Ainda temos olhares cheios de peregrinações, voltados para um azul e verdura insolentes, aquela monumentalidade geológica que exige mais da nossa metafísica, não se ficando por relevos ordinários, territórios de uma imensidade que provocam sensações de um abandono animador, a América da velocidade desértica, dos motéis à beira das estradas e das superfícies minerais, lugares que dão ao olhar uma amplitude dolorosa, e as montanhas que uivam devido ao seu relevo. A este respeito cabe destacar a recente edição de um dos primeiros títulos de Joy Harjo, poeta nascida em Tulsa, no Oklahoma, e que é membro da Nação Muscogee (Creek), uma tribo indígena que, nos anos de 1830, foi levada à força da região sul dos EUA para aquele estado. Publicada pela primeira vez entre nós numa tradução de Vasco Gato, e através de um discretíssimo selo editorial que vem em nosso socorro na hora de definir da forma mais acutilante o que significa promover uma actividade editorial independente, seguindo aquela veia de extravagante insensatez, o que significa acolher o risco e as maiores dificuldades que nos impõe uma época saturada de “conteúdos”, e que o faz sabendo que, nisto, nenhum subsídio de inserção poderia valer-lhe de muito, e que prossegue a construção do seu catálogo a par e passo, como uma academia obscena e desmedida, essas estrelas que só se consegue espreitar rasgando o fundo do cenário, e de que o editor se serve para tirar o seu ponto, pólos magnéticos, relações mais antigas, sem se acolher nas lógicas do funcionalismo e da rede de apoios que acabam por minar todo o processo. Na sua obra, Harjo traz-nos uma visão da história fragmentada ou elidida dos povos indígenas, sendo uma obra que nos confronta com esses sinais ou fantasmas do passado nativo americano, figuras vistas a debater-se com uma cultura estranha que é, ela própria, vítima de fragmentação… Harjo tanto interroga a responsabilidade de cada um de nós face à sua própria cultura como esse receio de ser soterrado debaixo do seu peso. A voz desta poeta aceita a comparação a uma faca (cuchillo), na forma como rasga a superfície e procura libertar esses “ossos vivos que querem sair”. A própria língua inglesa, na qual esta voz balança, e a que num livro posterior ela se referirá como um idioma trocado, mostra-se fraca, insuficiente, pois é a língua que nos fala da história americana, nesse sentido mítico que justifica toda a usurpação e os massacres, toda a falsa esperança que se vende, todo esse resíduo da fantasia e da alucinação que os EUA exportam como propulsores do seu sonho nuclear: “Cadillacs, Coca-Cola e cocaína, presidentes e psicopatas, Norman Rockwell e a máfia… esse sonho que é a América”, diz-nos J.G. Ballard, “vai continuamente decompondo os seus códigos, qual espiral de ADN ideológico”. Mas então, e o que seria se o delírio lhe fosse retirado, “o que aconteceria se olhássemos apenas para esse aspecto exterior dos EUA e, com base nessas imagens, construíssemos uma América alternativa?” Na viagem que o levou por essa trama mais profunda, Jean Baudrillard, o sociólogo das maiorias silenciosas, o filósofo da catástrofe e extinção social, como é conhecido, fala de uma cultura que se confunde com a própria velocidade, e diz-nos como esta marca o triunfo da causa sobre o efeito, o triunfo da instantaneidade sobre o tempo como profundidade. “A velocidade cria um espaço iniciático que pode implicar a morte e do qual a única regra consiste em apagar os vestígios. Triunfo do esquecimento sobre a memória, a embriaguez inculta, amnésica. Superficialidade e reversibilidade de um objecto puro na geometria pura do deserto.” Noutro momento, este pensador francês exprime esse fascínio diante da grandeza dos desertos, o qual consiste em reconhecer neles, na sua aridez e secura, “o negativo da superfície terrestre e dos nossos humores civilizados”. Baudrillard prossegue esta descrição marcada por um fulgor de intuições articuladas poeticamente, e fala de um “lugar onde se rarefazem os humores e os fluidos, e onde descem directamente as constelações, tão puro é o ar e tão sideral a influência”, de tal modo que “foi até necessário o extermínio dos índios para que transparecesse uma anterioridade ainda maior que a da antropologia: uma mineralogia, uma geologia, uma sideralidade, uma facticidade inumana, uma sequidão que expulsa os escrúpulos artificiais da cultura, um silêncio que não existe em mais nenhuma parte”. É evidente que uma descrição destas repugnaria a Joy Harjo, mas, de alguma forma, os seus poemas acompanham até certo ponto estas intuições de uma vida que se suspende sobre uma vertigem anterior, cidades que acabam por revelar essa imposição de uma vida que não se chega a enraizar nem a alcançar um equilíbrio, de tal modo que os termos do desejo se invertem a cada dia, e a cada noite estes acabam aniquilados. Numa definição curial, Baudrillard diz-nos que o deserto persiste como “rede luminosa e fóssil de uma inteligência inumana, de uma indiferença radical – não somente a do céu, mas a das ondulações geológicas onde só cristalizam as paixões metafísicas do espaço e do tempo”. E quando Harjo se confronta com os cenários ao seu redor, pressente a forma como o tempo actua sobre os corpos e logo os reduz ao que, no fim, resta: os ossos: “Passei calada/ estes dias de Inverno/ como o relógio do homem branco/ a marcar o tempo/ um osso velho/ vazio como um esqueleto de peixe/ na maré baixa.” Há um sentido muito forte de existências que foram capturadas, sem saída, de tal modo que “as crianças são ecos até ao osso de uma vida similar”. Deparamo-nos com visões poderosas de corpos que sinalizam uma inadequação profunda da vida ao quotidiano, deixando este sinais de uma desolação que não deixa de causar um certo escândalo: “No banco de um parque, vemos a avó atabascana/ de alguém, dobrada, a cheirar a 200 anos/ de sangue e mijo, de olhos fechados perante uma treva inimaginável, onde ela está sepultada numa dor/ na qual nada faz/ sentido.”
A partir de um efeito de rememoração das lendas e tradições dos povos indígenas, Harjo vai incorporando não apenas certos traços míticos e rituais, símbolos e valores numa obra que pretende arrepiar caminho, como uma memória capaz de exercer um juízo severo e também um encanto que persevera. “Há um limiar onde as sombras/ e os ossos de alguns de nós andam/ ao contrário./ Falam ao contrário. Há um limiar/ chamemos-lhe um mar de medo do escuro./ Ou designemo-lo com outros cantos. Debaixo das costelas/ os nossos corações são estrelas sangrentas. Brilham/ e brilham”… Um livro como “Ela tinha alguns cavalos”, o quarto dos 10 livros de poesia publicados pela autora, está decisivamente empenhado neste resgate produtor de assombrações, de tal modo que as paisagens não comparecem nem como sonho nem exclusivamente num efeito de reportagem, mas num ágil enredo em que se pode pressentir os elementos de violência, esses espíritos trucidados que habitam paisagens do Sudoeste e Sudeste, mas também do Alasca, e que exprimem uma forte necessidade de recordação e transcendência. “Brota-me na barriga/ algo incerto e terrível./ A dura realidade anda às voltas/ na minha garganta./ Nada posso fazer senão conversar com o vento,/ com a Lua/ senão gritar porra porra/ a pedras/ e outras vozes imortais/ que espero que nos acudam/ a todos.”
Se deste lado do mundo temos muitas vezes a sensação de que a poesia se dilui em frivolidades, nessas zonas de puro artifício verbal, misturando uns pós da tradição sem força para transmitir os sinais de perturbação do presente, se tantas vezes ficamos com a sensação de que onde dizem estar a poesia o que encontramos é mais da mesma conversa fiada, incapaz de tocar a alta inspiração ou os rumores sumptuosos que assinalam uma diferença decisiva nesse modo de fixar relações que escapem à digestão generalizada de tudo quanto existe, adormecendo a vida, isso significa que este já não é um espaço de consciência e ruptura. “Aqui devia estar a liberdade; dizem-vos que está, mas ninguém sai”, notou Breton. Quando o surrealismo era esse signo de um método de não se deixar comover com a história, mas estar apenas comprometido com o futuro, o seu papa insistiu de todas as maneiras ao seu alcance em tornar claro que há, antes de tudo, uma obrigação de arrancar a linguagem à sua servidão, adiantando que subverter a ordem das palavras é atentar contra a existência parente das coisas. E isto porque, no seu entender, “a mediocridade do mundo em que vivemos depende essencialmente da pobreza da nossa fala”. Assim o papel essencial da poesia passa por rejeitar em bloco o pouco de realidade imposto, bem como as “experiências” castradoras que o definem.
Ora, Ernesto Sampaio vinca que “o poeta é precisamente o único homem cujo funcionamento espiritual não é arbitrário, é real, o único que consegue mover-se no presente e dele falar”. E um sinal de que o surrealismo e a sua influência está presente em todos os tempos, e que é apenas outro dos nomes para esse estado de consciência absoluta e de absoluta vidência que desafia e rompe com os quadros do quotidiano, disto nos oferece um estarrecedor testemunho Joy Harjo, em “Às arrecuas”, um poema espantoso e que deveria envergonhar-nos dessas rouquidões jocosas que os poetas imitam, da sua ironia desgastante, por serem incapazes de um nível de canto que nos detenha e nos faça corar, como acontece aqui: “Nessa noite, atiraram a Lua/ da ponte, aquela que fica perto de Mesita/ e sob a qual se arrastam os carris –/ eu ia a passar de carro quando o vi;/ esqueleto branco estendido// lua caída a encarquilhar/ a via-férrea de osso/ zumbido de sementes moles e trovoadas/ encerrado em guizos de pele rija.// Há algo a tentar fazer rodas/ a Terra. Da madrugada azul até ao Oeste amarelo./ Da Califórnia até Nova Iorque./ É algo que está em marcha/ desde si lá quando,/ meu amor.// ‘… quando a dança terminar, queria/ vou levar-te a casa no meu Ford zarolho…’// A Lua nasceu branca, carcomida/ nas beiras. Quando tinha quatro anos,/ sonhei que estava de pé em cima dela./ Um homem branco ia cortando pedaços/ com uma faca/ e atirando a carne/ aos cães.”
Se não fosse por mais nada, o livro valeria por este poema, o qual faria certamente as delícias de Breton e companhia. Mas o livro destaca-se pela capacidade de superar esse nível de simulacro da realidade que se submete ao tal sonho americano, o qual faliu há muito, mas persiste por aí como um mito irritante, postiço e degenerado. “Vejo o cambaleio/ nos teus olhos/ óculos tortos/ a tua voz ruidosa/ a grasnar/ uma fanfarronice vacilante”… Nestas páginas, saem-nos ao caminho figuras como espinhos numa paisagem que surge normalmente esbatida, ao fundo, para funcionar como cenário. Figuras que se debatem com essa ficção tão volátil e que só se aguenta como um produto descartável de entretenimento. No reverso da moeda, há algo mais sujo e sórdido, capaz desses gestos que depois lemos como sinais da loucura que surge nos cabeçalhos e exprime uma América que continua a resistir às interpretações imediatistas: “Noni Daylight tem medo./ Espera nos semáforos de cruzamentos/ que, às quatro da manhã, são mares desolados de betão./ Brinca com o gatilho; o batimento cardíaco/ é um ruído constante. Ela fala baixinho/ baixinho/ com a voz do rádio. Passa a noite a conduzir./ E espera/ por esse momento tão ansiado,/ pela mão que abrirá a porta/ Não é a Lua, nem a pistola que leva no colo,/ mas uma fúria cruel/ que a libertará.” E se há aqui outras histórias ou retratos, outras cenas, momentos, reflexos num espelho fragmentado, se Harjo se empenha em reivindicar as experiências dos povos nativos como variadas, multifónicas e distintas, e se lança o seu olhar ao redor e se serve da sua própria autobiografia para explorar e criar uma memória cultural capaz de recair sobre mundos diferentes, há aqui também uma boa dose de rejeição de todo esse regime de uma cultura de entretenimento dirigida quase na totalidade a adolescentes entediados e violentos. E, no fundo, a poeta procura reaver “um sangue fundo de silêncio/ onde o sol [possa ir] tombando”, tratando-se por isso de permitir que uma outra luz produza uma consciência mais séria das coisas. “Estás de olhos fechados diante do fulgor,/ mas inspiras o sol/ à maneira dos girassóis./ (O sentido da luz assemelha-se a uma outra/ espécie de toque,/ como ar e água para a pele.)” Trata-se, no fundo, de estar atento a esses sinais reveladores, de premiar a espera, e superar o resíduo de séculos que foram soterrando o homem num fosso de miséria e injustiça. Trata-se de reclamar outras experiências e noções, um conhecimento mais fundo, que traga de volta o desejo: “Engoliu-te de um trago/ a teia húmida de luar/ feita por um caracol ou o bafo quente/ de alguém às quatro da manhã/ quando a noite foi/ um exagero, te devorou/ por inteiro./ Isto é a minha vida./ Foi peneirada/ através dos ossos/ do meu corpo, através do sangue./ É tudo o que/ tenho.” E isto é certamente mais prometedor do que tanto do que nos tem sido dado a ler em obras que, em muitos casos, chegam a ser mais equilibradas e harmonias, mas que não produzem este efeito de estranheza, este sentido de um propósito e de um sobressalto de cólera do homem perante a exígua ração de realidade que nos vão servindo hoje os que reclamam o título de editores independentes e que em nada se distanciam dos esquemas e tráficos ideológicos a que se entregam diariamente os meirinhos do senso comum. E isto permite-nos retomar a reflexão sobre o papel do editor que, reclamando a sua autonomia, se coloca nessa posição incómoda de ir resgatando as leis que regem as excepções, em vez de andar em busca desses gritos expressivos e modulados, premiados em concursos especiais de artes e letras. Se num momento posterior da sua obra, Joy Harjo viria a ceder a um excesso de conteúdo programático, a um regime de tematização afim das lógicas de um certo marketing autoral, inscrevendo-se nas categorias tantas vezes redundantes como a da poesia feminista, e adequando-se aos mecanismos promocionais que exaltam as histórias de resistência pessoal/política, as explorações da chamada ‘new-narrative’, o que levou certamente a que tenha sido a primeira nativo-americana nomeada poeta laureada, neste livro ainda estava longe desse regime de consagração que tudo neutraliza.
Hoje, Harjo parece ter-se tornado ela mesma um símbolo mais do que uma voz preservando a sua distância face aos modelos de reificação, mas neste livro estava ainda longe desse panfletarismo consolador, e de uma retórica assente na moralidade, nesse catecismo idealista, enjoativo e desgastante, alinhado com aquela marca de optimismo tipicamente norte-americano: a ideia de que no fim é sempre possível rectificar as graves injustiças históricas, e que aquele é um povo comprometido com o ideal de redenção. Este livro é anterior a isso, e é mais um título que nos surge como uma espécie de náufrago chamado a encontrar um sentido novo numa corrente definida por leituras que se alimentam do acaso, que desbravam outros caminhos, e nos fazem sentir a obscura sensação de gravitarmos em volta de um projecto que, mesmo sendo relativamente recente e desconhecido, corresponde a uma tão íntima necessidade de que o mundo não se contente com esse plano de velocidade que tudo desagrega. No fundo, a figura do editor é a mais ameaçada e aquela que vem encontrando maiores obstáculos no campo literário, sendo este cada vez mais um território para as sensibilidades viciadas, a de leitores submissos que se deixam levar pela tralha publicitária e todo o foguetório que se faz em torno das modas de cada momento.
O que nos tem faltado são os outros, os que estão disponíveis para se mutilar de modo a viver no seu tempo, a responder às formas de degradação e ao desespero sem remédio que nos aflige, lutando nem que seja para levantar uma muralha contra o olhar alheio, uma zona subtraída ao regime abandalhado em que tudo vale o mesmo. Assim, do editor espera-se que seja capaz de estabelecer o seu próprio sistema de aferição do real e das obras que com ele estabelecem relações mais poderosas ou angustiadas, ele estabelece a sua própria física, criando uma distância face à actual, “comportando-se sempre em relação às ‘verdades’ do mundo e em relação à sua própria percepção duma maneira subversiva”, isto para nos servirmos de palavras de Ernesto Sampaio. A Cutelo Edições é a expressão do percurso singularíssimo de um leitor voraz e que surge de costas voltadas para o aparato publicitário que se organizou entre nós, assumindo uma predilecção por obras que vão estilhaçando o simulacro e nos dão a sentir os resíduos da degradação e de uma realidade que não cabe nas fitas estilizadas de Hollywood, a da exploração e da violência diária nos arredores das grandes cidades e nas pequenas povoações à beira desses intermináveis desertos norte-americanos, esse horizonte selvagem onde a lei não passa de um pretexto para novas injustiças. Tanto nas escolhas de autores estrangeiros como portugueses, Pedro Magalhães tem feito um percurso estranho e desafiador, em que cada novo título aponta noutra direcção, e se alguns nos parecem negligenciáveis, aqui por fim nos encontramos perante um catálogo em que cada escolha reforça o sentimento de que alguma coisa de vivo se está a criar, sendo evidente que isso é mais importante que a beleza ou a fealdade, que qualquer critério moral ou estético, um verdadeiro empenho que testemunha mais por uma vontade de futuro, do que essas formas de harmonia das colecções perfeitamente coerentes e perante as quais acabamos por nos sentir glacialmente ausentes.