Alteração aos Estatutos. Governo, PS e Ordem dos Médicos em luta

O bastonário da OM promete “luta feroz” à alteração aos estatutos que retira ao regulador as competências técnicas e formativas. No princípio do mês, o Quénia anunciou o fim do acordo de cooperação com Cuba, pela desigualdade de tratamento entre profissionais nacionais e estrangeiros.

Numa altura em que temos o Serviço Nacional de Saúde (SNS) virado de pernas para o ar, estando a passar pela maior crise de sempre – encerramento de urgências, cirurgias adiadas, quem recorre ao SNS para obter uma consulta pode ter de aguardar até um ano, havendo 1,5 milhões de portugueses sem médico de família -, o PS criou um novo problema no setor, agora com a Ordem dos Médicos (OM).

No dia 19 de outubro, o Expresso noticiou que os deputados fizeram alterações ao estatuto contra o que estava negociado entre o ministro, Manuel Pizarro, e o bastonário, Carlos Cortes. Uma alteração ao artigo 74 que acaba por redefinir quem decide como deve ser a formação clínica – a mudança no texto do artigo 74º está expressa numa proposta de alteração do PS, que data de 8 de Outubro e foi incluída no texto final de dia 11.

Se, antes, partia da OM a proposta sobre a quantidade de internos que entram nas especialidades e quem os pode formar, agora, o Governo fica com a iniciativa. Ou seja, os socialistas decidiram dar-lhe poder para decidir sobre a formação dos médicos. “Por exemplo, a partir de agora, o ministro da Saúde pode dar o grau de especialidade a estrangeiros, quando antes era só a OM”, exalta uma fonte do setor ao i. “Sendo que, assim, existe um tratamento desigual entre profissionais, pois os médicos portugueses são obrigados a vários exames para serem especialistas e os estrangeiros não”, continua a mesma fonte, acrescentando que no momento em que isto é público “encontram-se inúmeros médicos a realizar os exames de especialidade quase meio ano depois de já terem feito o seu internato”. “Este Governo destrata os seus criando condições de desigualdade e aproveita e paga como internos a médicos que há muito já podiam ser especialistas se não fosse terem que aguardar por um exame que não será exigido aos estrangeiros e que muitos não o fazem nos seus países, como Espanha, por exemplo”, defende.

Uma coisa que, aos olhos do bastonário dos médicos, Carlos Cortes, “fere de morte” a independência prevista no estatuto da OM, criando uma intromissão que “pode ser perigosa”. Por isso, os médicos decidiram travar as negociações que o ministro tenta há mais de 16 meses fechar com um acordo.

Recorde-se que, em 2019, o primeiro-ministro, António Costa, criticou o exercício dos poderes regulatórios de algumas ordens profissionais, em especial a dos médicos, para restringir a concorrência e limitar o acesso à formação, considerando que tal impede “a resposta às carências do país”. Além do contestado art. 74º, os socialistas fizeram ainda alterações na questão da objeção de consciência, exigindo à OM um registo dos objetores.

PS, OM, GOVERNO Segundo fonte próxima do processo, a nova redação foi preparada ao longo de horas nos dias que antecederam a votação no Parlamento, a 13 de outubro. De acordo com a mesma fonte, tanto Carlos Cortes como Manuel Pizarro não foram informados com detalhe sobre as modificações que iriam ser feitas. Escreve o Expresso que, dias antes, o líder do Grupo Parlamentar do PS (GPPS), Eurico Brilhante Dias, reuniu-se com Manuel Pizarro e Carlos Cortes com o objetivo de acertar os detalhes do acordo traçado e na manhã da votação o presidente do GPPS telefonou ao bastonário a dar conta de “algumas imprecisões” que podiam surgir no diploma, “dada a urgência com que tinha sido aprovado”.

“Houve aqui uma palavra dada, houve aqui um compromisso assumido entre duas partes: o Estado e a OM. E foi para nós uma surpresa a votação do passado dia 13 de outubro”, afirmou em entrevista à RTP Carlos Cortes. “A OM é que define como é que se forma um médico em Portugal. Por outro lado, a OM também identifica quais são os serviços em Portugal que têm competências para formar esses médicos especialistas. Não faz nenhum sentido existir esta intromissão com as alterações que foram feitas ao diploma à última hora, pela calada da noite”, continuou, frisando que a formação dos médicos não pode estar dependente de políticos. Portanto, avança o bastonário, a OM irá “até onde for necessário” para garantir que os portugueses “possam continuar a ter médicos de qualidade”.

A coordenadora dos socialistas na comissão parlamentar de Saúde e vice-presidente da bancada do PS recusa as críticas de que o novo estatuto da Ordem dos Médicos tenha sido feito “à revelia desta entidade”, repudiando a acusação de que houve “algum enviesamento”. Ao Público, Maria Antónia Almeida Santos garantiu que esta entidade “foi ouvida e enviou contributos escritos”, tal como muitas outras. “Houve propostas da Ordem dos Médicos que foram aceites e outras que não foram; mas este também era o momento e o papel do Parlamento: legislar”, reforçou a deputada. Segundo a responsável, algumas ordens chegaram a enviar a redação dos artigos tal e qual como pretendiam ver vertidos no novo estatuto. “Mas quem legisla aqui são os partidos e os deputados. Nós tentámos consensualizar as propostas das ordens e dos partidos todos, mas também queríamos continuar com o propósito da proposta do Governo”, explicou ainda.

De acordo com o bastonário, o ministro tinha-se mostrado surpreendido com as alterações, contudo elas foram acordadas com o Governo. À RTP, Manuel Pizarro apenas garantiu empenho: “A OM mantém aquilo que é uma função essencial na coordenação da formação dos médicos. Esse é um modelo no qual devemos continuar a investir”, começou por afirmar. Interrogado sobre a alteração realizada, que outrora havia negado que aconteceria, o ministro da Saúde garantiu um papel decisivo das ordens, nomeadamente da Ordem dos Médicos, na formação dos médicos.

Quénia anuncia fim de acordo com Cuba Há três semanas, o Ministério da Saúde do Quénia anunciou o fim do acordo de cooperação com Cuba, no domínio da Saúde.

Segundo reportou a Africanews, a declaração foi prestada pela ministra da Saúde queniana, Nakumicha Wafula, durante uma reunião, em Nairóbi, onde estavam presentes funcionários da indústria do setor.

Recorde-se que por detrás da decisão está o acordo de cooperação bilateral assinado, em 2017, entre o Quénia e Cuba, pelo qual foi autorizada a contratação de 100 médicos cubanos, distribuídos em vários hospitais locais, “enquanto 50 quenianos seguiram o caminho inverso, para receberem especialização”.

De acordo com a mesma fonte, o programa acabou por ser contestado e criticado junto do principal sindicato de médicos do Quénia, porque os cubanos “recebiam mais do dobro do salário médio dos homólogos quenianos”. Nakumicha Wafula acrescentou ainda que esses valores devem terem ser “melhor alocados em infra-estruturas” e “equipamentos para o sector”, bem como nos “profissionais do seu país”.

A pergunta que se coloca é: se já nem o Quénia está interessado nesses acordos, como se chegará a um acordo em Portugal?