“Não conseguimos erradicar todas as pessoas em situação de sem-abrigo mas queremos diminuir o número”

Diretora-geral da Comunidade Vida e Paz traça o perfil dos sem-abrigo e teme que a atual situação económica atire mais pessoas para a rua. Só em Lisboa ajudam 500 pessoas, acresce Loures e Odivelas.

Tem ideia de quantos sem-abrigo existem em Lisboa? E quantos ajudam?Neste momento – e reporto-me aos nossos dados –, no que diz respeito ao acompanhamento feito pelas equipas voluntárias de rua, estamos a ir ao encontro de cerca de 500 pessoas todas as noites. Temos também intervenção de rua, mas com equipas técnicas que provêm de acordos que temos com alguns municípios, Lisboa, Loures e Odivelas. Em Loures estamos a acompanhar quase 100 pessoas e em Odivelas cerca de 68. Mas estes números vão sendo sempre alterados.

O número de sem-abrigo aumentou cerca de 25% no último ano. A que se deve esta subida?
Na altura estávamos a ir ao encontro de cerca de 390, 400 pessoas. Os números são variáveis. Hoje podem ser 500, amanhã 501 ou 502. O aumento deve-se, por um lado, à pandemia e às suas consequências, das quais ainda não nos conseguimos refazer. E também do conflito com a Ucrânia e a Rússia que obviamente tem impacto no que diz respeito às questões económicas, à inflação e ao custo de vida. Muitas pessoas acabaram por ficar desempregadas e em situação de vulnerabilidade ou foram mesmo parar à rua. Assistimos também a um aumento proveniente da imigração, há muitos imigrantes. O perfil encontrado na rua é diferente.

Que tipo de perfil?
Desde jovens a pessoas mais idosas. E houve um grande aumento de pessoas a consumir substâncias psicoativas, no que diz respeito às drogas – incluindo o álcool – e em algumas zonas mais específicas na cidade de Lisboa, sobretudo na Avenida de Ceuta, no viaduto. Assistimos também à questão dos imigrantes mais na Gare do Oriente, no Intendente… Há, por um lado, esta questão económica e política que veio causar este aumento de pessoas em situação de sem abrigo e, por outro lado, também as soluções que muitas das vezes as pessoas encontram. Há muitos imigrantes, mas também muitas pessoas que vêm do interior à procura de novas oportunidades e não as encontram e acabam por ficar nessa situação. Muitas delas em situação de desespero e, por não terem soluções, acabam por consumir substâncias psicoativas para de alguma forma anestesiar tudo aquilo que possa ser o seu desespero. E ainda a questão da doença mental. Há mais pessoas que apresentam diagnósticos e problemáticas a este nível. Há uma grande variedade de aspetos que vêm trazer este cenário dramático que é preocupante para todas as pessoas e para as instituições que atuam nesta área e acreditamos que ainda possa vir a piorar, sobretudo no próximo ano. Temos muitas famílias em situação de vulnerabilidade que, apesar de não terem ainda perdido a habitação, pode vir a acontecer. É um problema gravíssimo. Nem todas as pessoas têm orçamento familiar que permita garantir uma renda ou uma prestação de uma habitação. E muitas vezes vêm ao nosso encontro no sentido de conseguir a ceia. Se não for feito nada em termos de prevenção, podem vir a ser as novas pessoas que no futuro venham estar numa situação de sem abrigo. A missão da Comunidade Vida e Paz não é distribuir refeições. É sobretudo, através de uma ceia, conseguir desenvolver contacto com as pessoas, criar relação, criar uma ligação para conseguirmos perceber quais as suas necessidades, quais os seus problemas maiores e encontrarmos em conjunto uma alternativa. No fundo é devolver a dignidade às pessoas e ajudá-las a construir um sentido novo para a sua vida.

Diz que é preciso fazer-se mais alguma coisa, fala do quê?
Se conseguimos perceber que há famílias em situação de vulnerabilidade que estão em risco de não conseguir garantir o pagamento de uma renda ou que estão em risco de ser despejadas começar previamente a dar suporte a estas pessoas não só nestes processos como no sentido de não chegarem a estes processos. E muitas vezes, um apoio social no sentido de garantir a prestação um mês ou dois pode fazer toda a diferença. E pode evitar que venham a atingir uma situação de grande desespero e perderem toda a capacidade de conseguir dar a volta à situação. Há pessoas que não conseguem enfrentar estas situações. Em termos de políticas, deviam existir mais ao nível da imigração. Na questão dos reclusos que muitas vezes saem no final da pena e não têm um projeto de reinserção e vão parar à rua, os jovens que estão em centros de acolhimento… Há muito a fazer nesta área da prevenção para que consigamos diminuir estes números. Não estamos a dizer que vamos conseguir erradicar todas as pessoas em situação de sem-abrigo, mas fazer algo no sentido de diminuirmos, de prevenirmos que mais pessoas venham a estar nessa situação. As instituições precisam de ser ajudadas através do Estado e o poder político central tem de criar mais medidas, até em termos de estratégia nacional para que, por um lado, as pessoas venham a ser ajudadas e venham a sair desta situação, mas por outro, para que as próprias instituições possam continuar a garantir a continuidade da sua prestação de serviços porque também as instituições, como o caso da Comunidade Vida e Paz, estão a atravessar sérias dificuldades do ponto vista financeiro e dos recursos que têm ao seu dispor e que sem eles não conseguirão ajudar as pessoas. Há mais pessoas e há menos recursos.

A crise acaba por chegar a todos. Têm recebido menos donativos?
Temos sentido uma diminuição dos donativos, quer em género, quer em numerário. Percebemos claramente que há muitas instituições e que todas elas estão a passar dificuldades. Todas estamos a atravessar essa crise. Nós, por exemplo, já tivemos que deixar de ter duas respostas porque não conseguimos garantir a continuidade e gostaríamos que isso não acontecesse. Crescemos imenso do ponto de vista das respostas de primeira linha nestes últimos anos. E, se não conseguirmos manter estas respostas, são menos oportunidades ou possibilidades que temos para oferecer às pessoas em situação de sem abrigo. Para a direção da instituição também é um drama.

Mas o vosso trabalho, não é apenas alimentar os sem-abrigo…
A Comunidade Vida e Paz acaba por ser muito conhecida pela intervenção de rua, pelas equipas voluntárias de rua, mas é muito mais do que isso. A questão da ceia é apenas uma forma de chegarmos e darmos, obviamente, o calor humano, o conforto de uma ceia às pessoas. E neste momento até é preocupante porque vemos claramente que há pessoas com fome. A Comunidade Vida e Paz assenta a sua intervenção em três grandes eixos: ir ao encontro e acolher as pessoas em situação de sem abrigo ou em situação de vulnerabilidade. Depois temos o eixo da recuperação e da reabilitação e o último é o da reinserção. Podemos, a partir das problemáticas que as pessoas apresentem, desenhar um projeto com a pessoa, para que consiga de alguma forma sair da situação em que se encontra. É óbvio que não temos nem existem vagas para todas as pessoas, mas o que procuramos sempre é, por um lado, motivar a pessoa à mudança e por outro, garantir que haja uma alternativa – mesmo que não seja no momento – que a pessoa possa vir a ter, o mais rápido possível. Através das sinalizações que são feitas não só pelas equipas de voluntários, mas muito pelas equipas técnicas de rua, fazer com que as pessoas depois sejam acompanhadas a nível técnico por uma equipa e para que a partir daí possam identificar, fazer um diagnóstico e encaminhar as pessoas para respostas de primeira linha. Falamos de apartamentos partilhados, temos um centro de alojamento para pessoas em situação de sem-abrigo também em Lisboa, para 40 pessoas. Recebemos pessoas de todos os géneros, incluindo casais acompanhados dos seus animais, e as pessoas podem estar connosco durante um período ainda bastante longo, até conseguirmos depois arranjar uma outra alternativa. E depois temos centros, sobretudo em Lisboa, onde acompanhamos as pessoas diariamente. Prestamos alguns serviços, como as refeições, os banhos sempre com o objetivo final de encontrar o melhor projeto para a pessoa. Para as pessoas que têm problemas aditivos, ou seja, toxicodependência, alcoolismo e que se queiram reabilitar temos duas comunidades terapêuticas, uma em Fátima e outra na Venda do Pinheiro, com capacidade para 135 pessoas. A pessoa pode fazer um programa de reabilitação durante meses, até um ano ou mais, consoante o seu caso. Cada pessoa é uma pessoa e é vista dessa forma. Depois temos as comunidades de inserção que permitem que algumas pessoas, mesmo que não apresentem problemáticas aditivas, possam desenvolver competências com o objetivo de também virem a ser reinseridas. E por último, temos as respostas na área da reinserção, que são propriamente os apartamentos. A pessoa já passou por estas etapas, já fez um percurso e já se consegue autonomizar, acabando por poder estar a usufruir uma série de serviços nestes departamentos e sobretudo, ter um acompanhamento técnico até conseguir dar um salto, ficar independente e autonomizar-se. No fundo são cerca ou mais de 22 respostas que temos no total. Falamos de 600 voluntários a atuar não só na parte da distribuição das cheias através das equipas voluntárias de ruas, mas também na sua preparação, bem como o banco de roupa. E depois temos um grupo de profissionais que anda na ordem dos 170 e dependem da instituição diariamente, cerca de 900 pessoas, as que estão na rua e aquelas que encontramos todos os dias e as que estão depois em todas as respostas que abordei há pouco.