A Lebre

Quem melhor do que o presidente da Assembleia da República para travar as ambições de notáveis socialistas nunca tão desejados por António Costa para Belém como o secretário-geral das Nações Unidas?

Foi nos campeonatos de atletismo (e de corta mato) nos anos oitenta do século passado – quando Mário Moniz Pereira era treinador/selecionador de um conjunto de atletas de topo mundial (Carlos Lopes à cabeça, mas também Fernando Mamede e Aniceto Simões, todos do Sporting, António Leitão e João Campos, estes do Benfica, ou, mais tarde, os gémeos também sportinguistas Dionísio e Domingos Castro) que se tornou comum o recurso às chamadas ‘lebres’.

Nas provas de meio fundo e fundo, as organizações dos chamados meetings, para atrair público e audiências televisivas, contratavam atletas para garantir desde o início da corrida um ritmo ou andamento que permitisse aos mais consagrados chegarem aos últimos metros antes da meta em condições de estabelecer um novo recorde (da Europa ou Mundial). Muitas dessas ‘lebres’, aliás, só ganhavam o valor contratado se cumprissem o tempo combinado para a passagem a uma determinada distância (parcial), calculado por forma a permitir a marca pretendida.

As ‘lebres’ assumiam o comando das provas desde o início e marcavam o ritmo até à distância que lhes cumpria, a maior parte das vezes abandonando mesmo imediatamente a seguir ao cumprimento das missões para que foram contratadas. E chegavam a ser várias nas provas mais longas, revezando-se na frente até cederem a pista aos mais consagrados – e era quando começava a ‘corrida a sério’.

Chamavam-se assim porque o papel a que estavam destinados era, no fundo, o das lebres verdadeiras (que depois passaram a mecânicas) nas corridas de galgos, muito populares particularmente entre os britânicos (só Londres chegou a ter duas dezenas de pistas)
nas décadas anteriores.

António Costa lembra-se bem dessa época em que já andava nas lides políticas – nas associações de estudantes do Liceu Passos Manuel  e da Faculdade de Direito de Lisboa
– quando o PS era liderado pelo seu fundador Mário Soares.

António Costa, que nunca foi soarista, é por muitos considerado o politico mais parecido com Mário Soares, de cuja cartilha terá retirado muito do seu reconhecido saber ou habilidade política sobretudo na gestão do partido e do poder.

Por isso, não é de estranhar a sua jogada política para as próximas presidenciais, em 2026.

Apesar de não descolar do fundo de todas as sondagens, Augusto Santos Silva continua a ser o único nome ao qual António Costa deu gás como putativo candidato presidencial do PS.

Ou seja, se não passa em nenhum dos estudos de opinião, quererá porventura o líder do PS entregar de mão beijada a sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa a um candidato da mesma família política?

A avaliar pelos mesmos estudos de opinião já realizados, só há um candidato da área socialista com reais hipóteses de ganhar Belém: António Guterres.

E Guterres é o candidato preferido de António Costa, como já o foi em 2015, quando Marcelo Rebelo de Sousa concorreu pela primeira vez.

Na altura, Guterres disse e repetiu a António Costa, acabado de ser eleito secretário-geral do PS, que não seria candidato a Presidente, até porque estava apostado na sua carreira internacional, focado em chegar a secretário-geral das Nações Unidas, como chegou.

Agora, não tendo Costa dúvidas de que, tal como em 2015, Guterres é o socialista mais bem colocado para ganhar as presidenciais, havia que preparar caminho para a eventualidade de o secretário-geral da ONU deixar o seu cargo um ano antes do fim do seu segundo mandato e poder ir a jogo.

Ora, ao lançar o nome de Augusto Santos Silva como potencial candidato e não tendo nunca o presidente da Assembleia da República afastado tal hipótese, deixou de haver espaço ou condições para outras notáveis personalidades da área socialista poderem entrar na corrida.
     Augusto Santos Silva funcionaria, pois, como a lebre perfeita para o caso de António Guterres se disponibilizar para concorrer a Belém e fazer o gosto a António Costa de ser o candidato do PS às Presidenciais de 2026.

Não estando talhado para lugares executivos – sempre foi pelos consensos e disfarçou mal a incapacidade para impor decisões –, António Guterres tem um perfil muito mais presidenciavel do que de primeiro-ministro, cargo em que não deixou saudades.

O que é confirmado pelos estudos de opinião já publicados e que também mostram que os mais de 20 anos que passaram desde que saiu de S. Bento já terão sido suficientes para o eleitorado esquecer o pântano em que deixou o país. E daí que surja destacado como o socialista mais bem colocado para suceder a Marcelo Rebelo de Sousa.

Para Costa, seria a hipótese de realizar o velho sonho de Sá Carneiro e de pintar de cor de rosa o mapa das instituições de Portugal: com uma maioria no Parlamento, um Governo e um Presidente.

O que, a confirmar-se em 2026, isto é, ao fim de mais de 10 anos no poder, seria um verdadeiro recorde. Nem Cavaco.

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