Paulo Teixeira. A memória como última fronteira da aventura humana

Depois de uma década sem publicar, Paulo Teixeira parecia ter-se remetido ao silêncio. E se a sua postura foi sempre imensamente discreta, também é certo que não se podia passar ao lado do seu percurso na hora de fazer um balanço sobre a poesia contemporânea portuguesa.

No final de 2020, ao reunir a sua obra poética, acrescida de um livro inédito, essa edição foi completamente ignorada, o que nos diz mais sobre a ausência de um esforço de recepção crítica que tem deixado a poesia como uma terra de ninguém. 

Não há tempo a perder num mundo que nos parece cada vez mais belo precisamente devido à sensação de que o seu fim se precipita sobre nós. Resta lutar pelo homem contra o homem, procurando um compromisso contra tudo o que nos conduz à indiferença, de forma a que possamos retomar um sentido de uma existência futura, livre das pragas deste desolador momento em que tudo aquilo que se produz tenta negar as evidências do desastre que nos aguarda, sendo certo que só será possível sobreviver-lhe mergulhando na corrente das tradições abandonadas, trazendo para a nossa existência uma ordem que nos assombre, hostil e viva, e que nos obriga a retomar essa posição isolada diante da história.

Sabendo nós o quão difícil se tornou reconhecer onde começa ou acaba o real, sobretudo quando nada é suficientemente real para os fantasmas que nos cercam, e que a maioria daqueles com que nos cruzamos estão entregues a essa dissolução, como a um “pudor saboreando a sua ofensa”. Os mortos espantam-se perante essa notícia que não lhes permite absorver mais nenhuma dose de realidade. Os do nosso tempo morreram de si mesmos, de tal forma a própria inconsciência se tornou um veneno, e basta agora soprar sobre eles até que se apague a imagem que se preocuparam tanto em fixar. Enquanto se deslumbram com o lado monumental de produções que apenas servem para atravancar o espaço, o espírito retoma um código de morse, o papel que se cobre de signos como um osso de formigas, para usar uma imagem do poeta chileno Enrique Lihn. Ou também a percepção de que a escrita, hoje mais do que nunca, é uma catástrofe que alguém se permite gozar, uma morte com a qual se aprende a viver.

Com todas as listas que a cada ano se formulam e logo se esquecem, não deixa de ser curioso que se tenham suspendido os esforços no sentido de fazer balanços que funcionassem como informações sobre as metamorfoses que se vão operando na nossa paisagem artística. Nas últimas décadas do século passado, quando não havia crítico empenhado que não tentasse um exercício desse tipo, a década de 1980 saía normalmente bastante maltratada, como um hiato temporal, admitindo-se que as vozes então reveladas não teriam sido capazes de manter a marcha que até ali parecia ter percutido no chão do idioma um tremor constante. Contudo, com uma distância maior, um olhar retrospectivo seria forçado a reconhecer que as estreias de Fernando Guerreiro, Carlos Poças Falcão e Paulo Teixeira chegam e sobram para nos esclarecer quanto a essas noções tão apressadas, sobretudo sendo autores cuja singularidade não se limita a ecoar o inferno urbano, com as suas hordas de habitantes sem rosto, nem se confunde com esses destroços da madrugada, mas souberam propor visões de uma lucidez capaz de assombrar a imaginação da nossa época, sucedendo a uma modernidade exausta de si mesma, sem recair num qualquer regime de postulação para recair num conforto azedo, deixando-se confundir com o desmoronamento cruel e insensato de todas as coisas.

No caso particular de Paulo Teixeira, uma dessas figuras em tempos tão marcantes e hoje claramente sonegadas no trânsito dos nomes em voga, a sua poesia surpreendeu desde a estreia, em 1985 com o livro “As Imaginação das Verdade” (ed. Caminho), pela sua erudição luminosa ainda que tantas vezes angustiante. Se então a sua voz provocou logo algum sobressalto, hoje, e dado o triunfo da ordem filistina nas letras, e no quadro de uma formação cultural que se afasta da vida vivida e desemboca no torpor burguês, neste momento esta parece uma obra condenada a aguardar uma geração de leitores capaz de elevar o espírito acima do tempo, e penetrar na rede dessa malha apertada que envolve um “domínio de prazer forense, breve e matizado”. “Nesse trabalho de falcoaria sobre um tempo ido,/ escrever lembra-lhe os cortes feitos pela navalha/ do prisioneiro na parede da cela, contando os dias,/ certo de esperá-lo o nó corrediço da forca/ ou o tiro disparado de frente sobre o crânio.// Sabendo todo o seu trabalho entregue nessa hora/ à dispersão,/ deseja salvar, consoladora e suficiente,/ palavra sua na face de uma estela futura”, assim termina o poema cujo título dá nome a este volume que recolhe agora toda a obra poética de Paulo Teixeira: “O Último Poeta Romano”.

Tal como acontece com este poema, boa parte destes textos assumem uma força profética na relação com os nossos dias, com um tempo em que já nada nem ninguém parece reconhecer-se em si mesmo. Quer seja nos seus reflexos, sombras ou ecos, fica-nos a intuição de que o próprio repertório epocal se mostra exausto de si mesmo, e é preciso chamar voz a outra coisa, uma luz que venha ao nosso encontro a partir do limiar da realidade, aí onde o invisível ganha alento, quando cada um de nós esboça já outra carne, misturando o fôlego de outros seres, os passos mais fundos, capazes de superar o efeito caótico destes dias, o ritmo dos céus que desfaz todos os rumos. “Pergunto que sorte ler agora nas estrelas./ Por quem chamar nesta galeria de silêncio?/ Sem palavra segredada em voz baixa no ouvido,/ sem passagem de volta para o mundo/ velado no altar a um deus destruído,/ sei que fui exilado antes de na Terra/ caírem os venábulos e a lua atirar-se no salto/ de quem quis ver a Terra mais perto. Resta-me/ lembrar os nomes substantivos na língua materna/ e gravar os usos e costumes na carne incrédula.”

Estes versos que seriam, por si só, suficientemente cativantes, ainda o são mais por serem atribuídos a um astronauta, que começa por reconhecer o seu papel enquanto um mero herói de salão “desta raça que se pode olhar a si mesma,/ de alto, presbita, como num espelho”, pela capacidade de submeter o retrato do próprio planeta a diversas reconfigurações: “Atento ao número das suas ilustrações,/ assinalo a formação de crinas em montanhas anfractuosas como o Atlas;/ conto os três dedos da mão grega na península Calcídica;/ comparo o mar Cáspio ao lóbulo de uma orelha esquerda/ e o delta do Ganges à pata de uma imensa ave pernalta”… E são inúmeros os exercícios de engenhoso humor e de uma ironia extravagante que escapa inteiramente ao gosto por gracejos pouco subtis e pelo sarcasmo que faz de tanta poesia que hoje se publica uma mera foram de gangrena de ordem vocabular.

“Que outros, por favor, vivam da retórica/ ao passo que nós estamos, simplesmente, ligados à história”, escreve Enrique Lihn nuns versos que poderiam igualmente ser glosados pelo poeta português. Toda esta obra funciona simultaneamente como um magnífico memorial da própria tradição lírica e uma rememoração de lugares e experiências feita através de uma velhice espantosa, aquela que Deleuze compara à hora do crepúsculo, capaz de um nível de concretude e do alcance profético das grandes imagens: “Há casos em que a velhice dá, não uma eterna juventude, mas, pelo contrário, uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se usufrui de um momento de graça entre a vida e a morte, em que todas as peças da máquina se combinam para lançar no futuro um traço que atravessa as idades”.

É neste ponto que nos encontramos, e a ele chegamos através desse talento para confundir a sua voz com a de outros seres, não só ao longo da história, mas através desse resíduo de afectividade que a faz enovelar-se, daí que o poeta recorra a esses tantos “amantes que abrem em nós/ os lábios”, que nos fale da “imprecisão amorosa da minha vida”, e sublinhe ainda que a “sabedoria não exige decência mas amor”. No fundo, depois de um poderoso apego, a vida liberta-se na velhice ao reconhecer como “apagar-se é o destino supremo”. Esta noção é partilhada com Eugenio Montale, que buscava aquela leveza do mundo e o sopro da desaparição, como um efeito libertador das pulsões que nos limitam excessivamente. Paulo Teixeira sente a cabeça como “fria construção do mundo”, e mesmo “a mão/ ousada no peito” aparece-nos “como uma ferida antiga”, todos esses restos odiosos que assinalam o percurso de uma vida regressam para ser amados numa estranha medida.

Podemos aproximar isto do que Montale designa pelo ponto morto do mundo, uma espécie de relação neutra e que permite tecer esse acordo entre os elementos que alcançam a invisibilidade expansiva do desejo: “Vês, nestes silêncios em que as coisas/ se abandonam e parecem que estão prestes/ a trair o seu último segredo”, escreve o poeta italiano, “por vezes espera-se descobrir um defeito da natureza,/ o ponto morto do mundo,/ o elo que não aguenta,/ o fio a destrinçar que vai finalmente conduzir-nos/ ao centro de uma verdade”. Em todo o amor, há uma certa abdicação de si, uma tentação de se trair a si mesmo, abandonar o seu sistema, não ter um propósito demasiado firme, e assim abandonar-se à obstinada forma que a vida tem de se impor. O poeta recorda-a “entre as sombras/ e os reflexos de uma carne defendida”, retoma esses “pássaros da indiscrição” e é nesse corpo exausto e em cinzas que se consente reaver os “magros fragmentos do passado, a alegoria/ de escuros quartos de hotel, até onde chegam,/ apedrejados pelo vento, os amantes desta história”.

Este “amor assíduo e cotejado”, é o que permite ao poeta surgir como um mestre em matéria de mitos, traficando elementos voluptuosos quer das fábulas mais ricas quer dos episódios secundários da grande tradição ocidental, alimentando extrapolações, revolvendo o fundo para trazer novas imagens à tona. E é aqui, no eixo da própria intensidade, que o movimento se desacelera e parece imbuído de uma serenidade aérea e musical.

Através da recolha e recomposição de elementos fragmentários, o poeta abre espaço para dizer mais, e isto precisamente naquele ponto em que estávamos de tal modo exaustos, que era “como se o mundo não aguentasse já a narração de mais nada” (Vasco Graça Moura). Ora, Paulo Teixeira relembra-nos que só através do dom da recordação e da narração podem os mortais saber alguma coisa do nascimento do mundo, e que abdicar desta capacidade seria aderir ao caos, abandonar-se a uma deriva desintegradora, primeiro das experiências e, logo, da consciência de si. “De volta a Ítaca,/ à cama onde se adivinham outras manhãs”, é possível sentir “na voz o eco de tanto nome” sem se perder no mais longo fio do tempo, e é possível readquirir essa inteligência vivificadora, sabendo que o “sol ainda se ergue sobre a erva molhada/ e o sangue corre em silêncio pela nossa carne/ adiada”.

Cabe aqui destacar uma das epígrafes que o poeta convoca para abrir logo o segundo dos livros que publicou (“Conhecimento do apocalipse”, 1988): “Eis que estou à porta e bato”. Este gesto que faz ressoar o seu apelo entre os elementos, também os recompõe e assume a tarefa dos poetas face ao seu tempo, que passa por inventar a metáfora que opere como uma chamada resgatando o mundo da sua ausência. Temos aqui, assim, aquele momento em que a criação se torna procriação, e “é a actualização de uma fecundidade erótica, de um comércio sexual à escala cósmica” (Steiner). E num momento em que a condição em que se encontram os poetas se parece com esse cenário de “flores e folhas no arvoredo onde aves/ cantam para nenhum auditório”, persiste ainda uma estranha fé nas possibilidades de invocação da poesia: “Quando sabes que adormecemos/ como midas no texto, nas ruas abolidas/ do alexandrino e das canções de gesta, até ao instante em que esta miséria das palavras/ nos abra as portas cerradas do mundo.”

Em certo sentido retomar a consciência é comparável a reassumir a própria tarefa de inventar o mundo desde o princípio, e se a arte é a capacidade de olharmos para as coisas do ponto de vista da eternidade, cabe formular “o ponto de vista de Deus” de que fala Bernardo Soares, ou seja, ver o mundo como se fôssemos exteriores a ele, como se fosse a vida a ver-se a si mesma. Assim, penetramos essa “região-brilhante,// banhada no número frágil dos mortos,/ não-mundo do sonho e da regra,/ dos corpos-memória, sucedendo-se/ nos usos e hábitos da perversão,/ na metamorfose mais violenta”. Paulo Teixeira fala-nos de uma “retórica de espelhos” através da qual se dá um estremecimento do absoluto, sendo possível observar “os frios matizes da paixão”.

O espelho estende um convite, uma possibilidade de desdobramento: “Tudo o que de mim não escrevi/ espera de outro rosto, na pausa/ de uma vírgula, a sua fome confessada/ de ser no espelho em que me vejo/ aquilo que procuro e não sou.” Aqui se estende essa teia sensível através da qual é possível captar diferenças ínfimas, uma passada espectral, uma deslocação de lugar, um toque de espuma: “o corpo faz-se na metamorfose de uma sombra/ verme e rosa. Por emboscadas de silêncio/ avança cantando no caminho canções/ que, sabe, mais ninguém ouve.// Quem, que pássaro de tão longe me chama/ no ramo que mexe?”

O desastre da poesia do nosso tempo liga-se a não ter evitado perder-se na zona biográfica, num imediatismo em que os próprios sentidos se tornam elementos de um alcance frouxo, e vamos sempre pela mão, entre impressões ciciadas, “esplendores vagos, calmas voluptuosidades/ [que] alastram pelo corpo como úlceras de leproso”. Perdem-se os caminhos dentro de si e que levam ao outro, a memória que, sem abdicar de uma dimensão afectiva, é capaz de visitar e reforçar imagens históricas, e o poema torna-se algo sobrante, não mais que “um fragmento de música abolida”.

Se Paulo Teixeira intui que existe “um sentido ganho nas coisas que se perdem”, em “tudo o que nos deve o tempo e podia ter sido”, recusa colaborar com os divertimentos imbecis que dão forma ao rosto da nossa época, e isso explica porque a reunião da sua obra poética no final de 2020 pela Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, em vez de um momento de balanço essencial, foi simplesmente ignorado. “Não mais escrevendo para os estúpidos,/ os de inteligência mediana, os que tudo sabem,/ sinto-me morrer por amor das palavras/ que falei”.

Veja-se o tão hábil quanto ameaçador manejo desse poder de evocar, e que de nenhum modo se confunde com meros comentários parasitários ou paráfrases vulgares, veja-se como espreita Rilke sobre as falésias do Adriático: “Terror das coisas que inventadas/ não mais se exibem: flor, gazela,/ ametista, coisas que, tão próximas/ do coração intacto do mundo, quero/ fazer minhas e do deus que, mudo,/ vai errando pelos espaços vazios do ser.”

Este poeta fala-nos do nosso lugar, e a força com que nos atinge ganha um balanço que vem nesta linha flutuante e deambulatória, misturando percursos e vozes, os dias mais distantes, epitáfios frescos e sombras já desfasadas do perfume da carne, os desejos e os juízos mais ousados, tudo se exerce numa harmoniosa conspiração para nos envolver de novo no encanto de buscar um sentido profundo, para que cada um possa assentar algum peso no “primeiro degrau da catástrofe”. “Falo-te do ruído de um tempo/ que me confia o gosto que a morte/ traz pela tarde à boca”. Sentimos como toda a luz do passado nos força a perceber o desastre de nos vermos perante “a escuridão da última palavra”. O momento em que mais nenhum som que possamos proferir irá desencadear um novo momento de compreensão.

Tudo isto levou João Barrento a ressaltar nesta poesia “uma consciência obsidiante do tempo”. Seguindo com o dedo junto aos versos do poeta, vincava a forma como esta se reconhece uma “arte da memória” num tempo histórico que parece querer obliterar a história e a memória, numa Europa da “pós-História” que se entretém a “jogar com o seu fabuloso passado, a reciclá-lo em falso presente, a instalar-se no não-tempo”. “Este não-tempo assume na poesia de Paulo Teixeira a forma de um tempo-de-espera ou de um tempo-de-exílio durante o qual a poesia consuma o seu trabalho de luto e ‘as cerimónias crepusculares do velho mundo’. A Europa apresenta-se aqui como uma ‘pequena e inútil maravilha/ suicidária’, com ‘a alma tão cheia de tempo e tão vazia’, um continente expectante num final de século e de milénio, ‘deitado sobre ruínas’.”

A catástrofe liga-se à incapacidade de recompor esses elementos que emergem nas nossas próprias vidas e que funcionam como pedaços de uma mitologia dispersa, como se o esquecimento atingisse o próprio método da memória, perdendo-se metro e rima, esses artifícios admiráveis que foram sendo legados pelas gerações, e isto para nos entregarmos ao “contrabando do novo” e à “indústria do moderno”. Incapaz de pressentir o modo como “a memória [vai] gotejando em cada fonte”, o homem vê-se num tempo acelerado e inenarrável, um tempo sem saída, só lhe restando como desenho para uma fuga esses sinais que ainda lhe chegam através do sonho, essa passagem cada vez mais estreita. “Eu falo do mundo de ontem, de uma vizinhança/ perdida, reparada algures entre as flores breves/ do sono.”

A admiração torna-se assim um meio essencial de descoberta, num momento em que a revisitação do passado provoca em nós a mesma sensação de se expiar um mundo novo. Basta algum talento na construção rítmica dos anos para provocar um inusitado fascínio, desde que o poeta se possa fazer ouvir. “O coração imóvel, a língua tua infecunda,/ reverencia a deduzida luz do mundo”…

Os antigos ardis são ainda os mais prometedores, mas a poesia depende hoje da recuperação do homem, da recuperação de uma embriaguez perdida, mas para isso é preciso é preciso inscrever de novo o mundo, como se este fosse “uma floração tardia”. É necessário também reconhecer isto: “O desejo é a nossa árvore genealógica,/ a terra que nomeia sua haste vagarosa/ no deleite casual de uma palavra nascida em minha boca.” O perigo maior surge quando tantas coisas se atravessam entre os homens e estes deixam de ser capazes de falar, sentem-se perdidos na linguagem, nessa vocação que permite despertar as coisas e integrá-las nalgum processo dinâmico. O que se vem perdendo é a própria gramática, nesse sentido em que esta nos permite articular as nossas percepções, reflexões ou experiências, dando forma aos elementos da consciência quando esta comunica consigo própria ou com os outros.

Um verdadeiro movimento poético obriga-se, antes de mais, a um efeito de recuperação da gramática, e para isso impõe esse regime de erudição capaz de um envolvimento raro com essa mitologia dispersa, actualizando aquela gravidade entre corpos que se foram desvinculando, e assim refazendo o próprio circuito da tradição lírica. “Tive por modelo o amor e o estudo/ do seu corpo, nu e sem resposta/ sobre a cama. Um Febo cantado/ como um suspiro no ouvido do poema,/ enquanto uma sombra ia colhendo/ a noite inerme em volta da lareira.” Os elos e nexos que esta obra recobre, como assinalou Joaquim Manuel Magalhães, operam nesse campo das “obras que nascem de obras, meditações líricas cujo território vive impregnado de envios, fantasias vocabulares que dialogam com a consciência do próprio passado”. São elegias que consomem em si a música do passado, procurando perpetuar lugares amados dessa arte verbal e que representa o “que não queríamos hoje já extinto”.

Magalhães adianta que a pertinaz dimensão histórica destes textos procede nesse eco que recupera uma unidade perdida voltando-se para a “reminiscência vivificadora, para um transporte de arquétipos que criem a ilusão de perenidade, a qual só uma obra posterior pode sólida e precariamente reconstruir para uma obra anterior”. Para este crítico, “o presente como presente de um passado, de que falaram Husserl ou Eliot, move estes textos que confiam na memória como depósito de fulgurações, que parecem afirmar o poeta como elo de continuidades perdurantes dentro do inescapável desgaste do tempo”. Esta é, assim, “uma poesia que não desiste de ser literária precisamente para poder entregar-se a esta procriação verbal memoriante”.

Ao multiplicar esses “nomes de sossegada fantasmagoria”, Paulo Teixeira não nos oferece apenas uma memória assombrosa, mas seduz-nos para o elemento de desdobramento e alcance de uma vida de leitor, essa capacidade de, por meio de desvios e digressões contínuas, andar à volta de alguns fragmentos, pedaços de textos, os quais estariam já de algum modo inscritos em nós – no nosso teatro –, mantendo-se disponíveis, legíveis e revisitáveis.

Assim, ao contrário de outros discursos mais agressivos e desgastantes, aqui tudo opera por um efeito de desaceleração, resistindo aos impulsos treinados pelas dinâmicas do mercado, do ambiente mediático, e à constante inversão desses enredos paranoicos, ao cinismo, à estupidez e à ingenuidade. Esta é uma poesia que, diante da catástrofe, nos leva “de volta às velhas surpresas/ do corpo”, de volta aos momentos de sincronia perfeita com os elementos ao nosso redor. “Para nos levar deixamos que o mar/ conte uma história e nos entoe em sua glosa/ o vento, nesse regresso ao mundo do que vier/ e nos detenha”… É “um saber comprometido com o que não tem fim”, e que nos ensina a persistir nesse “recontro de tempos, na confluência de águas/ que se insinua em nós e nos leva no solavanco/ de uma barcaça ou no grito de um rebocador/ de volta a esse saber obscuro do passado”.

Deste modo, aprendemos também a libertarmo-nos deste “tempo de quem não aprendeu a morrer” e que, por isso mesmo, daqueles que residem neste mundo feridos de ausência, incapazes de um “corpo a corpo com o que se vê”. E no fim, esses que se algarismam, que nos impõem a força dos seus números, acabam todos reconduzidos a uma trama que o primeiro vento apaga, e confundem-se na imagem desse homem que “murmura o tempo todo contra si e quem/ ‘o formou do pó da terra, ‘à Sua imagem’’, esse “desertor do que viu e [que] se denuncia pelo nome,/ sobre uma terra secular, onde só a carne,/ que se transporta num passo mais, é matéria de crença,/ [enquanto] caminha para a dissolução dos horizontes”.