Os operários não compram casa porque estão cada vez mais pobres, a classe média está na mesma encruzilhada porque empobreceu e não tem intimidades com o capital, mas a burguesia também não está em bons lençóis. É o caso de Angela de Atayde. Com carreira feita na Comissão Europeia não é a emigrante típica, mas sempre acalentou o desejo de empreender o caminho de volta à sua terra mal se reformasse. Teve de usar de muita diplomacia para convencer o marido, ex-funcionário do Conselho da Europa, e conquistá-lo para o mesmo projeto. O britânico, que viveu muitos anos em França, tinha preferência pela região da Côte d’Azur, onde uma boa casa consegue ser mais barata do que em Portugal.
Angela Atayde, com a família a residir na linha do Estoril, onde vivera parte da sua infância e adolescência, torcia pelo regresso ao berço e, eliminadas as arestas com o marido, mal chegou a hora, regressou. Mas rapidamente percebeu que os sonhos são como o mercúrio. Escapa-se por onde pode. Apesar de ter um plafond de dois milhões de euros para investir numa casa própria, passado um ano percebeu que não estava em pé de igualdade com cidadãos de outras nacionalidade que aproveitam as benesses que a relojoaria do sistema lhes servia de bandeja, retirando à maioria dos portugueses o acesso à habitação.
De pele limpa, sem maquilhagem, os mesmos traços de colegial tímida e disciplinada de quem andou no Colégio de Odivelas e partiu para a Suíça, em 1978, para tirar Relações Internacionais e Ciências Políticas, curso que à época ainda não existia em Portugal, Angela assume uma posição quase defensiva quando explica como é que com tamanha quantia em jogo ainda não conseguiu encontrar casa.
Num país em plena erosão económica e social, com professores a dormirem em carros, e médicos a fugirem para o interior onde as rendas são mais baixas, trata as palavras como espinhos: “Tenho medo de parecer elitista, mas, agora que eu e o meu marido nos reformamos – e nunca levamos uma vida de grandes extravagâncias, nem tivemos filhos –, o meu sonho é ter uma casa, com um jardim onde possa ter um cão, num local calmo. Se possível no Estoril, para estar próxima da minha mãe. Para isso, reunimos todas as nossas poupanças e estamos dispostos a viver apenas com as nossas reformas. Mas tem sido uma luta inglória e reveladora dos esquemas que existem em Portugal para atrair os estrangeiros, submetendo os portugueses que procuram casa a uma concorrência que qualificaria de ‘desleal’, tendo em conta a respectiva capacidade financeira de uns e outros. Há uma especulação enorme, não só ao nível das casas mais caras, que eles chamam de ‘luxo’ (e basta qualquer casa aqui na zona ter o mínimo para ser considerada luxo), mas também ao nível das casas mais acessíveis”.
Para escaparem à crise que se instalou no país, os governantes portugueses viciaram-se no capital e no investimento estrangeiro. Os incentivos atraíram os vistos ‘Gold’ e nómadas digitais, a palavra passe para a escalada na especulação que reina nas grandes cidades. Mas o tiro saiu pela culatra, pois os objetivos fundamentais da criação deste mecanismo nunca foram alcançados: quase não houve investimento produtivo ou gerador de postos de trabalho. Dos quase 12 mil vistos ‘gold’ concedidos, mais de nove mil foram apenas para investimentos imobiliários.
A situação na habitação tornou-se, entretanto, asfixiante. Em 2022, o Governo, aparentemente, proibia a atribuição para as habitações permanentes nas grandes cidade, abrindo exceção para zonas turísticas como Madeira e Açores ou para o interior do país. A ex-funcionária da instituição europeia regressava ao país precisamente nesse ano. Como uma presa surpreendida, acusa o logro. As restrições anunciadas pelo Governo só existiram para entreter os media: “Para meu grande espanto, constatei que a concessão de vistos ‘gold’ (e cidadania) a cidadãos não oriundos da União Europeia/Espaço Económico Europeu, continua em vigor de forma expressa ou camuflada (sob a forma de investimentos turísticos, ou para fins ditos comerciais ou de serviços, etc…), inclusive nas zonas de grande densidade populacional, como é o caso do distrito de Lisboa (por exemplo, a Baixa pombalina e a Quinta da Marinha, em Cascais); os cidadãos norte-americanos estão atualmente entre os principais beneficiários destas facilidades”.
Se na década de 80 do século passado se disseminou o retalho bancário e, por todo o país, surgiram balcões em cada esquina, com a globalização económica foram as agências imobiliárias, físicas ou virtuais, que ocuparam esse lugar. Angela procurou as mais reputadas, com ramificações internacionais. Há dois meses, recebeu uma newsletter da Porta da Frente Christie’s. Uma das ofertas era a de um empreendimento turístico elegível para vistos ‘gold’, no pátio Salema, em pleno Rossio. O apartamento mais barato, um T0 com 42 metros quadrados, está à venda pela módica quantia de 460 mil euros, enquanto o mais caro, um T2 com cerca do triplo do espaço, atinge os 1,52 milhões de euros. O anúncio, ainda online, comprova que a legislação era mesmo para inglês ver: “Trata-se de um empreendimento turístico com rendimento garantido de 3% nos primeiros cinco anos, podendo também ser habitação permanente”.
Angela desmonta a charada política: “Quando se fala em empreendimento turístico (e é curioso que essas casas são sempre entregues mobiladas), trata-se apenas de uma forma de contornar as restrições geográficas. Ou seja, compram para fazer um aparente investimento em arrendamento, obtêm com isso o visto ‘gold’, deixam passar uns meses e depois acabam por ficar a morar na casa. Foi o que me disseram em várias agências imobiliárias”.
“Houve uma casa que visitámos e cujo preço apresentado pela agência era 2 milhões e 400 mil euros. Quando lá chegámos, o proprietário informa-nos que um cidadão da Bielorrússia acabara de oferecer mais 300 mil euros. E que, apesar de não ter feito negócio porque exigia 20% de sinal à cabeça e o outro não estava disposto a dar, agora a casa passava a valer esse preço. Quem é que oferece assim dinheiro, a não ser para lavar dinheiro? E eu fiquei espantada por ver que que os nossos escassos bens imobiliários estão assim ao dispor de cidadãos oriundos de países duvidosos”.
Angela balança entre a indignação e a impotência: “Passei por outra situação que considero um verdadeiro insulto aos portugueses. Uma casa no Estoril, cuja proprietária, uma cidadã vietnamita, que não dever ter dado mais do que o necessário para obter o visto ‘gold’, estava a pedir agora 2,3 milhões de euros. Eu estava convencida que era possível apelar ao bom senso das pessoas. Mas não. Então, ela teve o desplante de dizer que ia retirar a casa do mercado porque os preços em Portugal estão muito baixos. Com estes preços e ainda achava que estava baixo! Como se não chegasse, despeço-me da cidadã vietnamita e num local muito próximo deparo-me com uma rua em que as casas estavam a ser completamente renovadas por cidadãos portugueses que tinham adquirido a nossa nacionalidade por serem descendentes de judeus sefarditas supostamente expulsos de Portugal nos finais do século XV. E, com tudo isto, ainda parece tabu falar da política de ‘portas abertas’ deste Governo que deixa entrar meio mundo e não se preocupa com as necessidades básicas dos seus próprios cidadãos”.
Habituada a lidar com várias realidades, Angela ainda anda às apalpadelas no seu país, que de forma irracional se vai afastando do resto do tecido europeu: “A legalidade de algumas dessas medidas, nomeadamente as que podem conduzir à livre circulação no espaço europeu (Schengen) e/ou à atribuição da nacionalidade portuguesa, já tinha sido posta em causa a nível europeu. Por exemplo, os vistos ‘gold’, que dão direito à atribuição da nacionalidade, já foram condenados por Bruxelas, e o Acordo de Mobilidade com os PALOP está sob escrutínio. Mas não é só a Europa. O primeiro-ministro canadiano ainda há pouco tempo decretou que agora só os residentes é que podem adquirir casa no país, mais ninguém. Isto porque quer promover o acesso das famílias canadianas à habitação para poderem constituir família. E é um pais riquíssimo, com muitos recursos, mas teve de tomar uma medida drástica”.
A voz de Angela enfraquece à medida que fala. Até para pôr um país na pobreza é preciso ter talento. A ex-funcionária da UE segue atenta as notícias do burgo: “Ligamos o telejornal e nada está bem: na Saúde reina o caos, na Habitação é igual, nem a Justiça escapa. Tudo é lamentável e desolador. Estávamos na cauda da Europa antes da adesão dos famosos alargamentos, agora voltamos para a cauda da Europa. Nós que já estamos na União Europeia desde 1986! Custa-me muito o embate com esta realidade”.
A situação portuguesa ganha âmbito internacional. Há meses, em junho, jornalistas do The Guardian não pouparam o país. Angela faz a resenha: “Dizem que a aposta do Governo na desregulamentação, na promoção do alojamento local, na concessão de vistos ‘gold’ e de outros esquemas de vantagens fiscais, como os programas para residentes europeus não habituais (RNH) ou para nómadas digitais (estes últimos sendo já 15.200, só em Lisboa), distorceu de tal maneira o mercado imobiliário que o desconectou completamente da realidade portuguesa”.
Com a situação económica e social do país a bater no fundo, ela sabe que muitos podem não entender o seu dilema. Tenta preservar uma couraça contra o desânimo: “Tenho amigas que também trabalharam em instituições europeias que acabaram por desistir. Também viviam no Estoril. Uma comprou um terreno em Palmela e está a construir. A outra comprou um apartamento nos Olivais”.
Mas, para Angela, o futuro continua a ser um enorme ponto de interrogação: “Para ser sincera, se não fosse a minha mãe, acho que viveria muito melhor noutros locais. No sul de França, por um milhão e meio, descobri uma propriedade excelente com piscina. E o meu marido, claro, chama-me a atenção. Já pensamos em Malta que também tem um bom clima. Não posso continuar assim muito mais tempo. Mas custa-me muito”.