviética e testemunhou como as pessoas, desorientadas com o fim do comunismo, procuraram uma ideologia de substituição. Muitos encontraram-na no cosmismo, um movimento fundado no tempo dos czares, que inspirou a conquista espacial e continua presente da Rússia de Putin a Silicon Valley.

Os nomes de Nikolai Fiodorov (1829-1903), Konstantin Tsiolkovski (1857-1935) e Vladimir Vernadsky (1863-1945) poderão dizer muito pouco ao público ocidental. Mas foram as teorias destes homens que serviram de substrato ideológico à conquista espacial soviética e à corrente de pensamento conhecida como cosmismo. Filho natural de um príncipe, Fiodorov, a quem chamavam ‘o Sócrates de Moscovo’, trabalhou como arquivista e desenvolveu uma teoria segundo a qual viria a ser possível trazer de novo à vida os antepassados mortos. O escritor Fiódor Dostoiévski foi apenas um dos intelectuais que se entusiasmaram com as suas ideias.

Já Tsiolkovski, considerado «o avô espiritual» de Gagarine, era um genial inventor e matemático, que fez modelos detalhados de foguetões e cálculos sobre como propulsioná-los para o espaço. Putin visitou a sua casa-museu, onde apreciou os foguetões, e anunciou a construção de um cosmódromo, base de lançamentos e até de uma nova cidade batizada com o seu nome.

Vernadsky, por fim, foi um dos primeiros cientistas a alertar para a forma como a ação humana «modifica os equilíbrios geológicos da biosfera».

Em Lenine foi à Lua – A história louca dos cosmistas e transumanistas russos (ed. Zigurate), Michel Eltchaninoff, doutorado em Filosofia, conta-nos quem foram estas figuras, como formaram o movimento cosmista e como as suas ideias ajudaram a escrever a história da União Soviética.

Em primeiro lugar, porquê estudar a história russa recente? Tem ligações ao país? O seu nome…

Pois, o meu nome não é nada francês. De facto, os meus avós, tanto do lado do meu pai como do lado da minha mãe, saíram da Rússia depois da revolução, por volta de 1920, porque um dos meus avós era padre ortodoxo, e outro era oficial do Exército Branco [que combateu as tropas bolcheviques durante a Guerra Civil de 1917-1921]. Emigraram para a Europa Ocidental e fixaram-se em França. Portanto ambos os meus pais são de origem russa e, em pequeno, eu aprendi a falar russo antes de saber falar francês.

Falavam russo em família?

Na família, com os amigos, na comunidade. Fui criado na confissão ortodoxa. Quando tinha 20 anos fui viver para Moscovo durante três anos – 1990, 91, 92 – e apanhei o antes e o depois da queda da União Soviética. Vi o país a desmoronar-se completamente. Estava impregnado da cultura russa, que era muito importante para mim, e ao mesmo tempo descobri a realidade soviética.

Deviam ser coisas muito diferentes – aquilo que imaginava e a realidade com que se deparou.

Sem dúvida. O meu pai recitava os poemas de Púchkin de cor, líamos Dostoiévski, Gogol, Tchékhov… Para mim a Rússia era toda essa cultura clássica, e depois testemunhei a realidade soviética, que era completamente diferente da imagem, não propriamente idealizada, mas muito cultural que eu tinha. Descobri muitas coisas nesses anos. Primeiro vi a queda da União Soviética, depois voltei a trabalhar em Moscovo, nos anos 2003 e 2004, e vi o putinismo a tornar-se uma ideologia.

Como era viver em Moscovo no início dos anos 90?

Era muito difícil para os soviéticos e russos. Antes da queda da União Soviética [25 de dezembro de 1991], não havia quase nada nas lojas. E depois da queda ainda havia menos. Foi uma crise social enorme. Vi muita pobreza. E vi também pessoas que assistiram ao desabar, de um momento para o outro, do mundo que estavam conheciam e não percebiam o que se estava a passar. Ideologicamente foi muito interessante. O marxismo-leninismo continuava a ser a ideologia oficial, embora já ninguém acreditasse nele. E muitas pessoas procuraram uma ideologia de substituição. Vi muita gente, por exemplo, converter-se à Igreja Ortodoxa, que em seguida foi instrumentalizada por Putin. Vi uma espécie de desorientação filosófica, de crise social e identitária. Os soviéticos ficaram sem referências. Uma vez que o marxismo-leninismo e o império estavam mortos, em que acreditar? E nessa época vi muitas pessoas interessarem-se pelo cosmismo, uma forma de crença que tinha atravessado toda a história da União Soviética. O cosmismo esteve muito na moda primeiro nos anos da perestroika e na Rússia da década de 90.

Nestas páginas descreve uma visita ao Mausoléu de Lenine. Foi a múmia do líder bolchevique, aquela espécie de extraterrestre, que lhe sugeriu o tema e o título do seu livro?

Na realidade, eu tinha apenas 15 anos quando o vi, numa visita de estudo do liceu à União Soviética. Isto foi em 1985, no início da perestroika, mas era tudo ainda muito soviético. E marcou-me muito, porque vi que se tratava verdadeiramente de um culto religioso a um chefe político. Não podíamos falar, os polícias revistavam-nos os bolsos antes de entrarmos, as pessoas estavam silenciosas e respeitosas, como numa igreja. Mais tarde, enquanto escrevia este livro, ao pensar nessa experiência percebi que a União Soviética era em primeiro lugar algo de religioso. Não era uma ideologia materialista, económica, nem um sistema racional. Era um culto religioso. Mas essa visita foi há muito tempo.

Orlando Figes, o historiador britânico, sugere que foi a descoberta do túmulo de Tutankhamon no Egipto, em 1922, que inspirou a ideia de embalsamar Lenine.

Não sabia. O que li foi que em 1924, quando Lenine morre, Trotsky diz que é preciso cremá-lo, enquanto [Anatoly] Lunacharsky e [Leonid] Krasin diziam: ‘Não, é preciso conservar o corpo’. Mas tive de me basear em fontes indiretas, porque não pude ir aos arquivos russos. Não conhecia essa história, mas efetivamente há a ideia de que o líder da revolução não pode morrer. Uma das cançonetas mais conhecidas na União Soviética dizia: ‘Lenine viveu, Lenine vive, Lenine viverá’. No inconsciente coletivo soviético, o fundador desta religião não pode morrer. Por isso há que pô-lo num templo e talvez um dia se possa voltar a pôr o coração e o cérebro no lugar [ambos estes órgãos foram retirados para serem objeto de estudo] e devolvê-lo à vida. Krasin [engenheiro e diplomata bolchevique, 1870-1926] fez um discurso em que dizia que um dia a ciência soviética ia conseguir ressuscitar os mortos. Daqui a algumas semanas [21 de janeiro de 1924] iremos assinalar o centenário da morte de Lenine e ele ali continua na Praça Vermelha, no seu templo. Nem sequer Putin ousou enviar os despojos para o cemitério da família. Depois da queda do comunismo isso chegou a ser discutido, mas nem Ieltsin nem Putin se atreveram a tocar no deus dos bolcheviques.

Vários autores do ocidente imaginaram viagens ao espaço. Júlio Verne, por exemplo, tem dois livros sobre uma ida à Lua. Ainda assim, considera que existe algo de especificamente russo no cosmismo?

Acho que sim. A ficção científica, incluindo os romances de Júlio Verne, era incrivelmente popular na Rússia de finais do século XIX. Os russos liam muito Júlio Verne, que foi rapidamente traduzido, nomeadamente Da Terra à Lua. Tsiolkovski, uma das personagens principais deste livro, que imaginou viagens no espaço, construiu modelos de foguetões e fez cálculos para estudar como se podia propulsionar um foguetão, leu Júlio Verne. Mas os cosmistas acrescentaram à ficção científica algo de especificamente russo, uma forma de religiosidade exacerbada, quase mística, que era muito importante na cultura da época, e que vemos tanto em Dostoiévski como em Tolstói. No fim do século XIX assistiu-se a um regresso muito forte da religião, que se juntou a uma atmosfera pré-revolucionária. Os intelectuais diziam que a Rússia só podia renascer de uma forma radical, ou seja, que os homens podiam derrubar o império czarista, e criar algo de totalmente novo. Portanto, temos uma atmosfera religiosa, uma forma de messianismo político e também o facto de a ciência e a técnica ocidentais terem chegado à Rússia muito tardia e bruscamente. No final do século XIX, nestes anos em que o cosmismo aparece, dizia-se que a ciência podia transformar a face de um país – com caminhos-de-ferro, fábricas, etc. – e ao mesmo tempo transformar a vida. Se misturarmos um pouco de ficção científica à maneira de Júlio Verne, de espírito religioso, de espírito revolucionário e de espírito científico, com esta ideia de que a ciência vai mudar o mundo, obtemos algo que levou a esta linha de pensamento cosmista que também existe na França ou nos Estados Unidos – mas penso que na Rússia o aspeto messiânico, descomplexado e até um pouco louco é mais forte do que em qualquer outro sítio.

Eu diria que a Rússia de finais do século XIX e início do século XX era muito atrasada e rural. Parece-me espantoso que esta doutrina muito audaciosa tenha surgido num país tão retrógrado.

Tem razão. Era um país muito, muito atrasado, um país rural, com mais de 80% de analfabetos, muito impregnado das tradições religiosas. Mas a partir do último terço do século XIX assiste-se a uma industrialização muito forte, a um êxodo rural muito forte – daí este novo proletariado que será o herói da revolução – e além disso há uma grande curiosidade da intelligentsia russa por tudo o que se passa no Ocidente. Leem Júlio Verne, conhecem os filósofos da ciência ocidentais, e há também a penetração do socialismo. Temos portanto uma chegada em força do pensamento científico e revolucionário que leva a intelligentsia a esta ideia de que o país não pode ser reformado com suavidade, é preciso um choque. E esse choque será a revolução.

Nesses anos da revolução, depois da queda do czar, tudo parecia possível. Era o ambiente ideal para o crescimento das ideias do cosmismo?

Sim. O escritor H.G. Wells faz uma visita em 1920 ao que virá a ser a União Soviética, encontra-se com Lenine, e diz que este país se tornou «um campo de experimentação infinito». Estes são os anos em que os bolcheviques acabaram de ganhar a guerra civil, e dizem que se vai construir o comunismo, um homem novo e um mundo novo. É uma época de experimentação em todos os domínios: cinematográfico, literário, etc. Experimentação artística, mas também social. As pessoas podem divorciar-se muito, muito facilmente. Havia filmes que mostravam que se podia fazer casais com três pessoas. Dois homens e uma mulher, ou duas mulheres e um homem – não havia mal nenhum. Portanto houve experimentação artística, social, ideológica, científica, etc. E chega-se a um momento de explosões de delírio em que se diz que tudo é possível. Vivia-se numa atmosfera de experimentação ilimitada e o cosmismo, apesar de ter nascido na Rússia czarista, e pela mão de um homem muito religioso como Fiodorov, transformou-se num dos ramos do sovietismo delirante dos anos 1920. Houve um sábio soviético que tentou fazer cruzamentos genéticos entre homens e macacos. Acreditava que a ciência podia criar um exército invencível de homens-macacos! Dizia-se que depois de se ter derrubado o capitalismo e acabado com a exploração do homem pelo homem, o passo seguinte era vencer a morte, sair da Terra e explorar o espaço.

Há aí um pouco de Frankenstein, quase…

É a ideia da criação total do homem. Usei para epígrafe uma citação de Trotsky que fala de «um tipo biológico e social superior, um super-homem». Temos aqui uma componente que poderia ser da filosofia de Nietzsche. É marxismo, evidentemente, mas um marxismo prometaico, nietzschiano, que imagina que se pode fazer a revolução mundial e transformar a humanidade. No fundo é uma velha ideia russa de messianismo, uma mistura de comunismo e messianismo.

Ao deparar-me com certas ideias, como esta de Fiodorov de ressuscitar os antepassados – fisicamente -, perguntei-me até que ponto eram levadas a sério.

Fiodorov era considerado um original. Chamavam-lhe o ‘Sócrates de Moscovo’ porque se recusava a ganhar dinheiro e a publicar os seus livros. Tinha discípulos, mas era um mestre oral. Como trabalhava na Biblioteca Central, com o arquivista, conhecia todos os intelectuais. E foram muitos os que se sentiram seduzidos pelas suas ideias. Tolstói interessou-se por elas e Dostoiévski também. Maxim Gorki talvez o tenha conhecido, disse que era um velho um pouco excêntrico, mas muito interessante. Neste ambiente de tudo é possível, qualquer teoria podia ser bem acolhida, sobretudo se fosse louca. A Dostoiévski, o que mais agradou em Fiodorov foi a tese de que o cristianismo não era apenas um ideal, mas uma ação. Dostoiévski queria mudar o mundo através da religião, não do socialismo. Mas todos estavam convencidos de que era preciso mudar o mundo e, portanto, quando Fiodorov diz ‘Graças à ciência vamos conseguir ressuscitar os nossos pais e as nossas mães’ veem isso como uma ideia de ação que lhes interessa.

Defende que o cosmismo esteve na origem da conquista espacial. Mas, neste caso, teoria e prática não são coisas diferentes?

No que diz respeito à conquista espacial, sim, são coisas muito diferentes. Tsiolkovski, que ainda na época czarista imaginou a conquista espacial, que construiu maquetes de foguetões e fez cálculos complicados, via-se sobretudo como filósofo e tinha uma visão do universo segundo a qual todo o ser vivo poderia ressuscitar e que o homem estava destinado a povoar o cosmos. Era uma teoria invulgar e quando o programa espacial soviético se apropria de Tsiolkovski reconstrói e reescreve a história. Não é unânime que tenha sido Tsiolkovski o inspirador do programa espacial soviético. Mas é interessante que tenham ido buscar essa referência. Precisavam de um enraizamento no passado para ligar a conquista espacial ao período anterior à União Soviética. E Korolev, que enviou em 1957 o primeiro Sputnik para o espaço, fez um discurso em que citou Tsiolkovski. E hoje Putin também o cita, para dizer que a conquista espacial, para os russos, não é uma questão de poder, nem de tecnologia, mas uma questão quase filosófica. É preciso que a humanidade adquira uma dimensão universal, que permitirá talvez atingir um dia a harmonia entre todos os homens. Há portanto uma vontade de ancorar a conquista espacial soviética e russa em algo de mais grandioso, mais belo e mais nobre. E foram buscar isso a Tsiolkovski.

Conta-se que, depois do primeiro voo em órbita, Gagarine terá comentado: ‘Não me cruzei com Deus lá em cima’. No início, há um sentimento religioso muito forte no pensamento cosmista. À medida que o tempo avança, esse elo à religião vai-se perdendo?

Havia uma ideologia oficial, que era o ateísmo. E quando Gagarine diz que não se cruzou com Deus está a ser fiel a esta linha ateísta da época. Aliás, nesse ano de 1961 está a haver uma campanha anti-religiosa muito forte. É interessante que a União Soviética tem uma ideologia que combate a religião, mas na realidade isso tem oscilações.

É algo intermitente?

Sim. É sabido que, durante a Segunda Guerra, Estaline permite o regresso da religião. E a partir de 1965 há movimentos civis para proteger os monumentos religiosos. É a época em que Andrei Tarkovski faz um filme, Andrei Roubliov, sobre um pintor de ícones! Na União Soviética! É extraordinário. O filme não será autorizado, mas toda a intelligentsia o viu em pequenas salas. Sobretudo a partir de Khrushchov há ao mesmo tempo a ideologia oficial, ateísta, e aquilo a que chamo o New Age soviético, vários movimentos hippies que se interessam pela espiritualidade russa ortodoxa, mas também pelas espiritualidades budista, hinduísta, zen, pagã. A União Soviética real, não aquela sobre a qual se lê nos jornais do Ocidente, os jovens da intelligentsia estão apaixonados por Tsiolkovski, Fiodorov, os druidas, o paganismo, o gnosticismo, as religiões orientais. Nos anos 60 houve toda esta New Age soviética que descobriu um pouco o cosmismo.

Aponta o cosmismo também como uma das influências de Putin. Mas o cosmismo parece-me um movimento um tanto idealista, e Putin de idealista tem muito pouco.

Putin cita Tsiolkovski para a conquista espacial e Vernadsky, para falar de ecologia. Vladimir Vernadsky, que foi um grande erudito, bioquímico e um dos teóricos do Antropoceno, nos anos 1920, 1930, já dizia que o homem tem uma ação geológica sobre a crosta terrestre. E Putin cita-o para dizer: ‘Vejam, o pensamento ecologista tem uma origem russa’. É verdade que Putin, enquanto Presidente, nunca falou da vida eterna ou da ressurreição dos mortos. Que eu saiba, nunca citou Fiodorov. Creio que se preocupa muito com a sua saúde, atualmente tem 71 anos, faz muito desporto, anda sempre rodeado de médicos, viaja com várias dezenas de médicos, não sabemos se está doente ou não, mas quer certamente ter uma vida longa. E talvez se tenha interessado pelas ideias do transumanismo [movimento que visa, através da tecnologia, tornar o corpo imune aos efeitos do tempo e evitar o envelhecimento]. Mas nunca o vai referir. Porquê? Porque é demasiado inigualitário, é algo reservado aos ricos e poderosos, gente como os milionários de Silicon Valley e antigos presidentes. Não há propriamente cosmismo em Putin, mas no seu discurso há por vezes uma espécie de messianismo, a ideia de que a Rússia pode ajudar o mundo a regenerar-se, a sair do beco sem saída do modernismo e do liberalismo. A ideia de que a Rússia religiosa, conservadora, que detesta estas polémicas contemporâneas e a homossexualidade, pode ajudar o mundo ocidental a sair do seu próprio labirinto.