Lutero Simango, engenheiro mecânico e Chefe da Bancada Parlamentar do Movimento Democrático de Moçambique (MDM), aborda as mais recentes eleições autárquicas moçambicanas em entrevista ao Nascer do SOL. Filho de um dos fundadores da FRELIMO e irmão do fundador do MDM, Simango utiliza termos como “manipulação” e “falta de transparência” para caracterizar o ato eleitoral.
Qual o ponto de situação?
Estamos à espera que o Conselho Constitucional tome a decisão final. Há reclamações por parte dos partidos incluindo alguns orgãos eleitorais. O processo não foi limpo nem transparente e houve manipulação, refletida no enchimento nas urnas. Tudo isto começou com o processo de recenseamento, feito na base de ilegalidades e na violação da própria lei eleitoral. A distribuição dos postos não teve em conta os níveis dos eleitores. Tudo isto contribuiu para que tivessemos uma eleição não transparente e totalmente manipulada.
Nestas autárquicas não conseguiram quebrar a barreira hegemónica da FRELIMO. A alegada fraude eleitoral está ligada a isso?
Está. Testemunhámos que o povo, residente nas várias autarquias, não votou na FRELIMO. Simplesmente a oposição não conseguiu ultrapassar a barreira porque o processo foi manipulado. Há uma expressão popular, o povo nas autarquias demonstrou que já não quer mais a FRELIMO no poder, e por isso não se pode dizer que os resultados destas eleições sejam uma antecâmara para 2024. Cada eleição é uma eleição, e a deste ano foi uma eleição de manipulação.
O MDM já anunciou que não aceita os resultados, mesmo com a vitória na Beira. A fraude foi evidente?
Sim. Até na Beira houve tentativa de manipular os resultados, mas não conseguiram porque os munícipes votaram em massa no MDM. E só por isto é que a manipulação dos resultados foi dificultada.
Em que autarquias sentiam que o povo estava com o partido?
Os resultados que se fizeram sentir em Dondo, Gorongoza, Ilha de Moçambique e Muine mostram que houve uma tendência forte de votar no MDM, mas não ganhámos porque tudo foi manipulado.
A região tem influência no voto, e mesmo assim a FRELIMO só não venceu na Beira…
A Beira é uma cidade com as suas próprias características e história política e sempre foi uma cidade, desde a independência, que nunca teve simpatia pela FRELIMO. Também olhando para a história colonial, a Beira sempre foi hostil face ao governo colonial, portanto tem as suas próprias características, a sua própria história e a sua forma de estar e ser.
Pode dar uma dessas razões?
A primeira é que foi na Beira onde nasceu a oposição à governação da FRELIMO, as primeiras ações de contestação e onde se criou a revolta que deu origem à Resistência Nacional de Moçambique. Também a maior parte dos fundadores da Frente de Libertação de Moçambique da Beira foram mortos pela governação da FRELIMO.
Como vê o futuro do MDM?
Vejo um bom futuro. É preciso que o MDM continue a trabalhar para que possa ser um partido de dimensão nacional, prepararando-se para os próximos embates e que nas próximas eleições se afirme e continue presente na Assembleia da República.
E quanto à RENAMO, há possibilidade de coligação?
Não basta que haja vontades políticas nas lideranças, também tem de haver nos orgãos dos partidos. Da nossa parte, manifestámos disponibilidade para criar uma plataforma eleitoral comum com a RENAMO e outras forças políticas, para que houvesse um único bloco eleitoral.
É a única forma de por fim à hegemonia da FRELIMO?
Claro, seria uma das formas. Quando apresentámos esta intenção não fomos compreendidos. Mas mais agora que nunca, há essa compreensão de que unidos chegaremos longe. Não basta cultivar a intenção de unir as forças políticas, tem de haver vontade política, honestidade e boa-fé para se concretizar esta plataforma comum.
Há possibilidade de um terceiro mandato de Filipe Nyusi?
Isso não vai acontecer. As eleições presidenciais já foram convocadas e a Constituição já teve a sua revisão pontual. Não vejo a possibilidade de um terceiro mandato, a não ser que esteja agendado um golpe de Estado. Não havendo nenhum golpe de Estado, não há possibilidade.
O caos está instalado. Que solução?
Defendo que o poder político não pode ser exercido na praça pública. No dia em que aceitarmos isso, estaremos a destruir o Estado. As instituições devem funcionar e respeitar a vontade popular, por isso temos de trabalhar para que a transferência do poder seja feita na base de um processo democrático. O povo deve eleger quem governa, e os derrotados devem aceitar os resultados. O partido no poder deve respeitar a vontade popular. Não podemos permitir que o país vá para o caos, porque estaremos a destruir a nossa democracia e o nosso Estado. A solução passa por reformas profundas, que só são possíveis através de uma alternância democrática. Temos de revisitar o nosso quadro constitucional, garantir que há separação dos poderes. Não podemos continuar a ter um Presidente muito poderoso. Precisamos de um sistema judiciário independente e de uma economia não só geradora de riqueza e de oportunidades, mas, acima de tudo, que crie condições para pequenas e médias empresas fortes. Há enormes desafios.
Acredita que o país possa cair numa guerra civil?
O povo moçambicano não está muito interessado em voltar para uma guerra. Cada família já tem uma experiência dos impactos negativos da guerra, portanto penso que ninguém a deseja. Mas também não podemos colocar de lado, porque havendo uma violência armada contra o povo, o povo será obrigado a defender-se.
As eleições foram alvo de escrutínio internacional. Esta é uma pressão importante?
Sim, mas a comunidade internacional continua a cometer alguns erros. A FRELIMO é um Partido-Estado dominante e funciona, como acontece na Rússia e na China, tendo parceiros fortes nestes dois países que financiam a sua ação política e ideológica. Os países democráticos devem compreender isso e apoiar os partidos democráticos em Moçambique. Enquanto não houver esse apoio vai prevalecer a ditadura, alinhada com as novas tendências que se estão a criar no mundo. Queiramos ou não, a situação do conflito na Ucrânia está-nos a trazer um mundo em blocos e também aqui tem o seu impacto.
Os conflitos atuais são o foco principal atual. Pode pôr em causa o apoio aos partidos moçambicanos?
Isso vai ter a sua influência. Cabe aos países defensores da democracia e liberdade perceber isso. Se não houver auxílio aos partidos que querem democratizar o país e ter um Estado de Direito, estamos derrotados. Mas não porque não temos o povo. Temos o povo, mas tem de enfrentar o Estado. Quando vamos às campanhas eleitorais, estamos a competir com o Estado, porque o partido no poder usa todos os meios do Estado. Inclusive usa os professores do Estado para fiscalizar as assembleias de voto para seu benefício. Usam a Polícia para proteger as suas manipulações. No dia das eleições, a polícia deixa de ser republicana e passa a ser partidária. É o desafio que nós temos, e se a comunidade internacional não perceber isso, quando acordar já teremos a nossa democracia morta.
Quais a principais lições a retirar?
A lição que podemos retirar é que os nossos orgãos eleitorais não foram capazes de gerir o processo. A Comissão Nacional de Eleições, que tinha a responsabilidade de administrar e gerir o processo, não conseguiu fazê-lo. Temos o Secretariado Técnico da Administração Eleitoral, um braço auxiliar da CNE, que demonstrou ser independente. O STAE demonstrou uma independência total da CNE, e ao longo do processo em momento algum obedeceu à CNE. Estes orgãos essenciais caminharam em sentidos opostos. Como resultado tivemos um processo eleitoral mal administrado, mal conduzido e comandado, de facto, pela FRELIMO. A existência do enchimento obedeceu a uma estratégia da FRELIMO, beneficiada pelos boletins de voto a mais. Se não me engano, foi o pior processo eleitoral desde as primeiras eleições em 1994. Temos a certeza que este processo foi manipulado. O que aconteceu nestas eleições vai-se repetir nas eleições gerais, talvez com uma outra estratégia. Num processo eleitoral lsem manipulação, a FRELIMO não ganha.